O chefe do sindicato dos juízes federais brasileiros disse que a categoria estava perplexa e chocada – um dia ainda se volta para o português escandalizado – com a resistência da Presidente Dilma Rousseff ao pedido de aumento salarial de 15% dos juízes. Eles têm salário inicial de R$ 21.000,00 e acham pouco, esse é o caso.
À parte o dinheiro, a indignação judiciária deu ocasião à espontaneidade e à sinceridade, coisas maravilhosas, um tanto raras, a revelarem profunda arrogância e percepção enviesada da realidade. O líder da corporação judiciária teve ocasião de afirmar que o governo não pode tratar um poder independente como se estivesse em uma negociação com motoristas de ônibus.
Mais adiante, outra afirmação interessantíssima e sistematicamente incoerente, a de que o governo não pode desconhecer o poder político dos juízes. Enfim, depois da arrogância, a volta ao disfarce e à confusão conceitual. Essa estória de poder independente associa-se à função deste poder e nada mais, ou seja, a independência é para aplicar a lei cabível a um caso. Não existe independência para resolver quanto se ganha, independentemente do resto do país e dos outros poderes.
O poder político dos juízes é uma impossibilidade no plano teórico, embora haja no plano real, evidentemente, como qualquer poder, que se baseia em chantagem. Não se trata de qualquer ilegalidade afirmar e praticar o poder político, apenas não se deve pretender que ele seja alguma prerrogativa institucional dessa classe burocrática. Trata-se, pura e simplesmente, de fazer pressões, como as podem fazer quaisquer classes.
A entrada em cena com formas de pedir explícitas e próprias de barganhas políticas vulgares é reveladora e significa uma boa tomada de riscos. É difícil recuar depois de se apresentarem as mais poderosas armas da chantagem, depois de chegar-se às etapas mais explícitas, sem se ter passado pelas sutilezas iniciais de rotina.
Com relação à arrogância e ao preconceito expressados contra os condutores de ônibus, a reação foi previsível e bem pensada. O chefe do sindicato dos motoristas afirmou o óbvio, ou seja, que houve preconceito explícito, e disse que dará entrada em ação contra o líder dos juízes federais. Isso basta, não interessa se terá êxito ou não.
É bastante complicado prever o esgotamento de algum ciclo, porque as condicionantes são muitas e diversas e ocorrem as euforias pré – morte. De maneira geral, a burocracia estatal brasileira não vive ciclos, porque sempre tem sido bem aquinhoada. Falo de maneira geral, porque dentro dela, há ciclos a envolverem uma e outra classe.
Como nunca alternamos propriamente momentos históricos marcados pelas opções políticas puras entre esquerdismo e direitismo, ficamos restritos a perceber os momentos pelas alterações nas classes burocráticas alçadas a intermediárias privilegiadas na simbiose do Estado com as grandes corporações privadas.
Enfim, na intermediação da predação privada dos dinheiros públicos alternam-se grupos e classes burocráticas, ao sabor de um padrão perceptível de alternâncias. Os limites cronológicos entre o predomínio de um e outro grupo não são fixos nem claros como uma linha divisória, evidentemente.
A lógica interna dos grupos demanda que sempre se busque mais, porque nunca se pode consolidar a idéia de ter-se chegado a um máximo, por razões evidentes: depois do máximo, sempre se decai!
Apenas como exemplo, lembro que recentemente, há pouco mais de vinte e cinco anos, os intermediários privilegiados da relação entre o Estado e as grandes corporações privadas eram os grupos burocráticos das empresas públicas de energia, telefonia, petróleo e do setor bancário. Esse grupo teve sua posição privilegiada demolida em poucos anos, em decorrência dos consulados de dois Fernandos Presidentes.
As linhas burocráticas jurídica e fiscal retornaram ao centro da cena e instalaram-se nas posições destacadas de apropriação das rendas estatais e de interlocução com os capitais privados. Na verdade, para os grande capitais, pouco ou nada importa essa alternância que se dá nos estratos médios – superiores da sociedade, porque essa camada ganhará as migalhas e sempre prestará vassalagem ao poder real.
Para que se constitua o que chamo empulhocracia jurídica são necessárias demandas e problemas judiciais em grande escala. O setor privado não as consegue prover na quantidade suficiente, a despeito das causas trabalhistas. Então, o Estado tem que desempenhar esse papel de criar o problema cuja existência interessa a todos.
O Estado atende a esse chamado, porque afinal sua vontade resulta das muitas vontades minimamente divergentes dos funcionários que dele se apropriam. Nesse ponto, alguém pode objetar o previsível, ou seja, que não se faz isso ou aquilo deliberadamente para que dê errado e crie problemas.
Realmente, se se vir a coisa toda com lupa, tomando-se um agente público isolado e o analisando, indagando suas inclinações psicológicas, seus motivos determinantes, suas finalidades declaradas, não se extrairá que aja deliberadamente para alimentar o sistema de problemas artificiais que se retro-alimentam.
Mas, o sistema todo confirma a tese e age por uma cumplicidade inercial independente dos seus componentes isolados. Se é preciso uma justificação, ainda que aparente, se são precisos atos que depois parecerão absurdos, para que um grupo tenha seus momentos de destaque, eles serão feitos.
No caso da empulhocracia jurídica, convém dizer que o sistema não atende somente aos interesses de uma burocracia estatal, porque os advogados privados são parte de uma estreitíssima simbiose, em que todos têm interesse nos problemas. Claro que todos viverão a falar mal da qualidade das leis, do desrespeito a elas, dos arbítrios do Estado, ou seja, de tudo que lhes resulta em ganhos.
A parte maior da litigiosidade judicial brasileira envolve o Estado. Alguém que não seja parte dessa cumplicidade, quero dizer, alguém que veja a coisa de fora e que tenha conhecimentos jurídicos, dirá que isso é um absurdo. Sim, porque o Estado – na forma de república democrática representativa constitucional – é a entidade em que o poder soberano do povo está funcionando praticamente.
Ora, a ação estatal não pode resultar em tantas e tamanhas ilegalidades, na medida em que ele é e faz a legalidade. Um problema do Estado ou contra ele resolve-se legalmente, nele. A demanda judicial contra o Estado é, portanto, uma anomalia, uma excepcionalidade, assim como são suas consequências práticas: uma justiça só para demandas estatais, um corpo de advogados do Estado, um corpo de fiscais da lei deste próprio Estado.
Se o número estupidamente elevado de causas deve-se aos defeitos das leis, está óbvio que todos são partes interessadas em que as leis tenham defeitos, porque não se cuida aqui de uma ciência obscura, para iniciados, senão que se cuida pura e simplesmente um sistema hierarquizado de adequações modelares.
As engrenagens desse sistema terão que seguir seu rumo de repetição de críticas aos erros e abusos, sempre dos outros, assim indefinidamente, porque não podem ou não conseguem ver o substrato do que está em marcha. Os serviços, entre eles os de resolução de conflitos legais, existem para a excepcionalidade deles acontecerem e, não o inverso. Ou seja, os conflitos não existem para que haja os serviços.
No final e ao cabo, trata-se de decisões políticas, que os agentes políticos tomam para atender aos mais variados interesses e sentem-se à vontade para tomá-las nas piores formatações possíveis. A cumplicidade na má-conformação dos atos legais é amplíssima, portanto, e se alimenta dela mesma.
Se, por exemplo, uma qualquer matéria legal dá ensejo a milhões de causas nos tribunais e se quer sinceramente que essas causas deixem de existir, basta resolver legalmente o que está a ser resolvido no mesmo sentido em milhões de processos diversos! Quem perde com a obviedade, essa é a questão!