Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 13 of 17)

A ignorância defendida com eufemismos e rituais.

Os limites do discurso – de uma proposição – encontram-se na linguagem, seu meio, e na impossibilidade do emissor deixar de ser ele mesmo.

O emissor do discurso a favor da burrice, ou seja, da difusão de menos conteúdos que o possível em uma dada circunstância, precisa justificar-se. Isso significa que, no íntimo, ele intui que está a propor a ignorância.

Ele é capaz dessa intuição – percepção imediata e relativamente superficial – porque se reconhece como ignorante, precisamente porque reconhece os menos ignorantes. É capaz de uma comparação, ainda que meio involuntária e imprecisa, enfim. Contrariamente ao que se pensa maioritariamente, as pessoa têm percepção de seus limites, embora suas condutas nem sempre reflitam essa percepção.

O discurso de defesa da burrice apoia-se basicamente em dois pilares: o fetichismo da moda e os rituais formais. Ele afasta-se, como é obviamente dedutível, da matéria, da substância. Não digo que ele apegue-se às formas como um investigador prende-se às regras do método científico. Digo que ele prende-se às formas como aparências, continentes vazios de conteúdos.

Esses dois pilares são, em verdade, um somente, mas bifurcado perto do capitel. O conhecimento específico é substituído por um acervo de lugares-comuns, tirados meio aleatoriamente de um saco repleto deles, que o defensor da ignorância traz sempre consigo. E, esses lugares-comuns variam conforme uma lógica de moda e significam invariavelmente o mesmo: nada.

Eis o caso que me fez pensar nisso. Uma pessoa foi submeter-se a uma avaliação para o trabalho de professor universitário, em uma instituição privada. O teste consistia em apresentar aula a uma banca composta por três avaliadores: um professor da matéria, um psicólogo e um pedagogo. Não vou usar atalhos e direi logo que os defensores da ignorância foram o psicólogo e o pedagogo.

O assunto foi escolhido pelo avaliado, previamente. Havia um lapso de sessenta minutos para apresentar a aula e depois os comentários dos avaliadores. Chegada essa fase, o candidato ao trabalho ouviu do professor que não havia reparos a se fazerem, que compreendera tudo bem claramente e que o assunto fora exaustivamente e claramente abordado.

Em seguida, os profissionais fetiche da dinâmica de seleção de recursos humanos – sim, uso um lugar-comum como quem não quer perder a piada – entram em cena e sacam os comentários previsíveis de seu acervo pré-ordenado. Primeiramente, o mais desconcertante: você não interagiu com os alunos.

Mas, se não havia alunos, era caso de interagir com alunos ficcionais? Ou, por outras palavras, tratava-se de uma encenação meio pueril com personagens inexistentes? Era para fazer um teatrinho com amigos ocultos, uma encenação de escola infantil? Estranha objeção, realmente.

Em seguida, a objeção ápice do fetichismo atual: você não usou o PowerPoint. Vou dizer o que é isso, não porque algum leitor não saiba, mas para ajudar-me a pensar. Isso é um simples instrumento de projecção de slides em alguma superfície. Um instrumento tão instrumental quanto o quadro negro e o giz, tão instrumental quanto a fala, tão instrumental quanto um laboratório e, quem sabe, tão instrumental quanto o silêncio.

Há coisas que podem implicar uma apresentação de slides para serem melhor compreendidas e há outras delas que não. Da mesma forma que há parafusos a demandarem chaves-de-fenda para serem apertados e porcas a pedirem chaves-de-boca para a mesma operação.

E há coisas – geralmente as mais importantes – a demandarem qualquer instrumento, indistintamente, desde que o explicador as conheça! Convém lembrar que Niels Bohr e José Ortega y Gasset não tiveram aulas com PowerPoint, esses dois imbecis, coitados! Deviam ser autodidatas.

Todavia, a objeção informática não se bastava. Tinha que vir com uma explicação, naturalmente tirada do mesmo saco de frases-feitas. O caso é que o maravilhoso meio de projectar slides prende a atenção dos alunos. Sim, esses indivíduos hipopotentes e eternamente infantilizados são incapazes de prestarem atenção a qualquer coisa que não seja exibida mediante slides!

Então, o professor deve prender-lhes a atenção; para quê, pouco importa, contudo. É um espetáculo, evidentemente, o que ser vender e os profissionais a serem selecionados devem ser capazes de produzi-lo. Não se buscam professores, mas mestres-de-cerimônia de conteúdos vazios. Guy Debord não exagerava, portanto.

Ao final, o fechamento como ele deve ser: verdade vinda de quem está preso, mas vislumbra uma pequena réstia de luz e trai-se. A parte moderna da banca avaliadora sentencia: você está perfeitamente adequada a uma universidade federal!

Cabe um pequeno esclarecimento aqui. No Brasil, as universidades federais – públicas – são melhores que as privadas por larga margem, a despeito de algumas pontuais exceções. Essas constituem-se nas universidades publicas não-estatais, o que é fundamentalmente diferente das privadas.

Universidade pública não-estatal é aquela instituição que preza o ensino e a produção científica antes da venda pura e simples de diplomas de licenciados para quaisquer indivíduos que possam pagar-lhes. Neste país de semi-analfabetos em conúbio com deliquentes, produziu-se a falsa dicotomia pura entre pública e privada.

As grandes universidades européias e norte-americanas são todas públicas, embora umas sejam estatais e outras não. Várias universidades no Brasil são entidades públicas não-estatais, como é o caso das universidades católicas. Mas, um número muitas vezes maior é das entidades não-estatais privadas, focadas única e exclusivamente no lucro, voltadas para a oferta de diplomas e de todas as aparências de modernidade vazias de quaisquer conteúdos.

Enfim, se o candidato está destinado e adequado a uma universidade federal – como disseram as guardiãs do templo do fetichismo modista – significa que ele é um bom candidato, mas que aquela instituição quer coisa menor e mais apta a prender a atenção dos adolescentes mal-educados e dispersivos que lá vão ter.

Bem, estranho é o licenciado não compreender, ao depois, a pouca serventia do seu diploma. Os donos das instituições, esses compreendem perfeitamente o que está em jogo e provavelmente licenciaram-se em universidades federais.

Criminalização da pobreza.

Muita gente exulta com manobras militares como essa que ocorre no Rio de Janeiro. Todavia, significativa parcela compraz-se não com os aspectos positivos que essa manobra específica tem.

A invasão de áreas de onde partiram ataques violentíssimos de traficantes de entorpecentes ilícitos foi exitosa porque bem coordenada. Implicou na prisão e na morte de vários criminosos e na fuga de outros tantos. Significou uma tomada de controle de áreas anteriormente sem presença estatal. Estancou a onda de violência promovida pelos traficantes.

Ao mesmo tempo, não consistiu em uma invasão com destruição indiscriminada de tudo quanto houvesse pela frente e assassinato aleatório de quantos estivessem na linha de tiro. Sim, porque um pequeníssima proporção de quantos se encontram em alguma favela é de criminosos.

Nada obstante, os entusiastas da operação vêm nela somente a realização material de um modo de fazer que eles querem perpetuar. Vêm a confirmação da eficácia da violência, como se fosse o remédio de todos os males. Vêm a confirmação da crença de que as áreas pobres são um problema em si, identificadas umbilicalmente a zonas de crime.

As áreas pobres têm as mesmas concentrações potenciais de criminosos das outras áreas. O que difere são os tipos de crimes e as faixas de rendimentos dos habitantes, além da intensidade da violência que se pratica nelas.

Acontece que os crimes contra a vida e contra a integridade pessoal chamam mais atenção, por razões evidentes. E, as zonas mais pobres apresentam mais ocorrências, realmente. Todavia, a seletividade das percepções fica bastante evidente se tomarmos em conta a criminalidade contra o patrimônio.

Essa última forma repugna tanto quanto as duas primeiras, embora menos, naturalmente. E a percepção quanto à subtração patrimonial é bastante enviesada, porque a opinião pública ocupa-se preponderantemente dos eventos mais pequenos e mais visíveis. Claro que a opinião pública sabe e fala dos grandes roubos, mas daquela maneira de transbordamento e indignação moralista pequeno-burguesa.

Com relação à criminalidade menor contra o patrimônio, as posturas são de histeria assassina, muito mais que de moralismo romântico e complacente com o vizinho de porta. Porque o vizinho de porta dificilmente estará a roubar relógios e carteiras, mas pode estar a fazer outras atividades mais rentáveis e menos arriscadas, também criminosas. Há um forte componente de solidariedade de classe social, portanto.

As ações desenvolvidas pelas forças policiais devem ser adequadas aos casos específicos e às tipologias delitivas. Assim, por exemplo, não há outra forma de combater grupos armados de fuzis e granadas senão com policiais mais armados ainda. E não há como combater delitos sofisticados de branqueamento de capitais e de roubos de dinheiros públicos e privados senão com sofisticados instrumentos de inteligência policial.

Essas diferenças não autorizam, todavia, que o tratamento violento que os casos violentos merecem acarrete o morticínio indiscriminado dos que circunstancialmente encontram-se no mesmo lugar. Porque encontrar-se em uma favela ainda não foi formalmente tipificado como crime, embora haja muitos que assim o desejem.

Ao contrário do que muitos crêem, as situações não permitem nem impõem o vale-tudo, que é um estádio posterior às cogitações de necessidade e conveniência. O vale-tudo não é uma categoria cuja apreensão passe por considerações preliminares, assim como uma reação em cadeia de fissão nuclear não é o momento de explicações, justificativas ou de perguntas. Ou seja, no momento anterior toma-se uma decisão e aceita-se o rompimento da cadeia ontológica e teleológica. Os momentos posteriores sucedem-se segundo outro modelo.

O depois rege-se por uma lógica própria e as desculpas ou justificativas que se queiram apresentar são uma impossibilidade. É, como se diz habitualmente, algo que se sabe como começa, mas que não se sabe como termina. Portanto, convém não buscar o vale-tudo, para não se ficar, ao depois, buscando justificativas incabíveis.

Soberania hipoteca-se? Ou, poderia o empréstimo vir de outro lugar?

Antes da crise financeira de 2008, Portugal tinha um défice público inferior ao limite da UE, que é de 03%. Superou-o uma e outra vez, assim como sucedeu com a Alemanha e com a França. Pecadilhos comuns, enfim.

Antes da crise financeira de 2008, o risco de Portugal era considerado menor que o da Itália e um pouco maior que os da Alemanha e França. Hoje, esse risco considera-se altíssimo e faz o país comprar dinheiro a bancos para pagar a bancos a 08% ao ano, patamar estratosférico de remuneração do capital.

Hoje, instalados todos os efeitos da crise financeira – para que não concorreram despesas públicas, nem programas sociais – Portugal tem um défice público à volta de 09 a 10% e uma dívida pública que representa 83% do PIB. São números elevados, mas há coisas muito piores na Europa, bastando lembrarmos-nos da Itália.

Ninguém quer chamar as coisas por seus nomes adequados e parece que não o farão nem mesmo quando os nomes não importarem mais. As dívidas que põem tudo em risco são as privadas, não as públicas. E o euro, superada a euforia do enriquecimento rápido com dinheiro emprestado, é uma trava, não uma solução. Bruxelas é a sede de um grande banco 60% alemão e 40% francês.

O parque de diversões ensolarado de alemães e ingleses não gera receitas suficientes para o padrão de consumo que esses mesmos turistas fizeram crer possível. E, a essas alturas, dá-lo em garantia só vai acarretar uma mudança: as faturas sairão com mais consoantes que vogais.

Se, juntamente com a entrega total da soberania a Bruxelas viessem as maiores plantas industriais da Volkswagen, da Siemens, da Peugeot-Citröen e da Alstom, talvez as coisas até andassem bem. Sem elas, todavia, as coisas vão andar mal, porque há doenças que evoluem melhor sem remédios que com remédios errados.

Estava, há pouco, lendo sobre as respostas e comentários que os irlandeses fizeram a um artigo do economista Kevin O´Rourke. Uma delas constitui uma jóia de serenidade em palavras vulgares. O comentarista anônimo sugeria, entre outras coisas, que seria muito mais eficaz subornar as agências de classificação de riscos que fazer um orçamento apropriado sob a ótica da austeridade.

Claro que ele está certo e claro que será considerado louco ou ignorante, mas está certo. Já que se trata de uma lógica de casino, é muito melhor comprar a opinião dos senhores que dizem o que é bom ou ruim, seguro ou arriscado.

Já que estou a divagar, que mencionei um comentário que será tido pelos sábios como loucura ou estupidez, acrescentarei um meu, sem receios de que seja tido também por loucura ou estupidez: e que tal se a Petrobrás comprasse a dívida portuguesa, sem pedir em troca o parque de diversões algarvio, nem que as faturas sejam grafadas com tantas consoantes?

Museu do Estado de Pernambuco. Três fotografias.

Esse palacete do século XIX, muito bonito, leve, airado, de neoclássico simples e um pouquinho eclético, abriga o Museu do Estado de Pernambuco.

A casa, situada na esquina da Avenida Rui Barbosa com a Rua Amélia, sempre me chamou muito a atenção.  Nas ocasiões em que morei ali por perto, costumava andar a pé e parar, às vezes, para olha-la. Minhas lembranças são de estar pintada em cor de telha, aquele vermelho férreo, escuro, com os detalhes e linhas de frisos em branco. Agora, toda em branco, ficou mais bonita, que a casa é pequena para contrastes cromáticos muito intensos.

Uma vez, fiquei escandalizado com uma visitinha que fiz ao museu. Entrei, andei por todas as salas, passeei nos jardins, detive-me um tempinho na varanda do primeiro piso e, nesse tempo, não fui abordado por qualquer pessoa. Estava mal cuidado, sem visitantes, nem funcionários.

Quem o visitasse no intuito de furtar alguma peça teria, provavelmente, êxito. E quem o visitasse para ver a coleção e a casa tinha certamente alguma tristeza.

Fez-se uma reforma, a casa está leve e branca e contrasta somente com o verde dos jardins. Diz-se que está bem cuidado. Penso que vale a deslocação de duzentos quilômetros para vê-lo novamente.

Façam as pazes com o irracional!

Ontem, tive uma conversa que me deixou impaciente, um pouquinho desconcertado e com medo de estar a tornar-me um estilita. Meu interlocutor anunciou ter crenças espiritistas e pôs-se a falar nas tais crenças, que não são novidades para mim. Até aí, tudo está muito bem, que me interesso profundamente por todos os assuntos de religiosidades.

O problema é basicamente o de sempre: o proselitismo. Desta vez, acrescido de uma irritante cegueira e perda afirmativa da grandeza, da poesia que as promessas mais extraordinárias trazem consigo.

Tudo quanto é religiosidade por aqui confunde-se bastante com os intervalos comerciais d´alguma emissão televisiva. Não se conversa sobre o assunto, parte-se para cima do interlocutor, a tentar convencê-lo de toda uma série de axiomas improváveis, que invariavelmente trarão benefícios palpáveis ao aceitante. Ora, isso é economia religiosa!

Muito contraditoriamente, os manejadores e propagandeadores de axiomas pretendem estar a lidar com as coisas mais lógicas do mundo, pretendem-se fortes em cientificidade e moralismo, afinal todo ele axiomático! Todavia, o axioma é um campo para que moralismos, lógicas e ciências não foram chamados; eles simplesmente não precisam disso.

No caso específico, meu interlocutor bombardeava-me com moralismo pitagórico elementar, ou seja espiritismo, como se fosse a maior descoberta, a mais racional proposição que uma pessoa pudesse fazer. Meia dúzia de conclusões silogísticas feitas a partir de premissas absolutamente arbitrárias. Essas premissas, claro, eram as vontades do Deus, descobertas sabe-se lá como.

Que se suponha conhecer os desígnios d´algum Deus – de um todo-poderoso – não é problema, embora seja uma evidente profanação. Que se ponham os descobridores a jactar-se da posse dessa informação, a extrair conclusões ajudados por Aristóteles, vulgarmente, e a tentar impor isso aos outros já fica bastante cansativo e agressivo.

Toda essa gente reduz os Deuses a si próprios, humanizando-os sem compreenderem que o estão a fazer. Melhor fariam se seguissem os belos exemplos do paganismo helênico e pusessem seus Deuses entre si, em contato próximo com as pessoas,  com as águas e as terras, com vontades, raivas, invejas, vinganças, assim mesmo, indisfarçadamente.

Mas, não. Seus Deuses, de quem conhecem as mais íntimas vontades, são únicos, absolutos, imortais, ubiquos, plenipotentes, eternos, tudo isso que uma mente mais calma percebe ser totalmente incompatível com o conhecimento dos mesmos.

Já renunciaram à mais difícil tarefa de tentar aproximar-se de seus Deuses por meio de mitologias belas e repletas de simbolismos que, no fundo, são um imenso reconhecimento da natureza impenetrável da divindade. Já não constroem para seus Deuses histórias cheias de idas e vindas, de mitos de criação, de fertilidade, de alternância da fartura e da falta. Já não se acredita a sério nem mesmo no Príncipe do Mundo!

Os mascates das religiosidades trazem seus bauzinhos de vulgaridades que chamam de leis divinas, mas que Deuses se ocupariam dessa trivial atividade legislativa? Que Deuses seriam assim tão humanos e simplórios? Que Deuses tão vulgares seriam esses que produzem axiomas para serem bases de silogismos tão formalmente certos?

Pois o meu interlocutor, com a maior naturalidade e auto-confiança do mundo, dizia-me que o pacote que me tentava vender não era uma religiosidade, era uma coisa científica e filosófica! Meu Deus, uma coisa científica? Sim, uma coisa científica, certa, lógica, moral, retributiva por meio de sucessivas depurações.

Eu procuro não agredir as pessoas voluntariamente, desde que perceba que elas não agem deliberadamente para agredir-me. Esse é um esforço que me parece bem tentar sempre. Digo isso para explicar porque não perguntei ao meu interlocutor porque ele tinha feito do seu Deus um objeto de investigação e não um Deus.

E também contive-me para não perguntar-lhe porque têm tanta vergonha de chamar uma religiosidade pelo nome correto, ou seja, porque precisam chamá-la de ciência, melhora algo? Estão assim tão presos àquela anacrônica mitologia científico-positivista do século XIX?

E, como, embora não seja religioso, tenha lido um pouco as escrituras judáicas e cristãs, tentei ser simpático e desviar um pouco a conversa dessa ciência anti-científica. Sem resultados, todavia. Meu interlocutor acusou esses trechos de mitos infantis! Sim, mas ele e sua ciência moral estão totalmente amparados nesses mitos. Ele propriamente é que não poderia postular a inutilidade e puerilidade dessas passagens simbólicas.

Essa gente quer apreender a mortalidade ou a imortalidade com lógica! Quer transforma-las em teorias simples de custo-e-benefício, em justificações morais! Supremos e desesperados loucos. Vaidosos fautores de leis divinas e morais do dia-a-dia. Essa gente acredita mesmo é no Código de Processo Civil e fala em Deus.

O triunfo do homem massa: aridez e esterilidade.

Cansa. Cansa imensamente o mar de superficialidade afirmativa em que se vive. Por todos os lados está o homem massa – é necessário, sempre, dizer que não se trata do homem pobre – a espalhar as vulgaridades que traz na cabeça, os ditos que reputa graciosos, os disparates que reputa expressões de espontaneidade brilhante.

O tipo que vive a espalhar os títulos acadêmicos, sub-acadêmicos, pseudo-acadêmicos ou nada acadêmicos que obteve. Que propõe a irresponsabilidade e que corre para colher algum fruto que ela eventualmente dê e para afastar-se dos resultados desastrosos que provavelmente dará.

O tipo que tem inúmeros direitos adquiridos e quase nenhum dever, nem consigo mesmo. Não tem deveres de cordialidade, de contenção, de nobreza, de esforço, de decoro, de detenção de alguma cultura que vá além da resenha feita por outro igual a ele. Não tem obrigações com outros, com a vida em comum, com o Estado, com a honestidade intelectual.

Acha-se muito seguro de si mesmo e plenamente suficiente com as poucas e descoordenadas informações que ajuntou no cérebro. Fala de qualquer coisa, cita fulano e beltrano que não leu, pratica o oportunismo superficial porque acredita nele com devota sinceridade. Somente nisso não é dissimulado, pois acredita que todos são iguais, rebaixados ao mesmo nível de sub-homem.

O homem massa acredita em uma deformação da igualdade material. Essa crença é uma acusação de tudo quanto não for igual a ele, porque é intolerante com aquilo que o supera, que é menos mesquinho e estúpido que ele. Não percebe realmente essa diferença e apreende-a como se fosse alguma tentativa de mistificação.

Mede as pessoas por sua curtíssima régua e, por isso mesmo, diante do excepcional fica inicialmente perdido, não o compreende, não percebe algo que deva ser medido por outras réguas, e finda por julgar que está diante de alguma representação como é a dele. Retira do excepcional o que tem de superior para poder contê-lo na sua perspectiva vulgar. É, por isso, um destruidor, um assassino de nobrezas, um caçador de estetas.

Quem achar que isso é lamento de um leitor contumaz de José Ortega y Gasset, um leitor que tenta desconfiar de si mesmo todo o tempo, que tenta perguntar mais que responder, está certo. É isso mesmo, infelizmente.

A tristeza do lusco-fusco.

Neste momento em que me ponho a escrever tenho dúvidas se já não disse o mesmo, antes. Parei a pensar e não saí da dúvida, resolvi não verificar. Busquei lembrar e não consegui, talvez por ter pensado tanto nisso que pareceu-me ter escrito já.

Estive por mais de dez anos em um colégio jesuíta, em Recife. Era enorme e no bairro da Boa Vista. Tinha prédios, uma igreja a Nossa Senhora de Fátima, dois campos de futebol, três quadras para handebol, basquete e futebol de salão e vólei.

Tinha árvores: mangueiras enormes ao redor dos grandes espaços vazios, que eram os campos de futebol. Chamo-os assim porque não eram gramados, eram campos de terra. Não perderia a ocasião de chama-los relvados, assim poeticamente, se fossem.

Morava mesmo em frente ao colégio, precisamente em frente à parte mais histórica dele, o Palácio da Soledade, ou Palácio dos Bispos, ou dos Governadores. Este prédio acolhia as classes do que se chamava curso científico, os três últimos anos do ensino regular antes de alguma faculdade.

À distância de um atravessar de rua, ia muito ao colégio à tarde, embora sempre tenha tido as classes pela manhã. Íamos jogar bola, futebol, no campo grande em frente ao prédio do ginásio.

O futebol estendia-se até ao terrível momento em que já não é tarde nem noite. Nessa altura, jogávamos por insistência juvenil, porque já não se via bola nem muita outra coisa.

Viam-se as mangueiras grandes e ainda a fazerem tímidas e escuras sombras e os morcegos que voavam de uma a outra árvore. Morcegos herbívoros refestelavam-se de mangas e desviavam-se das gentes, naquele voo estranho de mamífero.

Essa hora de lusco-fusco é para mim tristíssima. A piorar havia uns auto-falantes da universidade católica, contígua, também dos jesuítas, que tocavam uma ave-Maria às seis horas. Era angustiante essa hora e essa ave-Maria.

O lusco-fusco na Boa Vista sempre foi para mim parecido, estivesse no colégio a jogar bola, estivesse na rua, em outros tempos, já depois de sair do colégio.

Não sei se no colégio era mais triste que depois, ou antes ao contrário. Imagino que a memória mais antiga e juvenil tenha fixado o que eram as realidades associadas àquela hora de transição. As mangueiras, os morcegos, o futebol interrompido pelo escurecimento, minha pouca idade.

Não me entristecem mais os lusco-fuscos, como faziam antes, mas sei o que eles são ou, melhor dizendo, sei o que eles foram e lembro-me de suas imagens, porque é difícil lembrar de sensações.

Quase trinta anos depois – e queria saber quantos anos vive uma mangueira – o lusco-fusco entristeceu-me. Não é que seja ruim, as palavras é que não são suficientemente precisas, mas era parecido com outros crepúsculos.

Sai da residencial, dirigi-me a um mercadinho perto, para comprar vinho. Resolvi antes dar uma volta à quadra, para quê não sei, talvez para ter a sensação que tive.

Passei em frente a dois colégios, mas isso não basta, como não bastam só a hora ou só os morcegos, ou só as mangueiras, que aqui não há. O lusco-fusco entristeceu-me aqui em Braga, hoje.

Durante um ano em que aqui estive não me ocorreu isso, embora soubesse que era aquela hora estranha já conhecida. Sabia de memória e de razão, mas não sentia os efeitos, que, adianto logo, não são qualquer tragédia.

Mas, a linguagem é muito limitada. Como vou dizer que era e não era o efeito do lusco-fusco de Recife, de há vinte e tantos anos? Sim, porque não era, porque não é há vinte e tais anos e não é em Recife e não há mangueiras, nem morcegos. E, no entanto, é uma percepção parecida, embora não angustiante.

E o que é? Vou pensar.

Nostalgia sinestésica. O cheiro do chão de mosaico.

Um chão de mosaico.

A visão de um chão de mosaico faz-me sentir o cheiro seco de casa velha. E o cheiro seco de casa velha traz-me a imagem de um chão de mosaico. Dificilmente os percebo separadamente.

Nunca morei em alguma casa com piso de mosaico, nem que tivesse cheiro de casa velha, aquele cheiro amarelo e seco de madeira, mas tenho nostalgia disso. Acho-os, o cheiro e a visão, que são as mesmas coisas, agradáveis e bonitos, além de reciprocamente evocadores um do outro.

Uma casa nova, moderna, com piso de cerâmica, mesa de vidro, sofás enormes e estofados, objetos decorativos de metal e vidro, painéis escuros, TVs planas e imensas, não tem cheiro para mim. Quase não tem cor, também, porque não a pode ter sem ter cheiro.

Uma casa de pé direito alto, portas de madeira com bandeiras em cima, tem cheiros ventilados e cambiantes entre o amarelo e o verde. Cheiro velho dentro e novo do corredor ou alpendre para fora. Tem cheiro de panos, nos quartos. De fotos antigas e de cadeira de balanço, na sala. De nada, no banheiro de paredes meadas de azulejos brancos.

Os mosaicos do chão da casa de meu bisavô paterno tinham cheiro de café. E, claro, como sou bastante óbvio, café tem cheiro de mosaico com bolacha cream cracker, cigarro apagado. Farmácia tem um cheiro verde de seringa de vidro bem transparente e…. de mosaico.

Bem, é melhor deixar-me disso, senão vou acabar comprando uma casa velha.

Fanatismo religioso e política. Comentário ao de Julinho da Adelaide.

Acender as fogueiras é fácil e bonito, difícil é apagá-las, depois.

Nós temos, no Brasil, um défice de cidadania enorme, então as pressões sociais passam por canalizações corporativas. As religiões, que são corporações, entram no jogo para canalizar um tipo de pressão.

As corporações religiosas voltam-se para a obtenção de poder social, mais ou menos suave, consoante a época. Quando estão seguras de deter uma suficiente parcela de poder social, suas aventuras explícitas no âmbito político são mais discretas e pouco frequentes.

Por exemplo, em épocas de seguro poder social do catolicismo romano, no Brasil, não precisavam seus hierárcas atuarem diretamente no espaço político. Podiam fazê-lo no segundo plano, certos de disporem de robusto controle.

Á medida que recua seu poder social, precisam investir, primeiramente, em linhas semelhantes às dos que avançam. Assim, surgem, por exemplo, manifestações como a canção nova, um monofisismo de baixo nível. É, em poucas palavras, identificar uma disputa e optar por oferecer o mesmo que os que avançam.

O mercado das almas é daqueles com propensão marginal ao consumo quase ilimitada, e daí é possível essa pulverização enorme que se observa. Quase tudo que se ofereça é passível de ser adquirido, desde que tenha uma e outra tinta de novidade, que nesse âmbito não se está imune à moda.

Acontece que o Brasil é tremendamente liberal em termos sociais, ou seja, é tremendamente dissoluto de costumes. Convivem formas estritas e rigorosas com discursos estreitos, em um paradoxo aparente. O ponto de articulação e a explicação desse aparente paradoxo é a hipocrisia. Em doses cavalares, como as temos, ela desempenha a função do óleo que suaviza o contato das engrenagens.

Uma contraposição possível, no sentido de reduzir essa dispersão religiosa, seria o estímulo a uma religião cívica nacionalista, um pouco à semelhança da simbologia varguista. Claro que isso tem os riscos evidentes da sua semelhança com os nacionais socialismos, mais frequentemente chamados por seus nomes comerciais de fascismo e nazismo.

Essa enorme pulverização tem alguma vantagem e vários riscos. A vantagem parece-me residir em que torna improvável o triunfo dominante de uma só corporação, o que permite a continuação da dinâmica social. As desvantagens encontram-se na indigência intelectual e moral que está por trás da possibilidade de tantas denominações, tão assemelhadas, que à lupa, parecem consensuais.

Ora, o consenso é maior quanto menor for o conteúdo em torno a que se forma. A idéia mais amplamente sedutora das almas por força será a mais vazia, menos nobre, menos sofisticada, mais radical, menos sutil. Com massas – em todas as classes, sempre é bom destacar – tão aproximadas por pontos de comunhão enormemente singelos, que esperar senão movimentos de hordas volteantes e erráticas?

A identidade religiosa só entra no jogo político de forma normal quando ela é o catalisador de uma identidade nacional. Daí que, na Irlanda, por exemplo, faz sentido afirmar-se católico em contraposição a reformado, porque isso é afirmar-se irlandês em contraposição a britânico. Assim, na verdade, o religioso é quase puramente político e nacional, na sua afirmação exterior. Claro que isso não impede que o religioso seja propriamente uma questão de relação com a divindade, para cada pessoa em sua experiência.

Mas, quando o religioso, mormente tão despido de reais conteúdos religiosos, mete-se no político sem desempenhar esse natural papel de identificador nacional, ele é um elemento estranho e desnecessário ao palco político. Prestará um profundo deserviço, confundindo coisas que não são iguais, nem apreensíveis a partir da mesma metodologia.

No Brasil, a mais forte característica social é a confusão entre o privado e o público, no que se refere ao tratamento do público. A inserção das religiosidades nesse ambiente piora as coisas, já ruins, pois insere o meta-privado na discussão do público!

Os políticos, ao contrário do que se convencionou crer, não calculam bem os riscos que tomam. Ou só os calculam bem no curtíssimo prazo, ou, ainda, se os calculam bem são profundamente irresponsáveis e pagam para ver. Com relação à incitação religiosa, eles portam-se como o sujeito que descobriu uma nova bomba e não vai deixar de usa-la sob qualquer argumento, embora saiba a terra arrasada que ela produzirá.

Precisamos do Grande Juliano. Ou, não precisamos de ativismo religioso na política.

Minha única fonte é eruditíssima e bem escrevente: Gore Vidal. Inclusive, aproveito a oportunidade para sugerir a quantos gostem de boa literatura esse magnífico romance histórico: Juliano.

O Imperador cresceu em meio a padres e monges ortodoxos e teve grande ocasião de observar-lhes as intrigas e, inclusive os constantes assassinatos a que se entregavam mutuamente as correntes divergentes do cristianismo triunfante. Foi educado no cristianismo que, a partir de Constatino, não viu mais restrições para conquistar as almas das pessoas e os postos da burocracia imperial.

Juliano voltou-se ao paganismo, até de forma mística, ele que era um iniciado nos mistérios greco-egípcios. Tentou defender o paganismo da extinção e das perseguições violentas dos cristão, que, quando não tornavam templos em igrejas, simplesmente punham-nos abaixo.

Pelos cristão – a quem chamava galileus – nutria algo como um desprezo estóico, mas não tomou atitudes contra eles, não os perseguiu. Parece que sentia repugnância por perseguições e dogmatismos mesquinhos. Trabalhou na reconstrução de vários templos, alguns deles jóias arquitetônicas então em ruínas.

Cercou-se de filósofos e místicos o que foi até motivo de chacota, com relação a místicos como Máximo. Não laborou para impor o paganismo, nem para destruir o cristianismo, apenas para que fosse possível a alguém cultivar suas crenças e não apenas uma só crença autorizada.

Ou seja, Juliano não instilou a religião na administração do Estado, embora não escondesse a sua própria. Nesse sentido, foi um exemplo de magnanimidade e laicismo raríssimo, notadamente em contraste à intolerância cristã que se percebia por toda parte e em todas as inúmeras intrigas que permeavam a igreja e a burocracia.

Claro que isso daria errado e que esse filósofo, estóico, místico e grande soldado iria perecer. O preconceito, a mesquinhez e o dogmatismo reunem as melhores condições para triunfar, quase sempre. Juliano foi assassinado em combate, ao que tudo indica lancetado no abdome por um soldado galileu ressentido, de suas próprias legiões.

Recentemente, a grande jogada eleitoral que foi a candidatura de Marina Silva, a partir de uma plataforma vazia, de suposto ecologismo, revelou um aspecto perturbador, subjacente à enorme votação que ela teve. Marina é cristã reformada neo-pentecostal. E ela obteve, evidentemente, uma expressiva votação de motivação religiosa, na esteira daquela lógica que se explica muito bem pelo lugar-comum crente vota em crente.

É claro que nas condições temporais, espaciais, sociais, econômicas, políticas e institucionais que temos, isso é uma tremenda estupidez. Porque a fanatização religiosa não cumpre nenhum grande papel histórico, não é elemento catalisador de forças para uma cruzada contra infiéis que estejam a ameaçar-nos do outro lado de alguma fronteira.

Na verdade, é a perda da ocasião de aumentar-se o nível de politização da sociedade, o que é desejável porque política é opção pública. Sendo o Estado laico, não é de mínima importância que um candidato seja crente ou descrente e é a consagração da falta de critérios votar-se porque alguém segue ou afirma seguir as mesmas regras que supostamente devem dirigir as relações humanas com alguma divindade.

Importante é que se discuta para onde irão os dinheiros públicos, o que fará o poder público, o que ele permitirá, incentivará ou proibirá. Quanto ele se endividará e para quê. Como ele assegurará a subsistência das pessoas na velhice. Como ele cumprirá suas obrigações constitucionais de prover saúde e educação.

Ora, a inserção da identidade religiosa no debate político é um risco que estão a assumir para lograr efeitos imediatos. Uma estratégia de despolitização e imbecilização perigosíssima a longo prazo.

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