Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 11 of 17)

Amanhã tem caril.

Escrevo agora somente por escrever. Bem, essa foi a fórmula comum e mais simples que achei para dizer que divago ou que tenho tais e quais saudades. Tudo misturado e bem difuso: vontade de escrever, saudades, mania de comida, memória gustativa e olfativa…

Há dois anos e tantos conhecíamos um restaurante indiano, em Braga. Levou-nos a ele o Miguel, sujeito inteligente e capaz de perceber o que poderia agradar. O restaurante tem nada demais, além de uma comida boa. O dono é uma figura curiosa, diz que é sikh, aponta como garantia de pertencimento a esse povo originário do norte da Índia um bracelete fino, prateado, que trás no punho.

Fala um português razoável, diz que acha mais fácil entender alemão, comenta as ambiguidades da língua nossa e de Camões, que tem várias palavras para a mesma coisa, reclama de vizinhos brasileiros, que são piores educados que os caboverdianos. Enfim, ele faz o papel do indiano legítimo, que é.

Esse restaurante indiano faz parte da minha memória bracarense. A comida boa, a conversa com Miguel, o café depois, depois casa, a gata amarela esperando-nos ou sabendo que chegávamos, o livro, a crônica a ser escrita, o vinho de três euros, o futebol na televisão velha que era quase preta-e-branca.

Hoje à tarde, Braga assaltou-me de surpresa, no trabalho. Ela costuma voltar-me em outras ocasiões, mas hoje foi no trabalho, à tarde, sem pedir licença, sem me dar mais que um leve desconforto de estar aqui, assaltou-me só de saudades inesperadas.

Na verdade, esse assalto não foi o que me inspirou a fazer o caril de amanhã. Já o vinha planejando, mas ele tomou sentido diverso da simples idéia de cozinhar qualquer coisa. Virou caril de saudades, o que vai me tornar mais condescendente com o resultado, provavelmente.

Não fui apresentado ao caril no tal restaurante em Braga. Já o conhecia e apreciava, por conta dos bons que faz Laura, que tem ascendência goense e sabe fazê-los muito bem feitos, um pouco suavizados no picante, para não desagradar os paladares mais sensíveis.

Pois, amanhã será caril de perna de porco e peito de galinha. Eles já estão em sumo de uma laranja – invenção que não sei se resultará bem –  um pouco de sal e gengibre. Amanhã saberei…

Razão, lógica e o crime continuado de Descartes.

O homem propôs que pensa, logo existe. A proposição inspira genialidade – e não é mesmo alguma tolice – mas deve-se vê-la ao contrário, ou em suas outras formas possíveis. Ela implica não apenas um só sujeito cognoscente, mas apenas o sujeito cognoscente. Ela é uma ontologia sem objeto.

Assim, só o sujeito existe, o que torna o problema da existência um não-problema. Essa maravilhosa ontologia racional é a negação pura e simples do ser, portanto, uma vez que confunde pensar – sem dizer o que seria – com ser. Desta forma, o objeto, que é o objeto a que se reporta o pensar e que, por sua vez, define o ser, não existe!

Se eu existo porque penso, o que não pensa não existe e, portanto, meu pensamento, ou é sobre nada, ou é sobre mim mesmo. Como seria estranho que meu pensamento – que define meu ser – dirigisse-se a nada, tenho que admitir que só pode dirigir-se a mim mesmo. Então, sou sujeito e objeto e o resto é nada.

Todavia, se o resto é nada, porque não pensa e consequentemente não existe, meus problemas são pouquíssimos. Não preciso, em tal modelo, pensar o tempo, por exemplo, pois ele não existe, já que não pensa. Penso eu e só posso pensar sobre mim, já que todo o resto é não existência.

Isso, que vai enunciado brevemente, não é lógica, é racionalidade. Por isso, é dramático, mas não é trágico! A razão é dramática, é aprisionadora, a lógica não no é. A racionalidade aprisiona, mas não é inescapável, ao passo que a lógica, sim, o é.

Descartes trabalhou, quisera-o ou não, para o jesuitismo. Sua existência a partir do pensar não é humanismo, senão homenagem a uma existência recebida na forma de participação mais ou menos deformada no pensar criador, esse sim o pensar absoluto, que não precisa de objetos cognoscíveis, porque os teria criado.

O transplante do pensar absoluto para as criaturas é concepção que oferece obstáculos intransponíveis. O pensar dos seres que o receberam incompleto do pensador-criador não pode ser o mesmo do dador, senão estariam todos divinizados e seriam criadores. Para tentar evitar parte do paradoxo, aceitou-se divinizar os homens, parcialmente, mas não se aceitou fazê-los criadores.

Ficou-se pela metade. O homem pensa porque recebeu a faculdade do pensador-criador; existe porque pensa, já que existe pelo que tem de comum com o criador, e fica impossibilitado de pensar qualquer coisa, porque nada existe, já que nada além dele pensa. Claro, pode pensar no criador, mas tampouco o pode conhecer integralmente, porque ele é, ao final e ao cabo, insondável.

Um homem assim concebido vai buscar saída para seu pensar sem objeto possível. Vai tentar tornar-se ele também criador, mas de criaturas não pensantes, o que não resolve o problema, já que as suas criações não pensantes não existem, porque… não pensam! Ele está condenado ao círculo, à prisão sucedida por nova prisão.

Desintegração dos Estados Unidos da América.

Proposições inteligentes, e carregadas de obviedade, portanto,  costumam esbarrar em obstáculo trivial: querem ser profecias e daquelas com data certa de acontecimento. Como nunca ocorrem na data que o profeta anunciou, ficam desacreditadas como se fossem bobagens. Mas, acontecem.

Um professor russo, de nome Panarin, disse, em 2009, que os EUA iriam desintegrar-se em 2010. Ele teria começado a pensar nisso em 1998, quando surpreendeu-se em perceber tendências à desagregação. Alinha que os colapsos econômico e moral e a imigração levarão a guerras civis fraticidas. Não sei, realmente, porque Panarin fez a bobagem de falar em 2010, quando podia ter silenciado quanto a datas que, afinal, pouco ou nada importam.

Essa idéia não é nova, como não costumam ser novas as grandes idéias. Elas são, no geral dos casos, o resultado da reunião de muitas informações aparentemente dispersas e a percepção da aproximação do episódio. As profecias, como as previsões sísmicas, ganham precisão na razão direta da proximidade do profetizado.

O tal professor diz que resultarão dessas guerras quatro estados: um da Califórnia, um do Texas, um do meio e norte e um do Atlântico. Afirma que o Alaska voltará a domínio russo e que o estado do Atlântico integrará a União Europeia.

É quase irresistível apontar que o profetizador tem à disposição um modelo relativamente semelhante, que ele deve ter usado mesmo, que é a desintegração do império romano. Alguém mais apressado pode objetar que o modelo não serve, porque Roma ter-se-ia desintegrado de fora para dentro. Isso é bastante discutível, porque os bárbaros estavam dentro do Império e há muito.

A desintegração romana deu origem à Europa e ao Norte da África, divididos em Estados. E deu lugar à formação de um império bizantino, que nada mais era que uma enorme Grécia organizada a partir da ortodoxia.

Essa desintegração dos EUA seria muito mais interessante para o mundo que seu declínio unido e lento. Primeiramente, se ela se desse a partir de guerras civis, como anunciou o professor, seriam evitadas guerras externas, que certamente ocorrerão se o país decair unido. Seria melhor, principalmente para os países habitualmente agredidos e também para os vizinhos das Américas.

Evitaria a difusão de certo fundamentalismo neo-pentecostal, porque estariam ocupados em brigarem internamente e lidarem com o próprio empobrecimento. Ou seja, os inimigos do mundo seriam fracionados em inimigos entre si mesmos.

Um problema grande seria a partilha dos arsenais nucleares, que provavelmente atenderia simplesmente a critérios geográficos, já que as bombas estão por todo o território. Outro problema grande seria o fim do dólar como moeda de reserva mundial, porque um dos estados resultantes não teria condições de manter tal moeda. Do ponto de vista do comércio mundial, as coisas não seriam tão complicadas quanto deverão ser com um cenário de decadência unificada, pois o consumo tende a reduzir-se de qualquer forma.

O certo é que se isso acontece assim, no cenário das guerras civis, deve levar muito tempo e esse tempo será de enorme desarranjo no mundo todo, com a fuga do dólar e o medo que a coisa torne-se em ataques para todos os lados, aleatoriamente…

David Cameron e a degeneração da classe dominante. Ou, Menelau ao contrário.

Em Esparta, a educação era dura para quem a tinha. Dez ou quinze por cento da população tinham que dominar os restantes pela espada. Eles, os espartanos, eram retirados de suas famílias muito novos.

As mães, ao entregarem seus filhos à educação estatal, davam-lhe o escudo e a espada e diziam-lhes para retornarem, ou com a primeira em punho, ou deitados sobre o segundo. Ou vitoriosos, ou mortos! Claro que, mães que eram, diziam-no obrigadas.

Os jovens espartanos eram estimulados, nessa educação, a tudo fazerem, a tudo arriscarem, a matarem, se quisessem, um escravo ou estrangeiro. Mas, se fossem descobertos, levavam uma surra que os deixava a beira da morte, eram largados a esmo, depois de espancados, para morrerem. Ou seja, tudo era possível, desde que desse certo, desde que não fossem descobertos. Havia risco e o erro não se pagava com dinheiro, mas com dor de pauladas mortais.

A emulação atual de aristocracia tomou de Esparta a parte fácil. Tornou em privilégio o que era ensino de bravura e de assunção de riscos. Um rapaz oriundo de Eton – escola inglesa que se diz aristocrática – fazia o que eles fazem: vandalismo de ricos. É interessante notar, falando-se de ingleses, que não brigavam nas ruas, propriamente.

Enchiam-se de cerveja ou uísque e saiam quebrando as lojas vizinhas. Chegava a polícia e os prendia. Chegavam os pais deles – ou seus prepostos – e pagavam indenizações pelos danos causados por brincadeiras juvenis!

Disso saem primeiros-ministros da Inglaterra. Assim como saíram do grupo dos desertores Presidentes dos EUA, como George Walker Bush e William Clinton. E vândalos como Cameron chamam de vândalos quem faz o mesmo, no que diz respeito às quebras de vidros…

Bem mais que 36 Rafales e 05 submarinos…

É terrível que a ingenuidade afirmativa tenha-se tornado postura bonitinha, cool, como se diz em inglês. Digo afirmativa, com o qualificativo a distingui-la marcadamente, porque ela é o disfarce voluntário, ou seja, é a festa à fantasia.

Agora, que temos um Ministro da Defesa que não trabalha para a Embaixada dos Estados Unidos da América no Brasil, algumas coisas podem ser levadas a sério de forma mais evidente.

Estamos muito envolvidos a discutirmos as formas de submissão financeira e a esquecermos as tradicionais, como se a primeira excluísse as segundas. Ou seja, vemos sofisticação na primeira e praticamente aceitamos-la como  inevitável; isso dá-nos a confortável impressão de superação das formas clássicas de roubos materiais, como se uma etapa rude tivesse sido vencida.

Petróleo, minérios sólidos e outras coisas classificáveis como recursos naturais roubam-se e precisam serem roubadas, senão seriam compradas a preços elevadíssimos. Não convém compra-las a preços altos nem rouba-las de forma a que os saqueados percebam-no claramente. Por isso, a indústria de convencimento dos roubados a se deixarem roubar é a terceira maior existente, atrás somente do dinheiro de promessa de pagamento e dos armamentos.

Por isso, há todo um suporte discursivo para a inexistência de fronteiras, para a difusão da idéia de recursos naturais sem donos, patrimônio da humanidade. Por isso, difundem-se as identidades culturais seletivas; difunde-se o progresso material e tecnológico, como se não tivesse qualquer suporte material e como se a energia que sai da tomada viesse do nada.

Por isso, todas as massas inclinam-se a pensar que correm somente o risco de serem assaltadas, na esquina, por algum meliante comum. Por isso, as classes médias dos em desenvolvimento pensam que o mundo é único, embora abaixem as calças para umas apalpadelas dos agentes alfandegários de Miami, quando vão comprar perfumes, roupas feitas ou gravatas coloridas.

O Brasil é, talvez, o país mais roubável do mundo, considerando-se sua vulnerabilidade. Claro que o país mais apetecível do mundo é a Rússia, mas essa tem 3.000 bombas e uma máfia interna – abstraindo-se dos que foram para a Inglaterra e dos que foram desaparecidos – que cuida das bombas e pensa em russo ou em grego, o que dá no mesmo.

Já é evidente que haverá uma redução marginal no consumo de óleo e minerais nos EUA e na Europa, que empobrecem. Mas, é claro, mesmo que não seja evidente para as massas, que tal redução do consumo de uns não significa a redução global. Também é claro que a redução pequena de consumo norte-americano e europeu não significa que aceitarão preços maiores.

Já é evidente que temos uma das cinco maiores reservas de óleo e de minerais, ferrosos e raros, do mundo. Evidência atrás da outra, a próxima é que teremos que negociar essas coisas como donos delas. Excepto se for possível dar outra volta no parafuso da compressão social, o que parece, hoje, um tanto complicado.

De oito anos para cá, produziu-se um efeito interessantíssimo no povo brasileiro. Passou a viver um pouquito de nada melhor, sem que os dominadores de sempre tenham passado a viverem pior. Ou seja, dificilmente aceitarão um regresso…

Mas, como esse povo entende nada do que acontece, uns julgam que é possível dar a nova volta ao parafuso, contando com desinformação e repressão. Ora, em escalas como as brasileiras, pode dar muito errado, principalmente com o desenho atual. Volto a dizer, a genialidade de Lula foi reduzir minimamente a miserabilidade de quem já tinha condições de perceber o sem razão de sua exclusão total. Nunca o perdoarão por isso, por ter criado uma massa que não aceitará retornos.

Para que não haja retornos, será fundamental apropriar-se do resultado da venda do que abunda nestas plagas. E, se não houver quem compre estas riquezas, que sejam consumidas aqui.

Garantir isso implicará muito mais que os declarados 36 Rafales e 05 submarinos nucleares que o Brasil deve comprar. A aquisição deve ser muito maior que isso, embora não precise aproximar-se da escala selenita das compras militares que se vêm por aí.

A oportunidade fantástica que se abre é de tornar brasileiros setores que nunca o foram. E não se trata apenas de dar um porta-aviões de presente à Marinha de Guerra, ou aviões de segunda linha à Aeronáutica ou ainda tanques e obuses velhos ao Exército. Tampouco, trata-se de fazer uma emulação mais pobre do complexo industrial-militar que tomou metade do poder nos EUA.

Trata-se de tornar uma riqueza potencial em atual e distribuída e de fazer nascer um setor interessado na defesa do país, profissionalmente. Ao contrário de um setor que vai às festas à fantasia, recoberto de medalhas de glórias supostas, e funcionário de interesses outros, dócil a um embaixador norte-americano.

Não será tarefa fácil por 50 caças de ultima geração e 15 submarinos nucleares a operarem como defesa de quem eles podem matar. Mas, é tarefa única a ser elegida, porque a outra é torna-los apêndice dos tentáculos dos ladrões.

Burguesia, tecnocracia e democracia. Dois comentários que ensejam uma postagem.

Meus caros Alcino Miguel e Daniel Maia fizeram comentários à postagem precedente, que merecem tornar-se eles próprios em postagem. A compreensão do que é e que papel desempenha uma camada média social tecnocrática – que compreende a burocracia pública, como subconjunto – ensejou a conversa. Sim, conversa em nível de proposições que me faz ter saudades dos interlocutores em questão. Precisos, conhecedores de história, sem receios de pensarem.

Daniel Maia:

É interessante notar o surgimento desta tecnocracia no ocidente a partir das necessidades da burguesia alemã. Agora, mais curioso ainda é perceber que aquela é, senão, apenas uma variante da classe dos ditos servidores públicos que, desde que existe Estado, representam uma sombra do próprio poder, sob qualquer forma que ele seja exercido. Sabe-se que a “tecnocracia” ainda é hoje um dos forte pilares de organização política e social dos países que pretenderam adotar o socialismo. E há ainda um sem número de histórias desses funcionários na China dinástica, na Pérsia, no império Inca, e na Roma de qualquer época, que chegavam a ser mais importantes que o próprio soberano. Parece-me que, quer estejamos nos referindo aos complicados mecanismos de produção que inventamos nos dois últimos séculos, quer nos reportemos aos escribas dos tempos mais antigos, estamos tratando da mesmíssima coisa, apenas com roupagem diversa. Só o anarquismo ou comunismo verdadeiro prescindiriam deles.

Alcino Miguel:

Caro Andrei,
Daniel Maia,

Julgo importante distinguir uma confusão gerada com o epítetismo “burguesia tecnocrata”.
Na verdade, este grupo, como fala Andrei, formado por uma grande massa média, não é propriamente burguês, mas, meramente seu herdeiro; fiduciário dos ideais que a burguesia brandiu com as revoluções liberais.
A burguesia conquistou o seu lugar na história destronando os aristocratas; lutou, empreendeu e conservou.
A burguesia é ciosa do seu mister, do seu lucro e da sua poupança. O seu capitalismo necessitou de liberdade e segurança para se movimentar porque disso depende o seu modo de vida!
Esta classe não é empreendedora é servente, não procura o lucro apenas a utilidade/proveito imediato, não poupa apenas consome!
Não é burguesa, está abaixo desta servindo-a!
É tecnocrata na atitude, na mentalidade! A função sempre se manifesta no índividuo é certo, a tecnocracia está ao serviço das sociedades, correctíssimo Daniel.
Porém, o poder é o lugar da evasão, do arbítrio. O dramático do regime democrático é está enfermo da atitude desta grande massa! Mas!, há quem ainda exerça o poder e estes colocam-se discretamente mesmo ali ao lado do poder democrático.
Um abraço.

Quem manda no mundo?

Este é o título – sem a interrogação – de um ensaio componente do livro A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset. É muito característico dos textos de Ortega y Gasset que apresentem suas premissas inicialmente, o que se harmoniza com a clareza insistentemente buscada, e obtida, por ele. Adiante, transcrevo um trecho inicial desse ensaio, onde se apresenta um conceito básico:

Por mando não se entende aqui primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem: essa relação estável e normal entre homens que se chama mando não se apoia nunca na força, antes pelo contrário; porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse aparelho ou máquina social que se chama força.

Nesse texto, o autor investiga a reiterada assertiva de decadência europeia que se fazia no tempo. É fundamental apontar que tempo é esse: ele escrevia nos finais da década de 1920. Então, emergências como as dos EUA e da Rússia recém bolchevique apoiavam certa histeria decadentista em uma europa que parecia cansada, mas que ainda teria energias para mais uma grande guerra.

Muito inteligentemente, Ortega percebe que Moscou e Nova Iorque não são o novo relativamente a Paris, Berlim ou Londres. Antes, saíram as primeiras das segundas, mesmo que se queiram ver diferenças quantitativas muito grandes. Percebe que a articulação mundial é imensa, desde o século XVI, o que constitui uma grande opinião pública conectada.

É engraçado para mim notar, a cada releitura de muitas a que me entrego, como o autor é terrível para os superficias e dados a modismos e lugares-comuns. É destruidor mesmo e agressivamente revelador de quanta coisa se chama de novidade mesmo tratando-se de coisas antigas. Apontar que a interconexão do mundo é imensa desde há muito devia fazer corar as gentes faladoras em globalização e outras tolices do gênero.

O meio a permitir essa grande unificação mundial não é tratado no ensaio mencionado. Parece-me que esse meio tem necessariamente que ser uma espécie de linguagem. E tal espécie de linguagem é a moeda, que é, ao mesmo tempo, portadora de um significado e medida de si e das outras coisas. É também mercadoria, porque é medida de si mesma. É signo, medida e mercadoria, o que faz dela uma linguagem especialíssima.

Precisamente a partir do século XVI, necessita-se de uma linguagem que sirva à acumulação mercantilista sem fronteiras e precisamente então a moeda metálica e, posteriormente a obrigação em papel, servem a tal necessidade. À medida que se aproxima o século XIX, fica mais evidente o caráter de mercadoria da moeda, algo que não entra na sua conceituação como uma linguagem.

Todavia, a  moeda mercadoria é uma tremenda ampliação da moeda signo de valor e, como mercadoria, ela impõe-se como o elemento de ligação por excelência, reforça sua função globalizante, para usar um modismo já meio gasto.

Um outro ensaio do mesmo livro, mais interessante que esse do título, chama-se Mandam as montras e é de maio de 1927. Nele, Ortega analisa o que pode indicar um período crematístico, ou seja, um em que o dinheiro – khrémata – manda. É bastante sagaz que o autor busque os indicativos dos períodos crematísticos, porque o fazendo evidencia a ocorrência de períodos não-crematísticos.

Ou seja, não é sempre que o dinheiro manda. E ele é o único poder social que, identificado, nos enoja, enquanto até a força bruta pode contar com alguma simpatia, diz Ortega y Gasset. A imensa verdade disso percebe-se na insistência com que o poder crematístico se dirfarça, pois ele é sabedor da repulsa que sua visão nua gera.

Hoje, o dinheiro manda no mundo. O dinheiro de oito, dez ou vinte famílias de banqueiros manda no mundo, manda nos recursos energéticos, manda nos recursos alimentares e determina onde e quando convém haver guerras. Manda em tudo que queiram mandar nos governos, deixando-lhes margens residuais para assuntos que não interfiram nos interesses dos oito, dez ou vinte.

Os governos mandam por exclusão, ou seja, naquilo que os donos do dinheiro não queiram mandar. Eles ocupam um campo residual e subordinado relativamente a cinco ou dez grandes casas bancárias alemãs, francesas, inglesas, italianas e norte-americanas. Eles são operadores imediatos dos sistemas de geração de débitos e recolha de impostos.

Isso não ocorre assim sempre, todavia, pois há ciclos. Nada obstante, os períodos de transição sempre reclamam do mando do dinheiro, mas nem todos o vivem realmente. Quer dizer, o mando do dinheiro não é efetivo em todos os momentos em que tal acusação se faz. Fica muito clara a percepção de não predomínio crematístico em alguns momentos se levarmos em consideração que o dinheiro esteve sempre nas mesmas mãos, mas o poder não.

Tomo emprestado outro trecho de Ortega y Gasset, muito esclarecedor:

Se os Judeus possuem hoje o dinheiro e são os donos do Mundo, também o possuíam na Idade Média e eram a escória da Europa.

Houve, na Idade Média, detenção do dinheiro pelos judeus e vontade de esconder-se, ao mesmo tempo, o que revela ausência de mando com presença de dinheiro. É bom lembrar-se disso, para não ficar refém de idéias fixas, tão perigosas que são.

Vive-se, hoje, o poder do dinheiro, e consequentemente de quem o possui, porque os possuidores também têm a possibilidade de mando a partir do discurso, ou seja, a sedução da opinião pública. O Mercador de Veneza tinha dinheiro, certamente, mas seus devedores tinham muito mais mando que ele. Quinhentos anos depois, o Mercador de Veneza tem o mando e não apenas pelo dinheiro: ele está às claras como modelo descoberto, ofertado e seguido.

Interessa notar a construção de uma base discursiva a permitir o pleno mando dos possuidores do dinheiro. E, claro, interessa apontar que os grandes detentores do dinheiro são judeus, o que não é qualquer acusação além de um fato objetivo. Essa construção discursiva evidencia-se na grande desculpa que é a matança de judeus pobres pelos alemães nazistas e na atual demonização de árabes islamitas.

O primeiro fato histórico serviu à perfeição aos grandes banqueiros judeus, muito embora não se possa dizer que tenha sido planeado por eles. O holocausto permite aos judeus em geral, e aos banqueiros em particular, reivindicar uma piedade eterna e obstar qualquer discussão que lhes seja inconveniente. O segundo fato, que hoje se vive e vê crescer, permite acabar ou minimizar sua imagem negativa.

Sim, o espírito de cruzada que embasa as atitudes dos EUA e dos países europeus é voltado contra a figura do radical islâmico. Essa figura é identificada àquela do árabe. O árabe islâmico – demonizado – é posto como a antítese do judeu. Portanto, por contraste, a demonização de uns é a homenagem de outros. Está pronta a base garantidora do mando do dinheiro, porque podem ter a opinião pública.

Quem já viu um homem ser esfaqueado?

Lia e relia o poema de João Cabral de Melo Neto, A palo seco, postado mais abaixo. Não se trata aqui de falar analiticamente da obra do poeta, o mais grande deles brasileiros. Nem de fazer associações fáceis ou de lembrar a lâmina na obra cabralina. Ou, talvez se trate exatamente de fazer isso. Não sei.

A lâmina da faca é uma imagem tremenda, imagem clara, mesmo que a lâmina não brilhe. A faca e a facada são coisas nossas, nordestinas, ou eram. A faca acrescida de sol e seco é uma faca ainda mais tremenda, que se molha de sangue, molhado e quente. Não, ela não sai molhada, é tentativa poética vã: ela sai seca.

Quem já viu um homem ser esfaqueado talvez entenda a minha confusão. Posso lembrar-me quadro a quadro do esfaqueamento que vi e ainda lembro da faca e ela era só lâmina, na entrada e na saída. Rapidíssima a faca e a facada, dada de lado, a faca a entrar deitada, como convém. E não há romantismo nem poética de faca revirada e volteada; a facada é rápida, direta, firme, entra e sai.

Ela sai seca, o sangue sai depois. A mesma faca foi, deixou de ser, pois entrou, e torna a ser, quando volta. A mesma faca fria e vulgar; lâmina enferrujada que ainda assim brilha; é o ponto de fuga do quadro gravado em quem a viu.

A facada tem ligação mecânica, ela não trai a lógica. Pode ser feia ou bonita, mas não subverte o mundo. Ela é acompanhada quadro a quadro, do início ao fim. O tiro de bala é diferente. Quem já viu um homem ser baleado deve perceber o que digo. Entre o que atira e o que é baleado, não há a bala, não há nada. Será por isso que o tiro fica bem no cinema e a facada não?

 

Cozinhar com saudades…

A rotina põe a descoberto a saudade. Experimente-se fazer alguma coisa que sempre se fez em companhia de alguém sem essa presença. Surge o estranhamento que atende bem pelo nome de saudades.

Desempenho minhas atividades de cozinheiro de final de semana em condições muito favoráveis. Os ingredientes que me interessam, posso tê-los sem muitas dificuldades. O tempo, no domingo pela manhã, não costuma escassear, a vontade de cozinhar não me abandona nesses dias e os destinatários da diversão somos Olívia e eu, apenas.

Para mim, é ótimo que sejamos apenas os dois a experimentarmos essas comidas que nem sempre resultam em grandes coisas. Não gosto de cozinhar para muita gente. De um lado, conto com a complacência de Olívia, que consegue amenizar os maus resultados sem, contudo, mentir. Por outro, não gosto da lógica do julgamento. Não que não queira o mau julgamento, mas que não conseguiria disfarçar meu desprezo por ele, como se dissesse: ora, não estive e preocupar-me em agradar especificamente o teu ou o teu paladar! Seria grosseiro e arrogante, realmente.

Ontem, Neide deu-me uns pedaços de galinha muito bem temperados. Alho, alho e mais alho e um pouquinho de sal, como tem que ser. A galinha é das carnes menos naturalmente saborosas que há, portanto convém que apure os temperos com antecedência. Esses pedaços conviveram com a liliácea por mais de vinte e quatro horas!

Hoje, pela manhã, estavam megulhados em um caldo de sumos do galináceo, sangue e alhos esmagados. Precisava de pouca coisa mais.

Entrou em cena a grande potencialidade de uma assadeira usada, sem se ter lavado antes. Explico-me melhor, para não sugerir desprezo higiênico. Ontem, tinha assado uns espetinhos de carne e a pouca gordura dela ficou na assadeira, porque tive preguiça de lava-la em seguida ao repasto. Hoje, a preguiça era a mesma e percebi que aquela gordura fria e gelatinosa não se tinha estragado e facilmente derreteria e se somaria ao novo assado.

Pronto, pedaços de galinha na assadeira, cebolinha cortada em rodelas, molho inglês por cima e tiras de bacon por cima dos cortes da ave, que além de darem sabor evitam que ressequem. Forno baixo por quarenta minutos. O resultado pareceu-me ótimo, a galinha sabia a comida de casa, sem invencionices, sem qualquer sofisticação.

Mas, não sei se ficou bom, Olívia não deu opinião! Não comi à mesa da sala, calmamente, com vinho e alguma conversa. Comi saudoso, na mesa do computador, a escrever. Comi sem sentir bem os sabores…. saudoso.

 

 

O quê há por trás do discurso de Marine Le Pen.

Lê-se que Marine Le Pen aumenta a aposta no discurso xenófobo e contrário à abertura comercial. Ela diz que a França importa desemprego, que acordos de comércio agrícola com a América do Sul destroem o setor na França, que os árabes que fizeram as revoluções cuidem de si, que os países europeus vizinhos abandonem o euro…

Os tais especialistas, que sempre se consultam a respeito, dizem que é um discurso baseado no medo, ou que visa a estimular o medo dos eleitores. Sim, este componente está presente no discurso, que realmente pretende levar os eleitores a escolherem a partir da lógica do medo. Mas, tem mais fatores subjacentes a estas apostas.

Um deles é a sinceridade, o que é dramático, pois revela o nível de ignorância e de autocomplacência existente nas figuras políticas destacadas. Muitas premissas do discurso são simplesmente falsas, o que não deve ser ignorado pela senhora Le Pen, intimamente. Por exemplo, as poucas concessões aos produtos agrícolas sul-americanos são apenas as suficientes para se poder continuar a comprar barato produtos não industrializados, recursos minerais como ferro e óleo.

Aquilo que se chamam ajudas aos países europeus quebrados são empréstimos caros que ainda trazem como garantias as soberanias dos que tomam emprestado. Se Marine Le Pen perguntasse ao BNP Paribas ou à SocGen o que acham da ajuda à Grécia, certamente ouviria apoios incondicionais. Ninguém está dando dinheiro aos outros; estão comprando a preço baixo as vidas, o trabalho, as almas, os governos e os recursos naturais de gregos, portugueses, irlandeses e espanhóis.

O preço de alguns milhares de árabes fugidos dos seus países é muito menor que o preço de pagar a eles por seu petróleo o que eles cobrariam se não fossem ainda colonizados pela França, entre outros.

Mas, seria superficial e talvez ingênuo supor que a senhora Le Pen se opusesse a tudo isso somente por cálculo. Se, por trás de tudo, houvesse apenas racionalidade calculista, não se produziria um discurso credível, não haveria a centelha da crença, a que acende o fogo da vontade de seguir alguém ou uma idéia.

Claro que em alguma conversa privada, com interlocutor íntimo, à vontade, Le Pen é capaz de tratar dessas coisas calmamente, com o lado esquerdo do cérebro a ditar o rumo. É capaz de separar as coisas, de identificar os fatos, de articular uma percepção da realidade que não seja contraditória, de aceitar que a dominação implica mais complexidade que juízos categóricos mal embasados.

A capacidade de perceber o que acima se aponta não é frontalmente contraditória à de fazer o discurso radical que nega o que se sabe. Realidade é algo diferente do que costumamos pensar, é construída passo a passo, segundo condições bastante específicas. Há menos contradições do que gostamos de supor, presos às nossas próprias formas de construção do que chamamos coerência.

As pessoas atropelam-se a si mesmas nesse processo condutor à verossimilhança. Para sermos credivelmente únicos, para formularmos um discurso que contrarie o que somos capazes de perceber isoladamente, construímos realidades em que acreditamos fielmente, sinceramente. Lembro-me agora de algo interessantíssimo que diz Fustel de Coulanges a propósito das crenças: que, no fundo e no início, notadamente, elas são crenças e não cálculo ou projeto ou embuste deliberado. Se, depois, torna-se algo diferente, é obra do tempo…

Quem cria uma onda é levado por ela ou, antes, quem é movido por uma onda reforça-a para continuar a mover-se nela. Ou seja, Marine Le Pen acredita e não acredita no que diz e propõe; na verdade, acredita mais que desacredita, embora suas crenças e propostas sejam contra ela mesma, contra a situação que permite sua existência.

Todas as ameaças que Le Pen vê e acusa são quase inexistências. Existem estrangeiros demasiados e, pior, de traços não caucasianos? Sim, porque é preciso ter uma reserva de mão-de-obra barata, para que o gaulês possa nascer, crescer, estudar alguma coisa que ele acha mais profunda do que é, passar anos sem fazer nada, arrumar enfim o que fazer e ter de quem reclamar.

Existem países querendo vender trigo e carne à França, possivelmente mais baratos que o produzido lá? Claro, e esses países, um pouco menos dominados, hoje, podem também vender essas coisas à China, que as compra a quem tiver excedente. Certamente pretenderão vende-las à França, se a França quiser vender seus trens e aviões a eles.

Percebe-se que o cálculo não está tanto em Le Pen como estava em Strauss-Kahn. Este último era a mentira calculada, a mentira tão verdadeira que tinha coerência lógica, o banqueiro socialista bem-pensado e bem-pensante, o protótipo do planeamento do discurso. Esse, perdeu-se por acidente, o que é sintoma da virada que se anuncia para as verdades, ainda que suicidas.

O que está em jogo para um país como a França – e que se pode extrapolar para outros, como a Alemanha – é o empobrecimento. Não será fácil lidar com ele, mas não é inteligente exagerar um processo que se anuncia muito lento e suave. Realmente, a Europa unida foi uma jogada de gênios, de quem já via a inexorabilidade do processo.

A união europeia foi uma forma bem-pensada de agradar minorias e pôr maiorias, dos países europeus periféricos, a fazerem discretamente o papel que antes era das colônias. Por isso mesmo, foi também um sintoma do início da diminuição econômica relativa da Europa: ela precisou começar a predar-se internamente. Ela reservou mercados para a dupla franco-germânica, que vende e ainda empresta o dinheiro a quem vai comprar seus produtos, ganhando duplamente.

Mas, há quem queira enfurecer os que estão perdendo menos, em meio a tantos que perdem quase tudo, e há grandes chances de sucesso nessa empreitada, porque animada por sinceridade. Ao contrário do que vêm alguns que pensam com a repetição da história, não resultará em guerras internas, embora possa resultar em fascismos. E tampouco resultará em Vichy, porque antes disso a Alemanha se teria quebrado, sem ter de volta o que emprestou e sem ter quem compre o que produz.

Menos drástico que a guerra e talvez que os fascismos, isso pode ser o anúncio de uma bestificação crescente, resultado da sinceridade…

 

 

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