Este é o título – sem a interrogação – de um ensaio componente do livro A rebelião das massas, de José Ortega y Gasset. É muito característico dos textos de Ortega y Gasset que apresentem suas premissas inicialmente, o que se harmoniza com a clareza insistentemente buscada, e obtida, por ele. Adiante, transcrevo um trecho inicial desse ensaio, onde se apresenta um conceito básico:
Por mando não se entende aqui primordialmente exercício de poder material, de coacção física. Porque aqui pretendemos evitar estupidezes; pelo menos as maiores e mais patentes. Ora bem: essa relação estável e normal entre homens que se chama mando não se apoia nunca na força, antes pelo contrário; porque um homem ou grupo de homens exerce o mando, tem à sua disposição esse aparelho ou máquina social que se chama força.
Nesse texto, o autor investiga a reiterada assertiva de decadência europeia que se fazia no tempo. É fundamental apontar que tempo é esse: ele escrevia nos finais da década de 1920. Então, emergências como as dos EUA e da Rússia recém bolchevique apoiavam certa histeria decadentista em uma europa que parecia cansada, mas que ainda teria energias para mais uma grande guerra.
Muito inteligentemente, Ortega percebe que Moscou e Nova Iorque não são o novo relativamente a Paris, Berlim ou Londres. Antes, saíram as primeiras das segundas, mesmo que se queiram ver diferenças quantitativas muito grandes. Percebe que a articulação mundial é imensa, desde o século XVI, o que constitui uma grande opinião pública conectada.
É engraçado para mim notar, a cada releitura de muitas a que me entrego, como o autor é terrível para os superficias e dados a modismos e lugares-comuns. É destruidor mesmo e agressivamente revelador de quanta coisa se chama de novidade mesmo tratando-se de coisas antigas. Apontar que a interconexão do mundo é imensa desde há muito devia fazer corar as gentes faladoras em globalização e outras tolices do gênero.
O meio a permitir essa grande unificação mundial não é tratado no ensaio mencionado. Parece-me que esse meio tem necessariamente que ser uma espécie de linguagem. E tal espécie de linguagem é a moeda, que é, ao mesmo tempo, portadora de um significado e medida de si e das outras coisas. É também mercadoria, porque é medida de si mesma. É signo, medida e mercadoria, o que faz dela uma linguagem especialíssima.
Precisamente a partir do século XVI, necessita-se de uma linguagem que sirva à acumulação mercantilista sem fronteiras e precisamente então a moeda metálica e, posteriormente a obrigação em papel, servem a tal necessidade. À medida que se aproxima o século XIX, fica mais evidente o caráter de mercadoria da moeda, algo que não entra na sua conceituação como uma linguagem.
Todavia, a moeda mercadoria é uma tremenda ampliação da moeda signo de valor e, como mercadoria, ela impõe-se como o elemento de ligação por excelência, reforça sua função globalizante, para usar um modismo já meio gasto.
Um outro ensaio do mesmo livro, mais interessante que esse do título, chama-se Mandam as montras e é de maio de 1927. Nele, Ortega analisa o que pode indicar um período crematístico, ou seja, um em que o dinheiro – khrémata – manda. É bastante sagaz que o autor busque os indicativos dos períodos crematísticos, porque o fazendo evidencia a ocorrência de períodos não-crematísticos.
Ou seja, não é sempre que o dinheiro manda. E ele é o único poder social que, identificado, nos enoja, enquanto até a força bruta pode contar com alguma simpatia, diz Ortega y Gasset. A imensa verdade disso percebe-se na insistência com que o poder crematístico se dirfarça, pois ele é sabedor da repulsa que sua visão nua gera.
Hoje, o dinheiro manda no mundo. O dinheiro de oito, dez ou vinte famílias de banqueiros manda no mundo, manda nos recursos energéticos, manda nos recursos alimentares e determina onde e quando convém haver guerras. Manda em tudo que queiram mandar nos governos, deixando-lhes margens residuais para assuntos que não interfiram nos interesses dos oito, dez ou vinte.
Os governos mandam por exclusão, ou seja, naquilo que os donos do dinheiro não queiram mandar. Eles ocupam um campo residual e subordinado relativamente a cinco ou dez grandes casas bancárias alemãs, francesas, inglesas, italianas e norte-americanas. Eles são operadores imediatos dos sistemas de geração de débitos e recolha de impostos.
Isso não ocorre assim sempre, todavia, pois há ciclos. Nada obstante, os períodos de transição sempre reclamam do mando do dinheiro, mas nem todos o vivem realmente. Quer dizer, o mando do dinheiro não é efetivo em todos os momentos em que tal acusação se faz. Fica muito clara a percepção de não predomínio crematístico em alguns momentos se levarmos em consideração que o dinheiro esteve sempre nas mesmas mãos, mas o poder não.
Tomo emprestado outro trecho de Ortega y Gasset, muito esclarecedor:
Se os Judeus possuem hoje o dinheiro e são os donos do Mundo, também o possuíam na Idade Média e eram a escória da Europa.
Houve, na Idade Média, detenção do dinheiro pelos judeus e vontade de esconder-se, ao mesmo tempo, o que revela ausência de mando com presença de dinheiro. É bom lembrar-se disso, para não ficar refém de idéias fixas, tão perigosas que são.
Vive-se, hoje, o poder do dinheiro, e consequentemente de quem o possui, porque os possuidores também têm a possibilidade de mando a partir do discurso, ou seja, a sedução da opinião pública. O Mercador de Veneza tinha dinheiro, certamente, mas seus devedores tinham muito mais mando que ele. Quinhentos anos depois, o Mercador de Veneza tem o mando e não apenas pelo dinheiro: ele está às claras como modelo descoberto, ofertado e seguido.
Interessa notar a construção de uma base discursiva a permitir o pleno mando dos possuidores do dinheiro. E, claro, interessa apontar que os grandes detentores do dinheiro são judeus, o que não é qualquer acusação além de um fato objetivo. Essa construção discursiva evidencia-se na grande desculpa que é a matança de judeus pobres pelos alemães nazistas e na atual demonização de árabes islamitas.
O primeiro fato histórico serviu à perfeição aos grandes banqueiros judeus, muito embora não se possa dizer que tenha sido planeado por eles. O holocausto permite aos judeus em geral, e aos banqueiros em particular, reivindicar uma piedade eterna e obstar qualquer discussão que lhes seja inconveniente. O segundo fato, que hoje se vive e vê crescer, permite acabar ou minimizar sua imagem negativa.
Sim, o espírito de cruzada que embasa as atitudes dos EUA e dos países europeus é voltado contra a figura do radical islâmico. Essa figura é identificada àquela do árabe. O árabe islâmico – demonizado – é posto como a antítese do judeu. Portanto, por contraste, a demonização de uns é a homenagem de outros. Está pronta a base garantidora do mando do dinheiro, porque podem ter a opinião pública.