Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: Divagação (Page 10 of 17)

O excelente agride o vulgo.

Não escrevo somente a propósito do jogo entre Barelona e Milan – e principalmente pela forma como o jogo foi narrado e comentado – mas para falar de uma forma de estar diante das coisas, generalizada. O vulgo é agredido pelo excelente, porque o vulgo acredita-se régua e objeto a ser medido, em tudo.

A prová-lo, pelo paradoxo, temos a mania do vulgo de sempre objetar àlgum comentário ou percepção mais elevado o nunca se dever fazer generalizações. Ora, a generalização é precisamente o pano de fundo sobre que se destaca o extraordinário, ou o incomum, ou o sublime, ou o sutilíssimo aspecto a não ser visto. Uma generalização não se basta como proposição, ela fará aparecer, por tênue contraste, o que está fora do alcance da vista média.

Assim, embora o vulgo goste da oposição do não generalizes, ele vive sua zona de conforto na generalização que, de tão ampla, faz do excepcional não o aspecto de relevo, mas um ponto apenas mais distante do grande geral que é a percepção comum. Ou seja, o geral do vulgo tem as excepções normativamente previstas, como a dizer que ele cogita de exceções, quando, na verdade, delas não se quer aproximar.

O vulgo diz que toda regra tem excepções a repetir um lugar-comum sem cogitar o que possa significar. Não é à toa que teme, mais que a qualquer outra coisa, a esquizofrenia, a dissociação absoluta, o inapreensível no esqueminha habitual de afirmar qualquer coisa acriticamente.

O museu do Louvre – mudo de discurso esquizofrenicamente, súbito lembrando da desconcertante pergunta que já escutei de um – vive cheio de gente e está supostamente repleto de obras de arte. Pode-se admitir que dentre o grande número de obras, haja delas excepcionais, sublimes, até. Pois bem, o estar o Louvre sempre cheio quer dizer que o vulgo admira a arte, a beleza, algum sublime? Não, quer dizer que os donos do Louvre são gênios que perceberam a alma vulgar, que facilmente obriga-se a certos comportamentos.

O vulgo e o médio são a mesma e terrível coisa. Ele não pode, como podem o comum de aldeia e o excelente, por exemplo, dizer que a Gioconda é uma merda. Ele não pode porque não pode – violaria o dever de ter uma certa declarada opinião – e porque realmente nada acha daquilo. Na verdade, cumpre uma obrigação que a falta de liberdade a permear-lhe a vida impõe-lhe, e só.

O vulgo gosta do campo, do balanço das folhas, de um ponto alto na curva do rio, de ver a raposa a correr furtiva no mato? Pode ser que goste, mas é mais provável que goste de dizer que gosta, porque em tal ou qual época isso consagrou-se de bom tom. Assim, ele irá para o campo, não para ver o que próprio ao campo é, mas para ver e ser visto pelo resto da massa vulgar que se pôs em marcha para o mesmo.

Bem, hoje jogaram Barcelona contra Milan. Para quem anda à volta dos quarenta anos, Milan é um nome mágico, como para os mais novos são os de todas as equipes inglesas, independentemente do que estejam realmente fazendo. O Barcelona é uma equipe fora do comum, que pode vencer ou perder, mas sempre oferece um espetáculo de balé futebolísitco. É de tal forma, que se se pusesse uma pessoa que viu dois jogos de futebol na vida ela perceberia o encanto que há naquela forma de jogar e não esconderia a impressão.

Mas, é próprio do medíocre ver o excelente desde a cela em que está aprisionado. Assim visto, sob a ótica do privado de liberdade, o excelente passa pelo filtro do ressentimento e da inveja do preso que vê a liberdade. Ele é matizado pela racionalidade mais humana que há, aquela que reduz ao meio o que se não fosse meio invalidava o próprio observador, que não conhece o excelente e, por isso, não o pode admirar.

Seria simples se os fulanos que narram e comentam futebol na TV brasileira simplesmente agissem como adeptos típicos, conforme cada época, de Milan, Chelsea ou Madrid. Isso é o mesmo que os funcionários da Rede Globo celebrarem o Flamengo do Rio de Janeiro até hoje, porque ele foi uma boa equipe nos princípios dos anos 1980 e porque o patrão era torcedor desta equipe.

Mas, a coisa vai mais além que submissão ao modelo recebido em uma época. A submissão é ao mais humanamente baixo que há, que é a racionalização pela média, postura indisfarçável e raivosa. Hoje, a cada avanço irresistível de Messi ou de Iniesta ou Alves, correspondia uma objeção a sujerir ineficácia, seguida das habituais inúteis estatísticas: nas últimas dez ou vinte partidas ganhou a equipe A, quando jogou no estádio B ou C.

A sinceridade aflorava ao dizer-se que o Milan devia fazer isso ou aquilo para defender-se, quando, diante dos fulanos, desenrolava-se um espetáculo de futebol de conjunto, dado pelo Barcelona. Eles não podiam ver o Barcelona jogar, que aquilo era pura agressão ao sujeito balizado pelo espírito de manada, pela observação normativa e burocrática.

Ora, muita gente fala do funcionário público como protótipo do vulgo, e está certa. É a média perfeita, composta de falta de nobreza, carreirismo, falsa tomada de riscos, disposição para o discurso longo e vazio, preguiça, oportunismo, cupidez. Isso tudo é verdade, mas é também para toda a camada média, esteja ela no serviço público ou na iniciativa privada. As grandes diferenças que haveria não passam de lugar-comum em que, na verdade, ninguém acredita.

Os fulanos que narram o futebol são funcionários públicos. Eles têm roteiros pre-estabelecidos que não admitem exceções além daquelas previstas que, portanto, não são exceções. São profissionais da leitura rápida e guiada, a quem escapará qualquer coisa excepcional. Escapará, mas existirá. E ele, incapaz de a perceber livremente, vivamente, ficará preso e com raiva. Ele entreverá o excepcional, mas apenas superficialmente e, quase auto-punindo-se, investirá contra ele.

Pecar e pagar.

Antes dos pecados e dos pagamentos por eles, vai uma advert^^encia. O texto n~~ao ter´´a a grafia correta dos acentos agudo, grave e circunflexo e do til. ´´E problema de um v´´irus – um malware, para ser correto –  que infecta meu computador. Esse neg´´ocio ´´e absolutamente genial e sutil. ´´E o v´´irus mais destruidor que j´´a vi, porque, a princ´´ipio, reputa-se uma bobagem. Todavia, rapidamente, percebe-se que ele inviabilizou a comunicaç~~ao e o trabalho a partir do computador.

N~~ao ´´e poss´´ivel escrever em portugu^^es sem os acentos e o til, sem que se produza um texto, ou ileg´´ivel  por cansativo, ou sem significaç~~ao, por quest~~oes de sem^^antica. O mais ´´obvio que me vem “a mente ´´e o per´´iodo que comece com o verbo ser flexionado na terceira pessoa do singular. N~~ao consigo, nas atuais condiç~~oes, dizer ele ´´e! O v´´irus faz que saia isso que se viu: dois acentos agudos e a vogal e.

Tentarei, para ser menos cansativo que incompreens´´ivel, fazer o seguinte: suprimirei o til e usarei o acento agudo como o v´´irus imp~~oe. Assim, n~~ao ser´´a nao, mas ´´e ser´´a ´´e. Segunda-feira, ou formato o computador, ou tenho um infarto, ou compro outro…

Pecar e pagar ´´e delinquir para ser absolvido e delinquir de novo, para ser novamente absolvido e assim sucessivamente. ´´E algo que faz sentido para as pessoas, individualmente, pois o pecado p´´ublico suporia uma alma p´´ublica e pl´´urima, algo meio dif´´icil de conceber.

O pecado vem a prop´´osito das interpretaç~~oes da crise econ^^omica que se lançam nos media. De uma forma geral, fala-se de expiar a culpa da prodigalidade nos gastos feitos com dinheiro que nao se tinha. Ou seja, as pessoas endividaram-se para manter padroes de consumo incompativeis com seus rendimentos reais e isso conduziu a uma crise economica enorme, que ameaça os EUA e a Europa.

 Que as pessoas gastaram demais, ´´e certo. Agora, conv´´em observar o que significa as pessoas terem gastado demais, o que se encontra na raiz disso e o que isso pode acarretar.

As pessoas gastaram muito porque lhes disseram que o deviam fazer. As pessoas, as maiorias, fazem o que lhes dizem que façam, sempre. E so fazem o que ´´e poss´´ivel fazer. Ora, s´´o se gastou demais porque houve e ainda h´´a cr´´edito demais. E cr´´edito, sabemos quem o disponibiliza.

A consequ^^encia de terem gastado demais ´´e estarem endividadas, o que ´´e otimo para governos e bancos. Os endividados terao que pagar juros mais altos pelos creditos tomados, porque convencionou-se que o tamanho da divida ´´e risco do nao pagamento dos seus juros.

Os riscos de emprestimos feitos por bancos sao calculados precisamente por eles, inclusive no que respeita “as possibilidades de incumprimento em que os governos entram em cena. No limite, trata-se de levar o maximo de gente ao endividamento e de levar os governos a garantirem as dividas, porque eles podem apanhar dinheiro do todo das populaç~~oes para transferir aos bancos.

O que surge como um problema dos cidadaos Joao, Jose e Joaquim torna-se um problema do Estado, que assume dividas variadas e impoe a todos parcela de sacrificio, ate aos que nao se tinham endividado.

Aquilo que se resolveria no calote, classico e praticado varias vezes na historia, torna-se uma contaminaçao generalizada de dividas a comprometerem os Estados. A maior parte dos defices publicos nao passa de assunçao de dividas privadas pela entidade que pode socializar os prejuizos.

Essa bomba pode ser desarmada se for possivel desarmar a bomba do moralismo contaminante da pseudo-ciencia economica.

A Senhora Merkel ´´e filha de um pastor luterano, o que ´´e repleto de significados. Ela, e a maioria que ela representa, acreditam em retribuiçoes divinas para a alma coletiva. Retribuiçoes que se fazem pela austeridade de um povo pedidor a Deus e seguidor de uma moral auto-penitente e auto-glorificadora.

Ora, todos os povos europeus pedem a alguem, aos Deuses que lhes convem e geralmente ao Deus que se diz o mesmo, sempre. Por que recebem diferentemente? Est´´a claro que nao ´´e uma questao de Deus ou nao Deus, ´´e uma questao de dominio.

Tambem esta claro que as pessoas tem que se sentir culpadas e expiadoras de uma culpa que n~~ao se sabe bem qual ´´e.

Miguel Nicolelis e o postulado religioso disfarçado em ciência.

O campo das postulações religiosas travestidas em inodora e inerte ciência assemelha-se a essa praga contaminante que são as posições apolíticas. Estas últimas são mais fáceis de se perceberem, porque realmente estão por toda parte e seus disfarces são deveras precários.

A postulação salvífica tecnológica é, digamos assim, mais sutil. Demora mais a percebermos que ela é essencialmente religiosa, embora envergonhada de assim apresentar-se. A vergonha, leva os postulantes a frontais agressões à lógica, a contradições realmente grandes.

Miguel Nicolelis é um neurocientista brasileiro de fama internacional. Ele trabalha com interfaces entre cérebro e máquina, para o estabelecimento de comunicações diretas, não intermediadas pelo corpo, nem pela linguagem. É uma proposta diabólica, realmente.

O cientista gosta de enfatizar o lado mais abstrato das suas investigações, escamoteando um pouco as aplicações possíveis da suas descobertas, nos campos médico e bélico, para ficarmos em duas áreas exemplares.

O discurso é de verniz messiânico e propagandístico, na medida em que não admite uma real contradita científica lógica. Ele encontra-se em campo da analogia, ou seja, da ausência de lógica; não gira propriamente em torno às investigações em si, mas aos supostos efeitos a se produzires; efeitos que, no discurso, necessariamente têm que se admitir desejados.

A propósito desse discurso messiânico, Wilson Roberto Vieira Ferreira escreveu um muito bom artigo, no seu blogue Cinegnose. Ele chama a isso de tecnognose e esmiúça o discurso em suas componentes de proposta de salvação por meio da neuroengenharia.

Adiante transcrevo um trecho, um parágrafo claro, em que se enuncia a falácia da redenção tecnológica, com mestria:

O elemento transcendentalista é evidente na retórica do delírio digital: se Deus puniu o homem com a pluralidade de idiomas (como narra o episódio bíblico da Torre de Babel) para condená-lo à prisão do espírito na incomunicabilidade da linguagem, agora a neuroengenharia vai trazer a solução através do atalho tecnocientífico. Exterminando corpo e linguagem, o potencial do espírito (a Vontade) se libertará.

A proposta da redenção digital de uma punição divina – é necessário assumir esse pressuposto – tem que se servir da analogia, ou seja, da falta de lógica.

Lógico seria o postulado: se Deus puniu o homem com a incomunicabilidade da linguagem, só Ele pode suspender a punição.

O que é claro fica anuviado pela analogia, que viola os termos da proposição e postula uma fuga. Ora, se há Deus no postulado, nada há fora Dele. Não será o punido, o homem, a superar a punição, extinguindo a própria pena – a linguagem.

Por outro lado, a enunciação da redenção tecnológica serve-se da confusão. Ora, a saída da prisão dar-se-ia pela superação da intermediação pela linguagem e uma consequente libertação da vontade – o potencial do espírito – por meio da neuroengenharia.

Sim, mas a neuroengenharia é uma linguagem!

Nova classe média e a segunda etapa das demandas.

Convencionou-se chamar nova classe média ao grupo de pessoas que ascenderam da pobreza profunda para a possibilidade de comprarem roupas, bens de consumo duráveis e um pequeno imóvel financiado. É coisa recente e deve-se às políticas públicas inauguradas pelo ex-Presidente Lula.

Essa nova classe menos baixa trouxe uma forte demanda por bens e serviços, coisa fundamental na criação de um mercado interno robusto. Esse aspecto econômico tem sido bem percebido, embora ainda haja quem o negue.

Coisa pouco percebida, todavia, são as outras demandas que haverá. A segunda etapa do aumento de demandas das classes ascendidas a médias será por informação. A primeira foi evidentemente por bens que não podia comprar.

Em seguida, a tal nova classe média quererá saber quanto custam as coisas, incluindo-se aí o estado. Passada alguma euforia de poder comprar o que não se podia, as pessoas tendem a preocupar-se com os preços. Primeiro, com os mais evidentes, depois com os mais difusos.

Essa vontade de saber quanto custa o estado não será artificial como a da classe média estabelecida, que vive do estado mas finge quere-lo menor e distribui tolices contra a carga tributária, por exemplo.

O cidadão da chamada nova classe média não tem idéia realmente precisa do que o estado é obrigado a dar-lhe em serviços. E, tem menos idéia ainda de quanto os agentes do estado recebem por isso.

Deus é castelhano!

Severiano Miranda, meu caro, um pequeno exercício de lógica formal, levado a cabo em conversa com um interlocutor sagaz, Gustavo Farias Alves, levou-me a uma conclusão que deve te interessar: deus é castelhano!

É o seguinte: de acordo com a esposa de Kaká, deus deu dinheiro ao Real Madri para contratar o futebolista bom-moço.

Acontece que Kaká dá sinais de decadência futebolística e, a despeito do alto preço de sua contratação, com dinheiro divino, tem servido apenas para enfeitar o banco de reservas madridista.

Parece que deus fez um mau negócio, porque não é razoável supor que tenha feito má escolha ou mesmo qualquer escolha. Nisso, temos que concluir que a esposa de Kaká equivoca-se, pura e simplesmente.

Ora, a única saída é perceber que, na verdade, deus deu o dinheiro ao Real Madri para que gastasse como melhor lhe aprouvesse. Ou seja, deus favorece o Real Madri em troco de nada! Logo, é castelhano. Não é fantástico?

Identidades culturais. Um trecho de Ariano Suassuna.

Um trecho de A Farsa e a Preguiça Brasileira. Introdução por Ariano Suassuna à sua obra A Farsa da Boa Preguiça:

É por isso que, como eu dizia antes, tenho um certo preconceito de raça ao contrário. Preconceito que – não é preciso dizer – absolutamente não existe diante do bom estrangeiro ou do bom imigrante de qualquer raça ou cor, que traz para cá sua pessoa, sua família, sua vida, sua cultura, enriquecendo-se e enriquecendo a nossa grande Pátria. Preconceito que deixará de existir também, extramuros, quando esses Povos brancosos que, por enquanto, são os poderosos do mundo, não puderem mais nos oprimir e explorar.

Agora, sempre me senti muito bem, ao contrário, em contacto com os europeus mediterrâneos, principalmente os gregos, os italianos e os ibéricos, assim como com os africanos – inclusive os árabes – e com asiáticos como os judeus ou os hindus. É por isso que, na minha Poesia, escolhi como símbolo do Povo brasileiro a “Onça-Castanha” e, às vezes, a “Onça-Malhada”. E se não faço referência expressa aos outros latino-americanos, é porque, inconscientemente e naturalmente, no meu espírito eles formam com os brasileiros uma só coisa.

Isso que Ariano diz chama bastante minha atenção. É engraçado ver alguns a defenderem um universalismo total, por um lado, ou uma segregação absoluta, por outro, duas posturas que não passam de dominação e tentativa da destruição das identidades.

As identidades existem e quanto maior for o afã de negá-las, como instrumento mal disfarçado de domínio, mais elas reforçam-se.

Os círculos de pertencimentos culturais são evidentes. É sumamente falso que alguém repute, por exemplo, diferente um paraibano estar em Alagoas ou um alagoano na Paraíba. É a mesma coisa!

É louco quem estranhar se eu disser, por exemplo, que me sinto muitíssimo bem em Portugal. Evidentemente que não é a mesma coisa estar aqui e lá, mas as similitudes culturais são imensas.

Também é louco quem postular a incomunicabilidade e a impossibilidade de alguém situar-se à vontade em cultura profundamente diferente da sua. É possível, sim, mas é mais raro.

Profecia.

Hoje, um real brasileiro compra um pouco mais que dois pesos argentinos. Hoje, ainda, como sempre, vive-se melhor na Argentina que no Brasil. Não é uma conclusão, realmente, nem uma imputação causal, mas há menos brasileiros na Argentina que no Brasil…

Suponhamos que os brasileiros conseguissem convencer os argentinos, os uruguaios e os paraguaios a adotarem o real – com outro nome é claro – como moeda comum. No início, os brasileiros iriam comprar mais caro o que compravam mais barato. Depois, sabe-se lá quantos anos depois, teriam comprado a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.

Se isso desse errado, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai poderiam mandar o Brasil às favas e retornar às suas moedas. Por que?

Porque o primeiro e o último têm riquezas tangíveis (soja, carne, gás, petróleo) que a Ásia comprará sempre. O Uruguai tem riquezas, mas mais que isso tem pouquíssimos uruguaios.

A Grécia e Portugal e a Espanha (e esta última é uma farsa econômica) podem deixar o euro. Mas, não têm mais que oliveiras e vinhos e cortiças. Se deixarem o euro ou o mantiverem, empobrecem de toda forma.

Os alemães precisam, não dos franceses ou dos demais europeus, mas dos russos. Eles precisam de energia e os russos sabem disso. E sabem que os alemães nunca deixaram de ser o que são.

Se fizerem com os alemães o acordo que estes últimos querem, acaba-se euro e por uma via totalmente escamoteada, de que não se fala. Acaba-se, não pelas dívidas dos endividados, mas pela grande via e por iniciativa do grande vencedor.

Acontece que os russos podem querer vender a energia em rublos, ou seja, podem querer manter sua soberania financeira.

Isso, ao contrário do que pode parecer, não é o exercício de futurologia que prevê a terceira grande guerra, pois ela não acontecerá por isso, e, sim, por conta de Israel.

Alumbramento. Luz, verdes variados, cinzas, marrons.

É difícil contar um alumbramento, porque ele não é somente histórico, ou abstrato, ou concreto. Não é um transe, nem uma experiência estética, nem extática. Engraçado, tudo que é difícil começa por negativas e continua a ser facílimo de saber-se o que é, embora difícil de contar, para quem não é poeta. E não sou.

É necessário prosear, portanto. Costumava, há vinte anos atrás, mais ou menos, viajar de carro com um tio; umas viagens de 180 quilômetros. De uma cidade no litoral do nordeste brasileiro para o oeste, em linha quase reta. Do húmido e plano ao ageste e semeado de serras baixas, e de volta ao litoral. No mesmo dia e sentado ao lado do condutor.

Quase toda viagem é bonita, mas essas eram mais bonitas na volta. A progressão do litoral ao agreste não é, contra o que o senso comum possa indicar, a mais contrastante. O inverso é verdadeiro, embora possa parecer sem sentido, porque as duas etapas são as mesmas e contrárias evoluções. Mesmas porque contrárias.

Do verde mais aquoso ao menos, do mais plano ao menos, do mais vermelho ao mais marrom e cinzento é a progressão do mais vital ao menos. É, poeticamente falando, a mais impressionante progressão, mas não é para mim. Sim, não sou poeta, digo de novo.

Do oeste para o leste, descendo-se suavemente de algumas centenas de metros até nenhum, a vitalidade da terra cresce, ela deixa-se perceber terra sobre terras e não pedras esfareladas sobre pedra dura. O verde torna-se, a pouco e pouco, mais água, o vento torna-se pegajoso, o azul tem mais brancos entremeados. Essa transição costuma ser mais impressionante.

A ida e a volta, distingui-as porque precisava escrever; hoje sei que são as mesmas coisas. Embora continue achando que o rumo de cima a baixo, de oeste a leste, seja o mais poético; e não sou poeta.

Quero, mas é aproximar-me de um jeito de falar da água do verde e do marrom e cinza dos morros e, ainda mais, da hora. As plantas têm tonalidades diferentes, conforme os sítios onde se enraizam, claro! Mas, por que é claro, se são todas plantas? Ora, as plantas são diferentes, embora sejam todas plantas. Sei disso. Umas são mais verdes, outras menos verdes.

Umas são mais água e outras menos água, é o que vejo. Tenho mania de água. As tonalidades são para mim variações d´água; os tamanhos das folhas e das copas são variações d´água. O ar varia conforme a água. O chão, terra e pedras, esse não varia conforme a água, para minha visão, embora só dependam dela, recebendo-a ou deixando-a correr.

A luz, ela deve ser a responsável por essa sinestesia pouca, poucamente contada em prosa insuficiente. A luz é aquela das quatro e meia da tarde, não há outra mais bonita.

Engraçado, a mais bonita precede por uma horinha a mais triste que há, a dos morcegos a voarem em torno às mangueiras do jesuítas. Quando os morcegos começam a arrodear as mangueiras da Boa Vista, naquele voo de sobe e desce, falta meia hora para o toque da Ave Maria Sertaneja, nos alto-falantes na Universidade Católica: Quando batem as seis horas, De joelhos contra o chão, O sertanejo chora, A sua oração...

Às quatro e meia, longe da Boa Vista, eu vi, cheios de claridade, os topos das serras, cinzentos. As plantas, já a meia aquosidade, a terra marron, e sombras. Elas devem ser parte fundamental da minha impressão.

Às quatro e meia, o sol é claríssimo, mas oblíquo já. Aqui, ele põe-se cedo, pouco importa se é verão ou inverno, que estamos muito perto da linha do Equador. Ele não cai de cima a baixo, como chuva grande sem vento, o que faz ao meio dia. Ele clarifica tudo, meio por trás, mas ainda meio por cima. Ele brilha as coisas e faz sombras. Ele faz contrastes.

Esse sol, essa hora, essa viagem de volta, esse verde só água, esse chão não só cores, fizeram muitos alumbramentos. De que eu tentava falar, com a máxima precisão possível, para um condutor que escutava e que intervinha, às vezes, com o deleite e a condescendência que tinha com as coisas não dissimuladas.

Hoje, fomos almoçar, Olívia e eu, um bacalhau, em João Pessoa. Há, lá, um fulano de Guimarães que faz bacalhaus muito bons e cobra caro por eles e mais caro ainda por alvarinhos que nos teriam custado 3,00 euros do outro lado do Atlântico. Pouco importam o caro dele e os 130 quilômetros de ida e outros de volta. Estavam ótimos, o bacalhau com polvo e o verde barato caro.

Saímos, do litoral ao agreste, às três ou três e meia, sei lá? Do meio do caminho em diante, eram quatro e meia da tarde, a hora do sol brilhante que não agride e ilumina de cima e de lado. O danado do sol das quatro e meia era filtrado por aquelas nuvens pesadas que não dão chuva; passava por grandes buracos da rede de nuvens mal traçadas. Cilindros de sol desciam pelos buracos das nuvens, e quadradinhos de sol desciam meio de lado sobre tudo.

A concentração com que dirijo o carro aumentou, assim como aumentaram minhas olhadelas rapidíssimas da paisagem. O relevo pareceu-me fantástico, serras baixas conhecidas olhadas com o mesmo olhar e com outro resultado. São as mesmas de sempre. Estavam lindas, elas as serras e as pequenas árvores e as lagoas que seguem a estrada. Lindas.

Tinham, além do brilho e das sombras, profundidade. Mais longe, eram mais escuras, perto um tanto mais claras, todas cada vez mais cinzentas. Outras horas não dão percepção de profundidade. As lagoas que se formam ao largo da estrada, eram de pedra. As ondulações da água, pequeninas ondas constantes, eram de pedra, de tão constantes de luz, que era a única coisa a qualificar-lhes.

Bebi a paisagem, gota a gota, alumbrado.

É possível homenagear-se um criador absoluto e atemporal?

Poderia acrescentar à pergunta do título outra: é possível agradecer a um criador absoluto e atemporal por qualquer coisa recebida por conta de pedidos insistentes? E quem não recebeu, deve ser considerado pouco insistente ou, se for para ser considerado indigno, por quais critérios?

Não vou esconder o que me anima a escrever essas mal cozidas linhas. E a profusão de graças a deus, foi deus que meu, glória a deus, se deus quer quem impede, deus me proteja e deus isso e deus aquilo.

Por simplificação, adotarei uma visão monofisista e considerarei as palavras deus e Jesus sinônimas, porque de fato tornam-se. E, por honestidade, vou dizer que escrevo, não como adepto de algum cristianismo, mas claramente como adepto de uma ortodoxia que se escandaliza com a vulgaridade selvagem dos homens a lançarem mão de dogmatismos rasos.

Se alguém vive imerso nas suas superstições – e todos nós vivemos, sejam elas anímicas, quase-platônicas ou científicas de almanaque – que assim viva. Agora, se alguém vive essas superstições como se fossem as únicas possíveis e configuradoras de códigos universais, a coisa complica-se.

A vontade de mandar nos outros é característica das pessoas que, para tanto, servem-se das mais variadas armas. O discurso absurdo é a pior delas. Quero apontar que o discurso absurdo é diferente do discurso sobre o absurdo, para evitar confusões previsíveis. É diferente dizer que o absurdo existe e dizer que o absurdo justifica que fulano mate sicrano ou encha o saco deste último até ele mesmo começar a discursar absurdamente também.

Se qualquer coisa criou tudo que há sem ter sido criado, ela também criou o tempo ou, em outra forma de ver, está fora do tempo, pois não no criou para a ele submeter-se. Se as criações dessa coisa criadora estão no tempo, a ele submetem-se, elas não são consubstanciais ao criador. Se elas, enfim, não são a mesma coisa coisa, tampouco podem comunicar-se.

Se pensarmos em tempo, uma pedra é mais substancialmente próxima do criador dela e de tudo que as pessoas, porque as pedras costumam viver mais que as pessoas. Mas, as pedras não têm a horrível possibilidade de se pensarem pedras não-pedras. As pessoas têm tal capacidade e utilizam-na para serem pessoas em camadas, pessoas com tanto medo do tempo que, ou querem estanca-lo, ou perpetua-lo.

Querer perpetuar o tempo é próprio de quem a ele submete-se, porque o atemporal não tem essa preocupação, evidentemente! Em sentido inverso, quem está no tempo não concebe o infinito, senão em imagens finitas, mais ou menos belas, mas sempre imagens e, não tempo.

Se há uma coisa criadora, ela não precisa nem compreende homenagens, porque somente as compreenderia se viessem de outra coisa igual e também criadora. Um exemplo vulgar pode dar uma comparação, ainda que precária: a melhor guitarra produzida não é uma homenagem ao luthier que a fez.

Se há uma coisa criadora, ela não deu automóveis, casas, nem fortunas a pessoa alguma. Simplesmente, porque essas coisas não foram criadas por ela. Agora, é possível a deliciosa conclusão de que, por derivação, o criador deu tudo, o antigo e o atual, porque criou as matérias e os meios de fazer as coisas.

Nesse sentido, deve-se admitir que há bastante lógica em agradecer-se ao criador pelas desgraças que existem ou, mais audaciosamente, negar que desgraças existam. Deve-se agradecer pelas doenças, por todos os males que podem acontecer às pessoas por conta da existência delas e das matérias à disposição. Enfim, se tudo advém de um criador – seja ele inerte depois da criação, seja ativo – e o criador deve ser homenageado, logo tudo deve ser homenageado.

Um santo estilita do deserto – cujo nome não me lembro – chegou a tal deliciosa conclusão e foi logo repreendido pela heresia de rezar pelo príncipe do mundo. Sim, ele foi às últimas consequências e rezava pelo demônio que, afinal, é parte da criação e merecia que se pedisse por sua alma ao criador.

Quer-me parecer que a vontade de glorificar-se, de homenagear-se e de fazer disso uma obrigação generalizada avança com a força que tem a propensão das pessoas a subutilizarem suas cabeças e a quererem mandar nos outros.

Haverá um ponto fantástico, um momento catártico em que todos, sem excepções, afirmarão nos seus carros ou estampado em suas roupas suas homenagens ao criador. Nesse momento, todos homenagearão e serão diferentes. Todos sentirão que homenagearam com a mesma intensidade, sinceridade e fervor, mas o criador os terá aquinhoado diferentemente…

As gentes das homenagens, glorificações, agradecimentos, louvores e que tais – comerciantes do pedir e dizer que pediram ao que não nas ouve – podiam lembrar que muitos serão chamados, mas poucos escolhidos.

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