Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Categoria: direitos humanos (Page 1 of 2)

Surpresa hipócrita e tentativa de legitimação.

A imprensa corporativa necessita investir constantemente no mito da imparcialidade. Nos momentos fraturantes, a mitologia começa a mostrar-se, a pouco e pouco, é verdade, claramente como farsa. Então, nestes momentos, é necessária uma remodelação das narrativas, de maneira a readquirir a aparência da imparcialidade e a continuar a confundir as massas receptoras de editoriais.

Os discursos agressivos, nesta etapa de readequação narrativa da imprensa corporativa, retrocedem. Inaugura-se uma aparente brandura, a partir da ênfase nas pautas de costumes e na surpresa com o que seriam efeitos indesejados ou, mais que isso, efeitos sem causas.

Em um país colonizado e alienado de sua soberania, como é o caso presente do Brasil, a imprensa corporativa serve aos interesses do capital financeiro transnacional. Ou seja, ela tem um lado muito claro e este não é o lado dos interesses da maioria do país. Mas, essa parcialidade evidente precisa ser disfarçada, o que implica um esforço constante de alterações pontuais ou drásticas – conforme o momento – nas estruturas narrativas.

Os discursos de estímulo ao ódio cego e descontrolado contra uma parte do campo ideológico cumpriram sua função e esgotaram-se já em 2016. O golpe de Estado foi dado, afinal, com uma facilidade que só pode surpreender os pouco acostumados ao estudo da história e da psicologia social. Com este objetivo cumprido e com os efeitos previsíveis nos cotidianos das pessoas, é necessário por em marcha narrativas da conservação da situação degradada.

Inicialmente, a imprensa pratica a dissociação entre efeitos e causas. As coisas são apresentadas como se entre elas não houvesse nexo, não houvesse ligação. Então, por exemplo, a evidência de que uma política recessiva produz recessão é apresentada como algo, ou acidental, ou um efeito indesejado e imprevisto ou, simplesmente, como coisa solta no ar, sem causas antecedentes.

É fácil dissociar causas de efeitos econômicos, por um lado porque esse esoterismo que atende pelo nome de economia é muito mal compreendido pelas massas. Por outro, as pessoas tendem a desacreditar das más intenções e estão propensas a crerem no equívoco, no erro de cálculo circunstancial ou mesmo na necessidade de se fazerem coisas ruins para que num futuro indeterminado colham-se os frutos das privações. Ora, frutos das privações é algo essencialmente contraditório, claro, mas talvez por isso mesmo seja algo em que se acredita tão prontamente. As contradições são muito convincentes.

Essa estratégia narrativa tem seus limites, evidentemente. A depender do grau de degradação das condições de vida das maiorias, suas propensões a racionalizarem a situação conforme aos modelos recebidos da imprensa corporativa reduz-se significativamente. Quando as coisas vão muito mal, a eficácia da dissociação entre causas e efeitos e da narrativa da culpa das vítimas reduz-se muito, até porque qualquer nível mínimo de racionalização implica algum conforto material e tempo.

Outra vertente da reinvenção mediática, após o êxito na empresa golpista e de aniquilação do país como soberano e provedor de mínimos sociais para suas populações mais carentes, está no investimento na pauta de costumes e das diversidades de grupos sociais.

Meio subitamente, os meios que estimularam fortemente o ódio fascista pequeno burguês contra pobres – que são pobres porque assim querem – contra mulheres ativistas, contra homossexuais e contra qualquer pessoa que se mostre razoável e não essencialmente maniqueísta adotam nas suas programações pautas caras aos grupos mencionados. Há aqui uma aparente traição àqueles que os média estimularam e criam-se unidos para sempre. Mas esta traição, se traição for, pouco importa, porque os efeitos desejados pela ênfase narrativa anterior já foram atingidos.

A traição revela que os grupos propensos ao ódio desmedido são, para os média, o que são todos: instrumentos na sua empresa antinacional e concentradora. Servem e deixam de servir e assim é sempre. A viragem serve a outro propósito muito caro à destruição nacional: a produção da confusão, das situações em que as próprias viragens narrativas surpreendem e geram o estado em que ninguém compreende nada.

Haverá quem pense que eles – os média –  afinal abraçam causas nobres de direitos de minorias, de tolerância sexual, religiosa, de direitos humanos. Ora, se assim fazem, afinal não eram tão nocivos como pensávamos e podem ter, anteriormente, apenas incorrido em equívocos, cometido erros pontuais de que agora redimem-se.

Além disto, o foco na pauta de costumes visa a um resultado que é o Santo Graal da engenharia social que visa a manter e aumentar a concentração de riquezas em cada vez menos detentores. Ela retira de cena a pauta econômica e social focada na redistribuição e nas formas e proporções das acumulações. As pautas das liberdades fazem parte das esquerdas abandonarem as pautas das desigualdades, seduzidas pelos direitos. Esquecem-se que sem os mínimos de sobrevivência material não haverá mínimos em termos de direitos humanos.

E assim a imprensa corporativa segue a conseguir legitimar-se, forte no mito da imparcialidade, a disfarçar editorial em notícia. Isto, todavia, como já cansei-me de dizer, tem limites. As massas, quando chegam a certos níveis de embrutecimento e empobrecimento, perdem a linguagem…

 

 

 

 

 

Reversão gay: não se pode autenticar este discurso aberrante.

O Brasil regressa intelectualmente a estados quase selvagens. Os sinais desta regressão são muitos e a violência desmedida é um dos mais destacados. Neste ambiente, volta a se difundir a proposta de terapias de reversão de homossexualismo, o que atende popularmente pelo nome de cura gay.

Esta estupidez aberrante – porque cura pressupõe moléstia – encontra muitos adeptos entre grupos evangélicos não históricos, neo-pentecostais, mas não somente entre eles. Na pequena burguesia alvo das comunicações centradas na pauta de costumes e tomada por uma fúria difusa contra tudo, a idéia é bem aceita.

Trata-se de uma idéia aberrante, evidentemente. Primeiramente, um dado natural que não implica redução de capacidades não é passível de cura, porque não se inscreve no domínio de doença. Segundo, por ser um dado natural, não se cuida de algo proveniente da vontade – não encontrei palavra melhor – e, portanto, é irreversível.

Dizer que, mesmo que que se tratasse de algo reversível, teríamos de indagar o porque de ser desejável esta reversão é entrar em campo muito sofisticado para algo proposto por gente tão primária. Seria jogar no campo do moralismo rasteiro dos intérpretes dos intérpretes dos intérpretes das vontades de um Deus que se recusa a falar para o mundo todo e por sua própria boca.

Diante deste e de outros discursos aberrantes semelhantes, só percebo duas posturas minimamente eficazes. Ambas conduzem a dois estados de ânimo que podem arrefecer a horda pequeno burguesa: a contradição evidente e a vergonha, ainda que momentânea. São o escracho e a saturação do absurdo. Discutir sensata e racionalmente é fazer um contraponto inútil com que abandonou a sensatez e a racionalidade há muito.

As reações à saturação do absurdo, ou extrapolação do absurdo, são muito interessantes e reveladoras. Essa tática leva o selvagem a ver-se privado da aparência de racionalidade com que se disfarça e a despir-se muito rapidamente das aparências, pois sente rápido o gosto saboroso de sangue. Outros, calam-se por vergonha.

Como o assunto tem-se tornado comum, era previsível que chegasse às mesas de cafés e botequins. Assim como previsível é que os frequentadores adeptos da aberração queiram extrair dos demais opiniões autenticadoras das suas. As opiniões autenticadoras do assunto são as de concordância ou de discordância que giram em torno ao suporte teórico prévio da falsa racionalidade. Há um campo previamente delimitado de objeções e concordâncias e tudo aquilo proferido neste campo é autenticador.

Desconcertante é lançar algo que não faz ponto nem contraponto. A uma insinuação de um fulano de que queria saber minha opinião, resisti ao impulso inicial de simplesmente dizer que não discuto idéias tolas e bárbaras como esta. Preferi dizer isto de outra forma e foi experiência psico social interessante.

Perguntei por que o fulano estava preocupado em curar incuráveis, degenerados essenciais que escolheram a inversão e a afronta aos princípios sagrados do natural. O desconcerto foi tão grande, que o selvagem nem se lembrou de tirar do bolso alguma formulação de caridade cristã, de dever de ser bom e resgatar os desviados. Ficou entre atônito e pensativo.

Neste passo, mais uma volta no parafuso. Por que não simplesmente eliminar os que desviam voluntariamente da ordem natural e imutável das coisas? Nesta altura, eram perceptíveis os inícios de duas sensações no meu interlocutor: começava a sentir o aprazível gosto de sangue da vítima e, também e meio contraditoriamente, um pouco de vergonha.

A extrapolação do absurdo retira o selvagem do disfarce e do conforto da aparente racionalidade. Fá-lo revelar o que realmente quer: eliminar o diferente, quer matar. Fá-lo revelar sua covardia em não se mostrar fascista abertamente. Assim, pode-se despir o fascista que desonestamente propõe a aberração com vernizes de racionalidade de almanaque.

 

 

 

“Home” por Warsan Shire.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

 

HOME

no one leaves home unless
home is the mouth of a shark
you only run for the border
when you see the whole city running as well

your neighbors running faster than you
breath bloody in their throats
the boy you went to school with
who kissed you dizzy behind the old tin factory
is holding a gun bigger than his body
you only leave home
when home won’t let you stay.

no one leaves home unless home chases you
fire under feet
hot blood in your belly
it’s not something you ever thought of doing
until the blade burnt threats into
your neck
and even then you carried the anthem under
your breath
only tearing up your passport in an airport toilets
sobbing as each mouthful of paper
made it clear that you wouldn’t be going back.

you have to understand,
that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land
no one burns their palms
under trains
beneath carriages
no one spends days and nights in the stomach of a truck
feeding on newspaper unless the miles travelled
means something more than journey.
no one crawls under fences
no one wants to be beaten
pitied

no one chooses refugee camps
or strip searches where your
body is left aching
or prison,
because prison is safer
than a city of fire
and one prison guard
in the night
is better than a truckload
of men who look like your father
no one could take it
no one could stomach it
no one skin would be tough enough

the
go home blacks
refugees
dirty immigrants
asylum seekers
sucking our country dry
niggers with their hands out
they smell strange
savage
messed up their country and now they want
to mess ours up
how do the words
the dirty looks
roll off your backs
maybe because the blow is softer
than a limb torn off

or the words are more tender
than fourteen men between
your legs
or the insults are easier
to swallow
than rubble
than bone
than your child body
in pieces.
i want to go home,
but home is the mouth of a shark
home is the barrel of the gun
and no one would leave home
unless home chased you to the shore
unless home told you
to quicken your legs
leave your clothes behind
crawl through the desert
wade through the oceans
drown
save
be hunger
beg
forget pride
your survival is more important

no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear
saying-
leave,
run away from me now
i dont know what i’ve become
but i know that anywhere
is safer than here

Warsan Shire é poeta, escritora e educadora. Descendente de refugiados Somalis, nascida em 1988 no Kenya, cujos pais depois imigraram para a Inglaterra, hoje vive em Londres.

 

PS: Os grifos no poema são meus.

As redes sociais e os comportamentos nem tanto assim.

Um grande fenômeno de nossos tempos são as denominadas redes sociais. No Brasil, começou com Orkut e tempos depois chegamos ao Facebook, Twitter, WhatsApp, pra citar algumas das mais conhecidas… Caso é que serviam, a principio, para reencontrar amigos e ver como estão, coisa que antes se fazia com um reencontro de “X anos” de colégio, faculdade, ou o que seja. Logo se tornou local de discussão, quando se descobria que aquele seu amigão de outrora pensava completamente diferente de você, e logo também se tornou algo mais elaborado, a partir do episódio da “primavera árabe“, algo como uma “ágora” do século 21.

Com a evolução, também começaram a haver distinções entre tais redes, em algumas você é meio que obrigado a convivência com os pares a partir do momento que os aceita (como o Facebook), em outras você escolhe as pessoas de sua convivência (como o Twitter), e em outras ainda, você é obrigado a conviver, sem escolhas (como o WhatsApp). Bom, digo isso porque no WhatsApp uma pessoa qualquer pode te jogar dentro de um grupo, e você fica ali, talvez pensando, sair é um bocado deselegante, então tá, deixa ai.

Pessoalmente eu gosto de todas, e acho todas legais, não somente essas três, mas todas as outras que vocês puderem imaginar, inclusive a melhor que é a LastFM, que contabiliza as músicas que você escuta, mas isso é outra história…

Caso é que com a disseminação do WhatsApp no Brasil, pipocaram grupos de discussão de todas as amizades que eu angariei ao longo da vida, inclusive formaram-se algumas nos próprios “grupos”. E no Brasil aconteceu um fenômeno político interessante de “bipartidismo” em âmbito federal, e isso gerou discussões acaloradas, que se intensificaram a priori por dois motivos: o primeiro, parte da imprensa que claramente é reacionária; e o segundo, as eleições.

Mesmo estando fora do país, pela experiência em tais grupos, dava pra perceber que não era uma boa hora para estar lá. Não pelas discussões em si, mais porque boa parte delas se baseia nas mesmas manchetes da imprensa, e acaba tornando-se enfadonho rebater sempre os mesmos argumentos, e ser invariavelmente taxado de seguir algum dos partidos, por qualquer motivo.

Pois bem, acontece que nas discussões, como eu estou um pouco mais distante do país no momento, procurava sempre ter um pouco de leveza e paciência, que não era notável nos interlocutores, fossem quem fossem… Fato claramente gerado pelo clima de animosidade que tocava a todos que estavam no olho do furacão.

Mas, o mais interessante aconteceu com um argumento “tu quoque” usado mais de uma vez, contra o que quer que fosse que eu defendesse, justamente por estar longe: “-Você não está aqui no país, portanto, não deveria opinar sobre o que não conhece!”; “-Você está longe, por isso defende isso!”; “-Sua realidade é outra!”. Todos enfim dizem basicamente o mesmo, que não estar presente invalida toda minha linha argumentativa. Ora, há argumentos tu quoque elaborados, que podem mesmo chegar a confundir. Esse eu classificaria no máximo, como infantil. E se o argumento era esse, ato continuo, eu deixava de discutir e/ou argumentar qualquer coisa que fosse com a pessoa que o proferiu, porque afinal.. Não valia a pena.

Porém as eleições acabaram, e com elas, eu esperava que acabassem as animosidades, coisa que de fato aconteceu na grande maioria dos grupos, e quando, aqui e acolá, aparece alguma, basta não falar e deixar morrer… Mas um caso interessante aconteceu ontem, eu já não comento sobre política em nenhum grupo, há não ser uma piada ou outra que ache engraçada, porque notei que mesmo sem eleições, o clima continua tenso.

Mas, em um de meus grupos, começaram a falar mal do Brasil, que brasileiro era mal educado, enfim, uma série de preconceitos, baseados ou não em fatos, onde todos tinham um objetivo comum, denegrir o país, ou a imagem do país, claro, isentando-se individualmente ao mesmo tempo, de forma que comentários como “Brasileiro não paga metrô (ou ônibus) no exterior, isso é uma vergonha, má educação” acompanhado de “Eu sempre paguei” eram um lugar comum, cito esse, porque foi a minha gota d’água… Mas estavam todos a exprimir-se sobre tudo, desde “jeitinho brasileiro” à “malandragem”.

Como eu estou fora já há algum tempo, e sei que aqui os comportamentos são iguais ou muitas vezes piores, passei a antagonizar algumas das assertivas… Sobre educação, pode-se perguntar a um Holandês sobre a educação dos ingleses, que vão a Holanda destroçar o país, por causa de algumas leis demasiado “permissivas” na opinião dos primeiros… Sobre andar sem pagar, pode-se perguntar a qualquer italiano o significado da expressão “Fare il portoghese“, que vai ai por entrar sem pagar, desde o metrô, até qualquer outro lugar onde você possa entrar sem pagar, mas que seja “obrigado” a pagar. Sobre a fama das brasileiras serem putas, é um problema e existe, mas não é especialmente nosso, veja-se as Russas por exemplo, ou faça-se uma busca rápida no google com os termos, “inglesas”, “festa”, “Ibiza”.

Em suma, todos os comportamentos descritos como sendo de “brasileiros” os há em todas as nacionalidades, claro, observamos os nossos problemas, por conhece-los mais de perto, e sempre nos incomodará mais, um brasileiro estúpido, que alguém de outra nacionalidade ainda que este seja um pouquinho mais estúpido que o brasileiro.

No entanto, o mais interessante veio a seguir, entre a discussão sobre viralatisse brasileira, e política ali nos entremeios, alguém perguntou o que eu fazia para manter-me. Oras, o que eu faço ou deixo de fazer absolutamente não influi na minha linha argumentativa, obviamente a pessoa buscava um argumento “tu quoque” para usá-lo contra mim mesmo, e isto estava implícito no discurso.

Ante a minha resposta jocosa, veio a insistência e era notável que a intenção era a mesma, do “você não está no país, não deveria falar”, só que nesse caso o caminho era mais ou menos “você tem bolsa do governo, por isso o defende”, ou “você não paga imposto, não devia falar de quem paga”, e por ai vai… O motivo da curiosidade era a ajuda a uma terceira pessoa, e/ou falar das dificuldades encontradas por gente que tentou sair do país, e encontrou demasiados obstáculos. O que claramente denotou-se falso a partir do uso da expressão “filhinho de papai”.

Agora, em nenhum momento eu disse o que fazia para me manter, porque nada do que eu faça para me manter invalida qualquer argumento meu, assim como estar fora do país tampouco invalida que eu fale algo sobre o país. E aqui chegamos ao ponto máximo do post, no grupo, eu não sou o único que mora fora do país, há outras pessoas que vivem (no plural) fora do país. No grupo, efetivamente há pessoas (no plural) que são mantidas pelos pais, seja por motivos quaisquer. Não obstante essas pessoas nunca tiveram argumentos rechaçados por viver fora, ou por qualquer outro motivo. Por uma causa muito simples, eles pensam igual ao restante.

Então a conclusão óbvia, mais uma vez, é que se você pensa igual, se é manada, se é massa, tudo bem, pode-se destilar o preconceito que for, o comportamento que for, ou a bobagem do momento, que você será bem aceito no grupo, o pensar diferente será rechaçado, ainda que com bons argumentos, por qualquer razão que se tenha em mente e esteja a mão, sempre que falte um argumento razoável para que continue ou se evolua em qualquer discussão.

Não é a toa que Rachel Sheherazade seja tão popular, mas ainda bem, que as coisas que ela diz só tenham o respaldo que têm no Estado onde ela nasceu, e aqui eu estou sendo tão preconceituoso ao falar mal do Estado, quanto todos foram ao falar mal do Brasil, mas essa não é a realidade da maioria do país, e aqui eu não divido o país em cores, ou partidos, ela não é maioria, ponto final.

José Dirceu: preso político duas vezes.

Acontece a José Dirceu a raridade de ter sido preso político na ditadura e estar em vias de novamente sê-lo, na aparente democracia regida pelo direito. É provável que na próxima semana seja realizada sua prisão, com algemas, equipes da TV Globo, fotógrafos dos jornais, toda a dramaticidade de uma degradação pública de alguém profundamente corajoso.

Isso resulta de uma farsa montada no tribunal mais alto do sistema judicial brasileiro. Algo tão burlesco que permite concluir que os juízes não erraram tecnicamente, mas fizeram deliberadamente algo que pode ter inúmeros nomes, exceto julgamento.

Uns juízes aparentam certa loucura, misturada com superficialidade e volubilidade; outros são conservadores de antiga fé, daqueles que dão a volta à casa armados, à noite, antes de deitar-se, à procura de algum comunista escondido nos jardins. Há deles tão vaidosos que estão continuamente a serviço de certa imprensa, que os adquire com espaços para dizer barbaridades em entrevistas, muito à vontade e sobre o assunto que quiserem. Por fim, há os covardes.

A imprensa dita grande – Globo, Folha de São Paulo e revista Veja – incumbiu o tribunal constitucional da missão de expurgar pessoas como José Dirceu, mesmo que isso implicasse a montagem de uma farsa tão ampla que levasse junto mais gente também inocente. E eles gostaram da incumbência e chegaram a exceder-se, principalmente pela ferocidade inquisidora e pela mendacidade do acusador-geral.

A coleção de violações às leis perpetradas nesse julgamento de fancaria é muito extensa e convém mencionar as principais. O último tribunal do sistema judicial só é juiz natural em matéria criminal para quem detém mandatos federais. Assim, o stf era absolutamente incompetente para iniciar julgamento criminnal de José Dirceu, por exemplo, que não era mais deputado federal.

Provas a favor dos réus foram suprimidas e ocultadas por meio de desmembramento de inquéritos e determinação de sigilo sobre os que evidenciavam não haver dinheiros públicos envolvidos. Realmente, o maior tribunal do pais encontrou o crime de peculato com dinheiro privado, algo que vai além do simples e corriqueiro desprezo pela lei, o que é comum nos juízes brasileiros.

O peculato é desvio e apropriação de dinheiro público e os famosos recursos pertenciam a um fundo privado da empresa VISANET. Para tornar as coisas mais absurdas, os serviços contratados foram prestados.

O presidente do tribunal esforçou-se para oferecer aos que o puseram em evidência mediática messiânica o máximo possível em linchamento bem ao gosto da pequena-burguesia, ou seja, sangue e humilhação como veículos de expiação moral. Para obter mais efeitos dramáticos foi necessário dar mais uma volta no parafuso das violações a direitos e garantias e fatiar – a expressão é do juiz – o julgamento por supostos crimes e julga-los em blocos.

Nunca o judicial brasileiro – pródigo em desprezo seletivo pela legislação e em subserviência aos interesses mais conservadores – produzira com tanta presa farsa tão digna de vaudeville. O nível caiu bastante, o que revela o grau de apoio da imprensa e o grau de desprezo pelo público razoavelmente alfabetizado, que rapidamente percebeu tratar-se de nada mais que um juízo de exceção em que os réus já entraram condenados.

Os juízes passaram a ficar à vontade demais, como se todo o país se compusesse de leitores da revista veja e perpetraram a imensa coleção de profanações à legislação sem preocupar-se com as aparências, com suas biografias, com nada, enfim. Chegaram ao grau zero de honra, porque não é razoável que tenham feito isso por ignorância formal.

Dois clowns togados sacaram dos bolsos um nome mágico: teoria do domínio do fato. Essa muleta serviu para fazer o que é absolutamente proibido no processo criminal: condenar sem provas. Mas, um dos pais da teoria, o alemão Roxin, veio a público dizer com todas as palavras que não se tratava de algo a permitir condenação criminal sem provas, como equivocadamente queriam os tradutores nacionais. E eles não coraram, não silenciaram e fizeram de conta que não tinham sido expostos ao ridículo.

Não há, nos autos da farsa, qualquer prova de pagamentos a parlamentares para votarem desta ou daquela forma, feitos com dinheiros públicos e de maneira sistemática e continuada. Ou seja, não há provas de corrupção ativa nem passiva, de peculato, nem de formação de quadrilha. Nada obstante, uma juíza disse com todas as palavras que embora não houvesse provas ela condenaria porque afinal ela podia fazer isso.

Novamente, estanco um pouco para insistir num ponto: o nível da farsa, o à vontade com que se perpetrou a coleção de violações, revelam bem a total falta de limites que inspira juízes amparados na imprensa e o total desprezo pelo público, porque têm a certeza de que é integralmente constituído de imbecis, o que é falso, porque 05% da população não é imbecil.

A primeira prisão de José Dirceu terá sido menos infamante para os mandantes que está segunda. A ditadura era menos farsesca que este tribunal ansioso por dar roupagem jurídica a um juízo de exceção de réus previamente condenados. Convém que Dirceu faça o mesmo gesto de quando estava prestes a embarcar para o exílio: exiba as algemas, altivamente.

O depoimento de Frei Tito de Alencar.

Este é o depoimento de um preso político, frei Tito de Alencar Lima, 24 anos. Dominicano. (redigido por ele mesmo na prisão). Este depoimento escrito em fevereiro de 1970 saiu clandestinamente da prisão e foi publicado, entre outros, pelas revistas Look e Europeo.

Fui levado do presídio Tiradentes para a “Operação Bandeirantes”, OB (Polícia do Exército), no dia 17 de fevereiro de 1970, 3ª feira, às 14 horas. O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse: “Você agora vai conhecer a sucursal do inferno”. Algemaram minhas mãos, jogaram me no porta-malas da perua. No caminho as torturas tiveram início: cutiladas na cabeça e no pescoço, apontavam-me seus revólveres.

Preso desde novembro de 1969, eu já havia sido torturado no DOPS. Em dezembro, tive minha prisão preventiva decretada pela 2ª auditoria de guerra da 2ª região militar. Fiquei sob responsabilidade do juiz auditor dr Nelson Guimarães. Soube posteriormente que este juiz autorizara minha ida para a OB sob “garantias de integridade física”.

Ao chegar à OB fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me “telefones” (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do “pau-de-arara”. O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida. Um soldado, carregou-me até a cela 3, onde fiquei sozinho. Era uma cela de 3 x 2,5 m, cheia de pulgas e baratas. Terrível mau cheiro, sem colchão e cobertor. Dormi de barriga vazia sobre o cimento frio e sujo.

Na quarta-feira fui acordado às 8 h. Subi para a sala de interrogatórios onde a equipe do capitão Homero esperava-me. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, eu recebia cutiladas na cabeça, nos braços e no peito. Nesse ritmo prosseguiram até o início da noite, quando serviram a primeira refeição naquelas 48 horas: arroz, feijão e um pedaço de carne. Um preso, na cela ao lado da minha, ofereceu-me copo, água e cobertor. Fui dormir com a advertência do capitão Homero de que no dia seguinte enfrentaria a “equipe da pesada”.

Na quinta-feira três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão cercado por sua equipe, voltou às mesmas perguntas. “Vai ter que falar senão só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça, era quase uma certeza. Sentaram-me na “cadeira do dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos, nos pés, nos ouvidos e na cabeça. Dois fios foram amarrados em minhas mãos e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse se decompor. Da sessão de choques passaram-me ao “pau-de-arara”. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas a cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me a outra sala dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatória. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos. Isto durou até às 10 h quando chegou o capitão Albernaz.

“Nosso assunto agora é especial”, disse o capitão Albernaz, ligou os fios em meus membros. “Quando venho para a OB – disse – deixo o coração em casa. Tenho verdadeiro pavor a padre e para matar terrorista nada me impede… Guerra é guerra, ou se mata ou se morre. Você deve conhecer fulano e sicrano (citou os nomes de dois presos políticos que foram barbaramente torturados por ele), darei a você o mesmo tratamento que dei a eles: choques o dia todo. Todo “não” que você disser, maior a descarga elétrica que vai receber”. Eram três militares na sala. Um deles gritou: “Quero nomes e aparelhos (endereços de pessoas)”. Quando respondi: “não sei” recebi uma descarga elétrica tão forte, diretamente ligada à tomada, que houve um descontrole em minhas funções fisiológicas. O capitão Albernaz queria que eu dissesse onde estava o Frei Ratton. Como não soubesse, levei choques durante quarenta minutos.

Queria os nomes de outros padres de São Paulo, Rio e Belo Horizonte “metidos na subversão”. Partiu para a ofensa moral: “Quais os padres que têm amantes? Por que a Igreja não expulsou vocês? Quem são os outros padres terroristas?”. Declarou que o interrogatório dos dominicanos feito pele DEOPS tinha sido “a toque de caixa” e que todos os religiosos presos iriam à OB prestar novos depoimentos. Receberiam também o mesmo “tratamento”. Disse que a “Igreja é corrupta, pratica agiotagem, o Vaticano é dono das maiores empresas do mundo”. Diante de minhas negativas, aplicavam-me choques, davam-me socos, pontapés e pauladas nas costas. À certa altura, o capitão Albernaz mandou que eu abrisse a boca “para receber a hóstia sagrada”. Introduziu um fio elétrico. Fiquei com a boca toda inchada, sem poder falar direito. Gritaram difamações contra a Igreja, berraram que os padres são homossexuais porque não se casam. Às 14 horas encerraram a sessão. Carregado, voltei à cela onde fiquei estirado no chão.

Às 18 horas serviram jantar, mas não consegui comer. Minha boca era uma ferida só. Pouco depois levaram-me para uma “explicação”. Encontrei a mesma equipe do capitão Albernaz. Voltaram às mesmas perguntas. Repetiram as difamações. Disse que, em vista de minha resistência à tortura, concluíram que eu era um guerrilheiro e devia estar escondendo minha participação em assaltos a bancos. O “interrogatório” reiniciou para que eu confessasse os assaltos: choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo “corredor polonês”. Avisaram que aquilo era a estréia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara”. Mas o capitão Albernaz objetou: “não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis”. “Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.

Na cela eu não conseguia dormir. A dor crescia a cada momento. Sentia a cabeça dez vezes maior do que o corpo. Angustiava-me a possibilidade de os outros padres sofrerem o mesmo. Era preciso pôr um fim àquilo. Sentia que não iria aguentar mais o sofrimento prolongado. Só havia uma solução: matar-me.

Na cela cheia de lixo, encontrei uma lata vazia. Comecei a amolar sua ponta no cimento. O preso ao lado pressentiu minha decisão e pediu que eu me acalmasse. Havia sofrido mais do que eu (teve os testículos esmagados) e não chegara ao desespero. Mas no meu caso, tratava-se de impedir que outros viessem a ser torturados e de denunciar à opinião pública e à Igreja o que se passa nos cárceres brasileiros. Só com o sacrifício de minha vida isto seria possível, pensei. Como havia um Novo Testamento na cela, li a Paixão segundo São Mateus. O Pai havia exigido o sacrifício do Filho como prova de amor aos homens. Desmaiei envolto em dor e febre.

Na sexta-feira fui acordado por um policial. Havia ao meu lado um novo preso: um rapaz português que chorava pelas torturas sofridas durante a madrugada. O policial advertiu-me: “o senhor tem hoje e amanhã para decidir falar. Senão a turma da pesada repete o mesmo pau. Já perderam a paciência e estão dispostos a matá-lo aos pouquinhos”. Voltei aos meus pensamentos da noite anterior. Nos pulsos, eu havia marcado o lugar dos cortes. Continuei amolando a lata. Ao meio-dia tiraram-me para fazer a barba. Disseram que eu iria para a penitenciária. Raspei mal a barba, voltei à cela. Passou um soldado. Pedi que me emprestasse a “gillete” para terminar a barba. O português dormia. Tomei a gillete. Enfiei-a com força na dobra interna do cotovelo, no braço esquerdo. O corte fundo atingiu a artéria. O jato de sangue manchou o chão da cela. Aproximei-me da privada, apertei o braço para que o sangue jorrasse mais depressa. Mais tarde recobrei os sentidos num leito do pronto-socorro do Hospital das Clínicas. No mesmo dia transferiram-me para um leito do Hospital Militar. O Exército temia a repercussão, não avisaram a ninguém do que ocorrera comigo. No corredor do Hospital Militar, o capitão Maurício dizia desesperado aos médicos: “Doutor, ele não pode morrer de jeito nenhum. Temos que fazer tudo, senão estamos perdidos”. No meu quarto a OB deixou seis soldados de guarda.

No sábado teve início a tortura psicológica. Diziam: “A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo”. Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.

Na segunda noite recebi a visita do juiz auditor acompanhado de um padre do Convento e um bispo auxiliar de São Paulo. Haviam sido avisados pelos presos políticos do presídio Tiradentes. Um médico do hospital examinou-me à frente deles mostrando os hematomas e cicatrizes, os pontos recebidos no hospital das Clínicas e as marcas de tortura. O juiz declarou que aquilo era “uma estupidez” e que iria apurar responsabilidades. Pedi a ele garantias de vida e que eu não voltaria à OB, o que prometeu.

De fato fui bem tratado pelos militares do Hospital Militar, exceto os da OB que montavam guarda em meu quarto. As irmãs vicentinas deram-me toda a assistência necessária Mas não se cumpriu a promessa do juiz. Na sexta-feira, dia 27, fui levado de manhã para a OB. Fiquei numa cela até o fim da tarde sem comer. Sentia-me tonto e fraco, pois havia perdido muito sangue e os ferimentos começavam a cicatrizar-se. À noite entregaram-me de volta ao Presídio Tiradentes.

É preciso dizer que o que ocorreu comigo não é exceção, é regra. Raros os presos políticos brasileiros que não sofreram torturas. Muitos, como Schael Schneiber e Virgílio Gomes da Silva, morreram na sala de torturas. Outros ficaram surdos, estéreis ou com outros defeitos físicos. A esperança desses presos coloca-se na Igreja, única instituição brasileira fora do controle estatal-militar. Sua missão é: defender e promover a dignidade humana. Onde houver um homem sofrendo, é o Mestre que sofre. É hora de nossos bispos dizerem um BASTA às torturas e injustiças promovidas pelo regime, antes que seja tarde.

A Igreja não pode omitir-se. As provas das torturas trazemos no corpo. Se a Igreja não se manifestar contra essa situação, quem o fará? Ou seria necessário que eu morresse para que alguma atitude fosse tomada? Num momento como este o silêncio é omissão. Se falar é um risco, é muito mais um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo

“Não queremos, irmãos, que ignoreis a tribulação que nos sobreveio. Fomos maltratados desmedidamente, além das nossas forças, a ponto de termos perdido a esperança de sairmos com vida. Sentíamos dentro de nós mesmos a sentença de morte: deu-se isso para que saibamos pôr a nossa confiança, não em nós, mas em Deus, que ressuscita os mortos” (2Cor, 8-9).

Faço esta denúncia e este apelo a fim de que se evite amanhã a triste notícia de mais um morto pelas torturas.

Frei Tito de Alencar Lima, OP
Fevereiro de 1970

EUA: acabaram-se democracia, direitos civis e liberdades individuais.

Os EUA já foram propagadores da democracia, das liberdades individuais e dos direitos civis. Isso estava na constituição deles, em termos muito claros. Na verdade, ainda está e o fenômeno é de desprezo aberto pela tal constituição.

O que se vive nos EUA é precisamente o que os teóricos do estado de exceção preconizaram, ou seja, a superposição de uma ordem jurídica supostamente de exceçã à original ordem constitucional. Uma não substitui a outra e aí reside o aspecto mais pérfido da coisa, pelo que tem de ambiguidade voluntária.

Não é ocioso lembrar que o regime jurídico do III Reich não revogou nem suplantou o anterior regime de constitucional de Weimar. Ele instalou-se ao lado e por cima, o que é espetacular, do ponto de vista político-jurídico.

Hoje, nos EUA, não há, em termos práticos e legais, as garantias e direitos que caracterizavam o regime do país até o grande golpe de 1963. Isso, a despeito de permanecerem na constituição!

Acabou-se, sem mais, nem menos. Por que é claro que se acabou? Basta ler a lista de ações abaixo:

1) The government reads all of our emails and listens to our phone calls contrary to the Constitution. The Patriot Act allows them to search our homes without warrants.

2) They passed NDAA which President Obama signed on New Years Eve. It took away our rights to Habeas Corpus, trial by jury, indeed the right to a trial of any kind, the right to not be tortured and the the right to legal representation. All of those rights were taken from us by criminals masquerading as politicians who also pretended to care for us.

3) The Congress passed an FAA bill which appropriates money for 30,000 drones to spy on us. The majority of those drones are to be armed with shotgun tasers though they can easily be fitted with missiles. You are now subject to summary execution just like the people of Yemen and Pakistan.

4) The government has brazenly said they have the right to kill us without a trial based on secret evidence.

Direitos Humanos: umas palavrinhas para afastar tolices.

Esse nome é inadequado e deve ser responsável por uma parcela de quanta estupidez fala-se a respeito. Claro que responsável por pequeníssima parcela, porque o maior responsável mesmo é a inclinação natural para a burrice, o fanatismo e a violência.

O cuidar de nomes é preciosismo meu. Explico-me apenas para ter ocasião de alinhar algumas palavras. É óbvio que ser-se humano não é condição exclusiva e suficiente para surgimento de qualquer direito. Na verdade, pode até ser, mas em um truísmo, ou seja, assumindo-se que todo e qualquer direito é humano. Isso não explica coisa alguma, todavia.

Direitos existem porque pessoas vivem conjuntamente, não porque pessoas existem. Da humanidade decorrem fome, necessidade de urinar e coisas do gênero. Direitos originam-se da necessidade de se regularem relações entra mais de uma pessoa: é social, portanto.

Os que se chamam direitos humanos são direitos fundamentais. Essa terminologia tem ainda a vantagem de ser muito menos arrogante, porque não carrega a pretensão universalista, algo a que o fundamentalismo dominante sempre aspira.

Mas, a grande tolice não é chamar a uns direitos humanos ou fundamentais, é não perceber o que são direitos. São regras, mais ou menos genéricas, com mais ou menos excepções conforme a ânsia detalhista e diversionista de alguma sociedade.

Basta assumir isto e também que algumas dessas regras são bastante gerais, umas até pretendem-se tão gerais que se proclamam devedoras de um princípio de igualdade. Aí está a raiz do que são direitos fundamentais: os mais genéricos possíveis, em que os destinatários consideram-se mais igualmente.

Essas regras podem ser estabelecidas pelo poder que se atribui ao Estado, entidade que detém a capacidade de criar regras, supostamente por consentimento dos cidadãos. O caso é que as tais regras são criadas, que existem e que a comunidade dos cidadãos vive a dizer que aceita esse modelo.

Se o povo aceita esse modelo, deve saber o que são leis e deve obdecê-las e não deve fingir ignorá-las, nem mesmo ignorá-las por orgulhosa estupidez. Se, por outro lado, não aceita o modelo, acha que o Estado faz leis erradas, deve insurgir-se, revoltar-se, pôr o Estado abaixo, qualquer coisa, excepto mentir ou ser estúpido.

No Brasil, são comuns violências aberrantes, notadamente por parte das polícias. São muitíssimo comuns contra pobres e pretos, deve-se dizer sem arrodeios. Quando elas acontecem e são noticiadas pela imprensa ávida por um escândalo ao dia surgem duas reações básicas: a histeria por conta da violação a direitos fundamentais e a repetição de que as vítimas são bandidos e não têm direitos.

Como advertências nunca são demasidas – embora sejam o cemitério do estilo – aqui vai uma: as reações básicas não excluem as mais ajuizadas. Estas últimas são minoritárias, mas existem. Feita a advertência, sigo adiante.

Quem, diante de alguma violência policial violadora de direitos fundamentais, põe-se a gritar que supostos criminosos merecem tal violência é estúpido ou desonesto, ou ambos ao mesmo tempo, o que é até mais comum. Estúpido porque devia saber que a violência não tem respaldo legal e desonesto porque se fosse a vítima invocaria o que rechaça e faria um discurso pelos direitos.

Em Recife, Pernambuco, a polícia deteve, na avenida à beira-mar, área nobre da cidade, uns suspeitos de crimes de furto. Deteve-os na praia, espancou-os e submeteu-os a tratamento humilhante. Jogou-os no chão, com as cabeças dentro d´água, pisou nas caras e fê-los comer areia.

Isso não é dever da polícia neste país. E não é dever sendo a vítima criminoso sentenciado ou não. Simplesmente não é, portanto é ilegal. Isso não é punição dentro da legalidade, porque punições legais por crimes são impostas pelo poder judicial, em processos abertos para a finalidade de apurar se houve crimes.

As punições por crimes, formalmente, neste país, são privações de liberdade ou de direitos, fixadas por um juiz ao cabo de um processo com ampla defesa. A polícia tem o dever de prevenir, investigar e reprimir crimes dentro dos limites da lei, limites que impedem, formalmente, espancar, torturar, humilhar.

Muito embora tudo isso seja elementar, quando se fala que um abuso ilegal é um abuso ilegal, o número dos estúpidos e dos hipócritas diz que acusar as ilegalidades é defender bandidos. Uma afirmação rasa e vulgar, porque um bandido só é culpado depois que o órgão estatal competente o afirma.

Eu gostaria, preferiria, que dissessem abertamente do seu desprezo por leis e coisas do gênero, coisa que não haverá, todavia, porque implicaria que os selvagens fossem nobres e sinceros, quando são patifes covardes. Não têm qualquer apreço pela igualdade legal, mas tampouco têm coragem de afirmá-lo, porque querem manter o discurso justificador hipócrita.

Ora, não há igualdades pela metade ou restrições à igualdade legal senão as previstas na própria lei. Ou bem é-se a favor disso, ou contra. Não há terceira via, para desespero da hipocritocracia vigente.

Mas o reino da relatividade legal avança, para tragédia dos estúpidos e desonestos que o promovem. Sim, porque o vale-tudo que quer manter a lógica do pau-no-lombo sem julgamento, da falta de direitos para bandidos, do linchamento, vai atingir aleatoriamente os espectadores bobos-alegres que o querem.

E serão atingidos sem perceberem porque avança o vale-tudo aleatório, firmes no discurso hipócrita, tomando pau no lombo eles mesmos e falando em direitos, eles que diziam que direitos existiam, mas não para a, b ou c. Que falavam em direitos sem saber o que são, que invocavam igualdades quando era para ganhar algum dinheiro ou disfarçar alguma patifaria.

Vamos propor o Estado policial, senhores! Vamos propor o fim dos direitos fundamentais e o estabelecimento dos julgamentos sumários ou, melhor, da falta de julgamentos. E vamos propô-lo dispostos a matar e morrer por ele! Bem, já é damais, não adianta instigar o vulgo a ter honra.

« Older posts