Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Uma aula de tristeza nas Eleições de 2018

Outro dia, vi que uma garota que estudou com os filhos então adolescentes do deputado federal Jair Bolsonaro escreveu um texto. No tal texto, ela contava que os filhos do Bolsonaro eram adolescentes normais, de classe média alta no Rio de Janeiro. Que saiam, paqueravam, eram paquerados, usavam internet, tinham ICQ, e brincavam ou, na gíria do Nordeste, carregavam, em seus círculos de amizade.

Eram adolescentes comuns, enfim. Ela começava o texto se perguntando quando fascistas se tornam fascistas e terminava dizendo que  não sabia quando isso acontecia, mas a situação se transmutava em barbárie quando eles chegavam ao poder.

Nas eleições passadas, e nas retrasadas, e em algumas outras antes dessas, eu não estava no Brasil. Não sentia o clima e, pra mim, sempre era uma grande brincadeira. Especificamente na última, o whatsapp já era um aplicativo de telefone difundido, e eu entrei em vários grupos de colégios onde estudei. O melhor deles, onde haviam mais amigos, mais engraçado, mais carrêgo, era o grupo de meus amigos de terceiro ano colegial, último ano do ensino médio, ou como quer que se chame hoje em dia.

Por estar nesses grupos, eu “senti” mais de perto as eleições, as “brigas”, as discussões acaloradas. Foi uma experiência sui generis participar desse jeito nas eleições. E, aqui novamente, o melhor grupo era o grupo de meu terceiro ano colegial, inclusive onde certa feita alguém escreveu: “-Também, nesse grupo a pessoa tem que estudar antes de fazer uma postagem!”, coisa que não se repetia nos outros grupos. Pra mim, que estava então escrevendo a tese doutoral, era uma despressurização das horas enfurnado na biblioteca, saia e ia conversar aresia no Whatsapp.

Naquele momento, as discussões eram sobre políticas públicas, corrupção, obras, e muitas piadas sobre o português ruim da então Presidenta Dilma Rousseff. Algumas discussões eram boas, outras nem tanto, mas eram interessantes. As conversas davam a tônica do posicionamento de cada um individualmente e o pensamento político era construído a partir daí como singularidades desses posicionamentos, conservadas da época em que estudamos estavam a simpatia de todos e a vontade eterna de nos reunirmos sempre que possível.

Em 2014, a maioria esmagadora do grupo votava em candidatos que eventualmente foram derrotados nas urnas. Os poucos, como eu, que naquele momento elegiam o lado “vermelho” da força pra discutir foram, pouco a pouco, saindo do grupo, até que fiquei eu lá, de Highlander. As discussões eram abundantes, ainda que as vezes pesadas, e eu gostava delas tanto quanto adoro torturar idéias, convicções e rótulos, imagino eu, que com alguma destreza.

Eis que essas eleições 2018 estavam meio… Paradas. Sentia falta de alguma coisa e… Pô, vou entrar no grupo novamente pra conversar besteira com o pessoal. E estavam lá todos, tal qual nas últimas eleições, prontos a discutir, conversar bobagens e contar piadas, como sempre. Os moderados continuavam moderados, os que não eram tão moderados assim, também continuavam não tão moderados assim, enfim… Estavam todos lá, inclusive de bom humor. Depois de algumas provocações, fica evidente o que era de se esperar: em sua maioria, os meus interlocutores votavam em Bolsonaro.

A troça perdeu a graça 5 minutos após eu perceber que Bolsonaro não tem proposta alguma, a não ser na pauta de costumes, sobre a qual não vale a pena nem conversar, ou fazer troça. Nem a minha provocação preferida, que é prometer o voto em troca de um projeto, deu retorno, porque simplesmente não há projetos.

E ai lá vem ela de novo, a pauta de costumes… Chaaaaaata, sem graça, só conservadora e ignorante. São, em sua maioria as mesmas pessoas, bons debatedores, bons humores, tolerantes, nas eleições passadas pautadas pela honestidade dos candidatos, nessa, pela pauta de costumes embalada também pela questão da honestidade.

Eu fiquei matutando hoje sobre o texto que a moça escreveu, acerca dos filhos de Bolsonaro. Também sobre um excelente filme chamado “Diários de Motocicleta” de Walter Salles. A menina se perguntava como se formam os fascistas, o filme de Salles é uma proposta do caminho percorrido pelo rapaz Che Guevara para que este se tornasse então o guerrilheiro Che Guevara, sem dúvidas um bom filme que demonstra esse processo de formação. Eu fiquei então refletindo sobre muitas coisas…

Falando só de Bolsonaro, é um perdido. Uma pena que tenha sido alçado a candidato preferido de larga parcela da população por programas televisivos de comédia com gosto duvidoso. Não representa ideologia, mais por incapacidade do que por qualquer outra coisa. Representa sim, a violência, a estupidez, enfim… Cada linha perdida ao descrever #EleNão é uma linha de tempo perdido na minha vida.

A grande tristeza das eleições desse ano, foi perceber que a pauta defendida por ele tornou-se a defendida por muitos amigos e colegas. Que a defendem tão bem quanto defendiam a pauta outrora defendida por Aécio Neves. Só que agora com mais virulência, entoando expressões como: “vai ter repressão”, “distribuir Meritocracia”, pra ficar em alguns casos. Ora, são meus companheiros de outrora quando era garoto, não acredito nem por meio segundo que algum deles seria capaz de “realizar” algumas das barbaridades.

Não obstante, sempre existe a possibilidade. E é quando eu me pego a pensar, qual será o momento em que isso acontece?! Não precisa se pautar por nenhum exemplo escrito aqui, mas em algum momento na vida desses, eles foram pegos por uma correnteza que os leva por mares que eu, e muitos outros amigos não nos arriscaríamos nem a navegar, de tão incompreensível que é. Qual será o momento em que uma pessoa normal, em que um garoto do colegial decide que deveria “reprimir” o comportamento alheio…

O exemplo das eleições 2018, com um fascista como candidato preferido no Brasil, é na data de hoje, bem vivo. Mas os exemplos são muitos, nas profissões. Por exemplo, qual a hora em que um estudante de Direito se apodera da primeira aposentadoria rural como advogado? Que um engenheiro faz a primeira obra com material imprestável, que o comerciante leva a primeira vantagem indevida, e que todos se unem em prol de matar outra pessoa… Qual a hora que uma pessoa normal, no lugar de defender o mais fraco, passa a se aproveitar das fraquezas alheias?

O proselitismo duelista.

Como herança cultural e paradigma sempre invocado, a farsa dualista platônica nos teria bastado. Mas, a ela acrescentaram-se camadas de preconceitos semíticos e rudimentos de um teísmo de lei e tribunal. É claro que essa mistura fermentou bem e deu ao mundo nossa celebrada cultura ocidental.

Tão evidente quanto o triunfo deste modelo são suas consequências na formação do homem médio. Sofistas metafísicos mal instruídos são a matéria humana mais disponível que há. Eles são disputadores a afirmarem uma crença sincera na dialética quase lógica que os guia. São sinceros, isso é bem verdade, quando estão a mentir.

Não é a incultura o que me move a escrever ou o que me causa repugnância neste tipo médio que pulula, como a infestar o mundo de um ser cujo modelo é o advogado. É sua crença no que chamam convencimento. Ao mesmo tempo em que instintivamente e inconscientemente visam a poder e a dinheiro, afirmam uma racionalidade que de tão impregnada de moralismos é mesmo racional, sob esta perspectiva.

O debate que visa ao convencimento é uma heresia, no fundo, além de prazer do vulgo. Convencer é o prazer de levar o outro a repetir o que o convencedor já está a repetir. A busca pelo mínimo divisor comum leva ao que ela se propõe: ao mínimo. Enquanto os disputadores procuram convencer-se mutuamente, esquecem de buscar perceber mais claramente quais são seus interesses e em que eles se contrapõem aos outros interesses.

O bom disputador deve, necessariamente, achar que o absurdo não existe, ou, no mínimo, achar que ele é um estado quimérico que pode ser afastado pela sofística. Acontece que a sofística não é uma técnica de remoção de brumas, mas um meio de socialização por autocelebração e crença na inexistência do conflito de interesses.

O convencimento entende-se como uma forma de sedução; uma conquista; a atração de alguém para um discurso; a obtenção da adesão a uma narrativa. Essa é uma lógica de tribunal, que emula uma lógica bem própria de solicitação ao deus que habitava a árida faixa entre o Morto Mar e o mar vivo. Estranha religiosidade que se inicia por pedir as coisas ao deus e se esforçar por o convencer de algo, sempre em detrimento de outrem.

Essa racionalidade irracional é a maior garantia da perenidade do sistema. Haverá pontos e contrapontos, mas nunca pontos fora do campo pre-estabelecido, exceto pelos fascismos enfurecidos, talvez. O sistema prevê a dualidade operante na lógica do convencimento e gera hordas de perplexos com a ineficácia fundamental daquilo em que continuarão a crer.

Esse modelo implica crer nas noções de limite e de impossibilidade, noções cujo transplante das ciências naturais para as humanas é um crime de lesa epistemologia. O humano não conhece limites, nem impossibilidades; sua única impossibilidade é a imortalidade e isto não é humano, é biológico.

O ser médio atual, cujo protótipo é o rábula destituído de conhecimentos históricos mínimos, tem vergonha em quase tudo que faz; e tem medo. Por isso surpreende-se, assusta-se, mas não deixa de ser o que é, porque não lhe foi ofertado qualquer outro modelo a seguir. Ora, a causa da surpresa, de qualquer uma, é a ignorância e isto não é dito aqui como insulto coletivo ou por anseio de escandalizar.

Surpreender-se decorre de ignorar e é muito significativo que um dos locais discursivos mais frequentes seja precisamente a surpresa. O mundo vive de surpresas, umas após outras, a se fazerem esquecer nesta sucessão vertiginosa. A surpresa suspende, conduz a um torpor da suspensão da realidade, ao torpor da aparência do tempo parado.

Essa figura do tempo parado – uma impossibilidade fundamental – é reveladora de quanto a história ausentou-se do ferramental de pensamento. A suspensão do temporal, por choques sucessivos de surpresas, acontece na cabeça do homem médio, tamanha sua aversão pela realidade, que nada mais é que história, ou seja, um processo que se autorealiza.

A surpresa que acontece no não convencimento é também uma forma infantilizada de estar na vida. É semelhante à surpresa da criança à resistência à sua pretensão de apossar-se das coisas das outras crianças. Mas o homem médio acredita-se irresistível sedutor e portador das melhores armas sofísticas, o que só pode decorrer de imensa falta de autocrítica.

As coisas mostram-se.

As redes sociais e os comportamentos nem tanto assim.

Um grande fenômeno de nossos tempos são as denominadas redes sociais. No Brasil, começou com Orkut e tempos depois chegamos ao Facebook, Twitter, WhatsApp, pra citar algumas das mais conhecidas… Caso é que serviam, a principio, para reencontrar amigos e ver como estão, coisa que antes se fazia com um reencontro de “X anos” de colégio, faculdade, ou o que seja. Logo se tornou local de discussão, quando se descobria que aquele seu amigão de outrora pensava completamente diferente de você, e logo também se tornou algo mais elaborado, a partir do episódio da “primavera árabe“, algo como uma “ágora” do século 21.

Com a evolução, também começaram a haver distinções entre tais redes, em algumas você é meio que obrigado a convivência com os pares a partir do momento que os aceita (como o Facebook), em outras você escolhe as pessoas de sua convivência (como o Twitter), e em outras ainda, você é obrigado a conviver, sem escolhas (como o WhatsApp). Bom, digo isso porque no WhatsApp uma pessoa qualquer pode te jogar dentro de um grupo, e você fica ali, talvez pensando, sair é um bocado deselegante, então tá, deixa ai.

Pessoalmente eu gosto de todas, e acho todas legais, não somente essas três, mas todas as outras que vocês puderem imaginar, inclusive a melhor que é a LastFM, que contabiliza as músicas que você escuta, mas isso é outra história…

Caso é que com a disseminação do WhatsApp no Brasil, pipocaram grupos de discussão de todas as amizades que eu angariei ao longo da vida, inclusive formaram-se algumas nos próprios “grupos”. E no Brasil aconteceu um fenômeno político interessante de “bipartidismo” em âmbito federal, e isso gerou discussões acaloradas, que se intensificaram a priori por dois motivos: o primeiro, parte da imprensa que claramente é reacionária; e o segundo, as eleições.

Mesmo estando fora do país, pela experiência em tais grupos, dava pra perceber que não era uma boa hora para estar lá. Não pelas discussões em si, mais porque boa parte delas se baseia nas mesmas manchetes da imprensa, e acaba tornando-se enfadonho rebater sempre os mesmos argumentos, e ser invariavelmente taxado de seguir algum dos partidos, por qualquer motivo.

Pois bem, acontece que nas discussões, como eu estou um pouco mais distante do país no momento, procurava sempre ter um pouco de leveza e paciência, que não era notável nos interlocutores, fossem quem fossem… Fato claramente gerado pelo clima de animosidade que tocava a todos que estavam no olho do furacão.

Mas, o mais interessante aconteceu com um argumento “tu quoque” usado mais de uma vez, contra o que quer que fosse que eu defendesse, justamente por estar longe: “-Você não está aqui no país, portanto, não deveria opinar sobre o que não conhece!”; “-Você está longe, por isso defende isso!”; “-Sua realidade é outra!”. Todos enfim dizem basicamente o mesmo, que não estar presente invalida toda minha linha argumentativa. Ora, há argumentos tu quoque elaborados, que podem mesmo chegar a confundir. Esse eu classificaria no máximo, como infantil. E se o argumento era esse, ato continuo, eu deixava de discutir e/ou argumentar qualquer coisa que fosse com a pessoa que o proferiu, porque afinal.. Não valia a pena.

Porém as eleições acabaram, e com elas, eu esperava que acabassem as animosidades, coisa que de fato aconteceu na grande maioria dos grupos, e quando, aqui e acolá, aparece alguma, basta não falar e deixar morrer… Mas um caso interessante aconteceu ontem, eu já não comento sobre política em nenhum grupo, há não ser uma piada ou outra que ache engraçada, porque notei que mesmo sem eleições, o clima continua tenso.

Mas, em um de meus grupos, começaram a falar mal do Brasil, que brasileiro era mal educado, enfim, uma série de preconceitos, baseados ou não em fatos, onde todos tinham um objetivo comum, denegrir o país, ou a imagem do país, claro, isentando-se individualmente ao mesmo tempo, de forma que comentários como “Brasileiro não paga metrô (ou ônibus) no exterior, isso é uma vergonha, má educação” acompanhado de “Eu sempre paguei” eram um lugar comum, cito esse, porque foi a minha gota d’água… Mas estavam todos a exprimir-se sobre tudo, desde “jeitinho brasileiro” à “malandragem”.

Como eu estou fora já há algum tempo, e sei que aqui os comportamentos são iguais ou muitas vezes piores, passei a antagonizar algumas das assertivas… Sobre educação, pode-se perguntar a um Holandês sobre a educação dos ingleses, que vão a Holanda destroçar o país, por causa de algumas leis demasiado “permissivas” na opinião dos primeiros… Sobre andar sem pagar, pode-se perguntar a qualquer italiano o significado da expressão “Fare il portoghese“, que vai ai por entrar sem pagar, desde o metrô, até qualquer outro lugar onde você possa entrar sem pagar, mas que seja “obrigado” a pagar. Sobre a fama das brasileiras serem putas, é um problema e existe, mas não é especialmente nosso, veja-se as Russas por exemplo, ou faça-se uma busca rápida no google com os termos, “inglesas”, “festa”, “Ibiza”.

Em suma, todos os comportamentos descritos como sendo de “brasileiros” os há em todas as nacionalidades, claro, observamos os nossos problemas, por conhece-los mais de perto, e sempre nos incomodará mais, um brasileiro estúpido, que alguém de outra nacionalidade ainda que este seja um pouquinho mais estúpido que o brasileiro.

No entanto, o mais interessante veio a seguir, entre a discussão sobre viralatisse brasileira, e política ali nos entremeios, alguém perguntou o que eu fazia para manter-me. Oras, o que eu faço ou deixo de fazer absolutamente não influi na minha linha argumentativa, obviamente a pessoa buscava um argumento “tu quoque” para usá-lo contra mim mesmo, e isto estava implícito no discurso.

Ante a minha resposta jocosa, veio a insistência e era notável que a intenção era a mesma, do “você não está no país, não deveria falar”, só que nesse caso o caminho era mais ou menos “você tem bolsa do governo, por isso o defende”, ou “você não paga imposto, não devia falar de quem paga”, e por ai vai… O motivo da curiosidade era a ajuda a uma terceira pessoa, e/ou falar das dificuldades encontradas por gente que tentou sair do país, e encontrou demasiados obstáculos. O que claramente denotou-se falso a partir do uso da expressão “filhinho de papai”.

Agora, em nenhum momento eu disse o que fazia para me manter, porque nada do que eu faça para me manter invalida qualquer argumento meu, assim como estar fora do país tampouco invalida que eu fale algo sobre o país. E aqui chegamos ao ponto máximo do post, no grupo, eu não sou o único que mora fora do país, há outras pessoas que vivem (no plural) fora do país. No grupo, efetivamente há pessoas (no plural) que são mantidas pelos pais, seja por motivos quaisquer. Não obstante essas pessoas nunca tiveram argumentos rechaçados por viver fora, ou por qualquer outro motivo. Por uma causa muito simples, eles pensam igual ao restante.

Então a conclusão óbvia, mais uma vez, é que se você pensa igual, se é manada, se é massa, tudo bem, pode-se destilar o preconceito que for, o comportamento que for, ou a bobagem do momento, que você será bem aceito no grupo, o pensar diferente será rechaçado, ainda que com bons argumentos, por qualquer razão que se tenha em mente e esteja a mão, sempre que falte um argumento razoável para que continue ou se evolua em qualquer discussão.

Não é a toa que Rachel Sheherazade seja tão popular, mas ainda bem, que as coisas que ela diz só tenham o respaldo que têm no Estado onde ela nasceu, e aqui eu estou sendo tão preconceituoso ao falar mal do Estado, quanto todos foram ao falar mal do Brasil, mas essa não é a realidade da maioria do país, e aqui eu não divido o país em cores, ou partidos, ela não é maioria, ponto final.

Urinei num pneu quente…

Padre Vasconcelos defendia os interesses da Santa Madre Igreja Católica no sertão nordestino, lá pelos anos de 1950. Era o segundo de cinco filhos de Dona Clementina Vasconcelos, que enviuvara dois anos depois de parir o último dos rebentos.

Dona Clementina tinha um caráter forte, daquela força das coisas práticas. Ou seja, não era o capricho, a curiosidade e o mandonismo vazio das senhoras vazias. Era, em resumo, proprietária de terras e negociava com gados, algodão, tratava com os rendeiros, tudo com bom êxito.

O irmão mais velho do reverendo tivera a sorte ou o azar de ir estudar na Faculdade de Direito do Recife, numa época em que nem quinze anos de getulismo tinham conseguido abater a fatuidade e a vontade de ler em alemão. Acontece que o mais velho irmão Vasconcelos era, em Recife, um semi-rural e semi-rico, ou seja, casaria com a filha de algum desembargador.

O padre, evidentemente, fora ao seminário e tivera a sorte de não ter sido o de Olinda. Quer dizer que Pe. Vasconcelos era autenticamente padre, rural, fazendeiro e conhecedor de muitas frases em latim. Conservou-se nas suas terras e sucedeu à mãe no mando da fazenda.

Quando a viúva morreu, Padre Vasconcelos tomou seu lugar, com mais prestígio ainda, posto que o regime das duas dedicações não representava qualquer escândalo. Os irmãos e irmãs pouco interessavam-se pelos negócios de bois, vacas e rendas e o padre, por sua vez, pouco lembrava-se desses irmãos.

Quem o visse e com ele conversasse pela primeira vez acharia o reverendo meio escasso de espiritualidade e deveras prático. Talvez, só e só prático. Nada obstante, não podia ser acusado de negligente com suas obrigações de dizer missa, baptizar, confessar, dar extrema-unção, encomendar corpos, enfim, toda a rotina burocrática de um cura.

Padre Vasconcelos, sem o saber de conceito enunciado, era ortodoxo e andava à margem do preconceito romano do celibato. Todavia, não adotava o modelo consagrado dos grandes párocos. Antes, comportava-se, nisto de prevaricações, mais como um caixeiro viajante.

Essa ginecofilia diversificada não o punha em apuros espirituais, pois aprendera que a mudança quantitativa, para fazer diferença qualitativa, tinha que ser muita. Assim, um pouco de Aristóteles e muito de hipocrisia absolviam o homem e a disciplina ritual mantinha o padre. Ele sabia que metade de seus colegas elogiavam a lei de Deus de maneiras diversas e mais enérgicas que com o celibato.

Um belo dia, Pe. Vasconcelos manda um moleque da fazenda convidar o Dr. Teles para almoçarem um cabrito assado, no dia seguinte. O médico não estranhou o convite, porque não era malicioso, nem esses convites eram raros. Apenas eram mais rituais e presos a datas certas, porque o padre e o médico não tinham mesmo muitos assuntos em comum; não eram amigos nem inimigos.

O reverendo mandou o único sujeito da fazenda além dele capaz de guiar o jipe Willys apanhar o Dr. Teles na cidade, lá pelas dez e meia. Se ele mesmo fosse no jipe, seria uma deferência que todos estranhariam, porque Vasconcelos viajava muito, mas sempre só.

Teles chega na fazenda e é recebido com aperto de mão e a opção de um copinho de aguardente ou de licor de jabuticaba. Aceita a aguardente – boa para abrir o apetite – e senta-se confortavelmente no alpendre ensombrado, afrouxa um pouco o nó da gravata e pergunta como vai o anfitrião.

O padre nunca era loquaz nem calado demais. Tinha certa habilidade para ajustar o discurso às circunstâncias e aos circunstantes, sobretudo se as coisas girassem em torno a assuntos práticos, preços de propriedades, chuvas, barragens, gados. Com o Dr. Teles as coisas necessariamente girariam torno a estas trivialidades ou a qualquer coisa ligada à profissão do médico.

Para Teles, não parecia que o convite fosse alguma consulta disfarçada, porque nestas ocasiões as perguntas eram diretas, embora eufemísticas. Então, emendou a perguntar pelos cabritos, bodes, carneiros, bois, se os barreiros tinham água e coisas do tipo, ligadas ao mundo daquela ruralidade lenta.

O reverendo parecia disperso, mesmo que os assuntos fossem os seus e que tivesse sido ele a convidar o médico. Não se atinha à conversa, não bebia da aguardente mais que o suficiente para molhar os lábios, nem ansiava iniciar o almoço.

Já era quase meio-dia e não se podia mais adiar a comilança. O cabrito no forno de lenha e algo que faz até o cronista – distante cronológica e geograficamente – salivar enquanto escreve. Teles afrouxou um pouco mais a gravata, afastou um tantinho as bordas do colarinho, provavelmente por gentileza com as gotas de suor que por ali escorreriam…

Curiosamente, Padre Vasconcelos comia pouco e devagar, a ponto de chamar atenção do médico. Mas, como não se tratasse de encontro de íntimos e o código de conduta do tempo e do local não impusesse aos convivas a tagarelice que se impunha às mulheres, o Dr. Teles ficou-se pelos sabores do cabrito e pelos silêncios do padre.

Havia, não se sabe bem porquê, uma garrafa de vinho do Porto na casa da fazenda, coisa rara. Na altura em que a cozinheira ofereceu doce de caju, uma xícara de café forte e um cálice de Porto, Teles achou-se muito bem aquinhoado de hospitalidade num dia que não era santo, nem cívico.

Para a sobremesa, o café e o Porto, o anfitrião resolveu que passariam para a varanda alpendrada e mandou a cozinheira para dentro. Era melhor, porque corria um vento na varanda e o calor na sala estava opressivo mesmo se só tivessem comido uma salada de folhas.

Pelas tantas, o padre resolve-se a falar: olhe, doutor, queria lhe perguntar uma coisa. É bobagem, mas…

Diga lá, Padre Vasconcelos, que é que há?

É bobagem Teles, bobagem mesmo. Mas, é que tá um certo queimor incômodo aqui pelas partes, não sabe?

Sim, tá queimando quando urina, é Vasconcelos?

Pois é isso mesmo, Teles, e não é engraçado? Isso começou por uma besteira que fiz.

Sei como é…

Pois foi, doutor, tava um dia desses viajando no jipe, fazia um calor danado, daquele que não se sabe de onde vem o vento quente. Daí, parei pra urinar e foi no pneu do jipe, no pneu quente… Acho que a quentura do pneu subiu e ficou essa ardência… Foi burrice mijar no danado do pneu quente…

Padre, quando o senhor saiu do seminário, um sujeito de apelido Fleming, que acho que era escocês, sei lá, já tinha resolvido esse negócio.

Sim?

Olhe, passe lá em minha casa amanhã e vá com uma garrafa de licor, que o povo pensa que é um presente seu pra mim. E olhe, pode mijar até no motor do jipe, mas aquelas meninas da rua do açougue velho, padre, aquelas ali é melhor dar a comunhão só na missa mesmo…

Água com gás.

As porções semi-áridas do Nordeste brasileiro viveram esporádicos ciclos econômicos favoráveis. Em regra, deveram-se ao sucesso de alguma cultura agrícola que se adaptou bem a estas plagas abandonadas pelos favores da natureza.

Por um período até longo, reinou o algodão, cultura rentável e viável no clima semi desértico. As coisas foram bem até que uma praga dizimou os cultivos. Até hoje, especula-se ter havido sabotagem na introdução do bicudo, mas parece-me coisa de migração de insetos mesmo.

Na verdade, a cotonicultura no Nordeste já declinava quanto se noticiou a presença do bicudo-do-algodoeiro. Ele veio apenas terminar o pouco que restava e já não era rentável. O cultivo no cerrado já se estabelecera e revelara-se muito mais produtivo.

Nas décadas de 1950 e de 1960 deu-se o apogeu da cultura do agave, espécie de cacto com uma folha larga e longa, a culminar, em cima, num espinho.

Esta planta tem origem nas regiões áridas da América Central e particular fama no México, onde se faz dela aguardente, que a aptidão dos mexicanos para a propaganda fez crer ao mundo tratar-se de bebida boa.

Introduzido no semi-árido nordestino, o agave logo revelou-se bastante rentável e adaptado ao clima inóspito. Dele, o mais precioso são as fibras, de que se fazem boas cordas, inclusive daquelas usadas em navios. Para tanto, é preciso secá-lo e depois desfibrá-lo. Quanto mais longas as fibras e mais claras, mais valiosas as cargas.

Pois bem, lá pelo início dos anos 60 um empresário fazendeiro estabelecido na região agreste do Estado da Paraíba, dotado de visão empresarial e de dinheiro público emprestado a juros irrisórios – é claro – resolveu aumentar a produtividade da sua produção de fibras de agave para exportação.

Depois de pensar um pouco, concluiu não haver o que fazer além de investir na qualidade das fibras, porque aumentar a produtividade por área plantada era impossível. Ou seja, teria que inverter capital na aquisição de máquinas modernas que desfibravam o agave em fibras mais longas e mais clarinhas que as amareladas e curtas mais comuns.

A coisa ficaria meio cara, mas para isso sempre houve um e outro programa do governo para emprestar dinheiro barato, senão a custo zero. Todavia, o homem não visava apenas ao financiamento e ao futuro calote; ele levou as coisas a sério.

As máquinas, na época, eram conhecidas por coronas, de origem alemã. Elas obtinham fibras bem mais longas e mais claras, além de desfibrarem mais folhas por minuto e demandarem menos esforços e riscos dos alimentadores. Nesse ponto, convém dizer que o desfibramento de agave tem a triste memória de muitas mãos perdidas por trabalhadores…

Tomada a decisão, o fazendeiro cuida de fazer contato com a fabricante, na Alemanha. Na época, isso significava encontrar alguém que falasse inglês – alguém que falasse alemão seria um professor de direito da faculdade do Recife e não serviria para a tarefa – e manter vários contatos por telex.

Passados dois meses de negociações, um mês de navio e mais um de alfândega, eis que as coronas chegavam ao agreste paraibano. Com elas, chegava algo inusitado e exótico: um engenheiro alemão para as instalar, explicar como operá-las adequadamente e dar manutenção por curto período.

Os alemães têm fama de gente sério, nisso de trabalho, o que explica o zelo de enviar profissional qualificado juntamente com seus equipamento. As más línguas gostam de acrescentar que o engenheiro tedesco também auferiu boa remuneração pelo seu desprendimento, além de saciar a curiosidade das gentes do frio pelos encantos dos trópicos, é claro.

Fato é que chegaram as máquinas e o sujeito louro e alto, que falava feíssima língua parca de vogais. O coitado do fazendeiro brasileiro teve que dar mais uma volta ao parafuso do seu empreendedorismo e contratar um cicerone falante de inglês, porque do contrário, a presença do alemão e nada seriam as mesmas coisas.

Estranhamente, o alemão adapta-se razoavelmente bem ao calor e aridez causticantes do agreste. Ajudavam, evidentemente, os cuidados do fazendeiro, que providenciou outra geladeira Frigidaire, exclusiva para as indefectíveis Antárcticas do casco escuro.

As dificuldades não eram poucas, principalmente porque a mão-de-obra era tão rústica quanto o agave e via muitas das recomendações técnicas como simples caprichos do galego falante da estranha língua. Mas, as coisas avançavam e aproximava-se o fim da estadia do alemão.

Nessa altura, o engenheiro já adquirira certa desenvoltura entre os habitantes da fazenda e inclusive no povoado vizinho, que certo orgulho fazia chamar de cidade. O gringo ia esporadicamente ao povoado e aprendia uma e outra expressão em português, pronunciadas com um esforço tedesco.

Um dia de fevereiro o calor estava tão intenso que não recomendava cerveja, principalmente depois do almoço, mesmo com a possibilidade daquele providencial cochilo na rede. O alemão chama o cicerone para tomarem o jipe e irem à cidade.

Lá chegados, dirigem-se à bodega na praça e o engenheiro dispensa o intérprete para que fique à vontade e vá visitar aquela viúva piedosa com quem ele travara boas relações de conversas nem tão piedosas. Liberado do acompanhante, o gringo entra na bodega e dirige-se ao dono, que bocejava atrás do balcão de madeira seca e riscada.

Esboça um bom dia e emenda com um água com gás. O homem estranha, mas a cortesia a que todos tinham sido levados, em troca dos dólares do alemão e a bem de se mostrarem civilizados sem fazerem perguntas inoportunas, deixa-o mudo.

Por mais que conviesse ser ou parecer civilizado à base de não estranhar excentricidades, o bodegueiro acha melhor desconfiar, porque era de fato exótico o pedido. O que? – devolve-lhe.

Água com gás! – insiste o alemão, sem exasperar-se.

Tá bom, diz o homem atrás do balcão, se é isso que quer… Retira-se para os fundos, passando por uma portinha estreita e dirige-se aos botijões onde se armazenava querosene. Ia pensando: meu Deus, esse galego é doido mesmo…

Mistura diligentemente o querosene com água fresca, põe num copo, volta e dá ao sujeito louro que suava da testa aos pés. O alemão, todo satisfeito, entorna o conteúdo do copo de uma só vez, regurgita um pouquinho e começa a tontear.

Em menos de cinco minutos, o homem já se contorcia no chão, clamando por Zé Antônio, o intérprete e cicerone. O bodegueiro fica desnorteado e manda um moleque chamar Zé Antônio com a maior urgência. O menino, ladino, objeta que Zé tava naquelas conversas com a viúva.

O bodegueiro dá-lhe uma tapa na nuca e diz: corre lá, menino safado, e chama aquele filho duma égua logo, que esse galego imbecil tomou gás e acaba morrendo aqui!

O alemão escapou, depois de uma verdadeira aventura de cem quilômetros no jipe, por estradas de terra, até chegar na cidade pólo da região, onde havia um hospital. O que não escapou foi a fama do alemão, aquele homem tão cheio de ciência, fazer a estupidez de tomar água com gás…

Eventos de outono da Apple, OS X Mavericks, iWork, iLife, iPads, iPhones e adivinhações.

Esse texto poderia começar dizendo: A Apple acabou… Seria uma injustiça, porque de fato, a empresa não acabou, e além de não ter acabado, é uma das empresas/marcas mais conhecidas no mundo atualmente, claro que tem um nicho específico, não é como a Coca-Cola que até os ratos conhecem.

Seria mais justo constatar a morte de Steve Jobs, e a falta que ele faz na empresa. Jobs não era um gênio da informática, estava muito mais pra gênio do marketing, tanto que o embrião do que hoje são os mega eventos de lançamentos da Apple, já aconteciam 30 anos atrás quando ele fazia o lançamento dos primeiros Macintoshs em salões com outros cinquenta candidatos a “computadores do futuro”.

Jobs tinha algum senso diferente das outras pessoas no que tange ao funcionamento das coisas, nunca inventou nada, já haviam computadores, quando ele lançou o Macintosh, já existiam telefones celulares quando ele lançou o iPhone, e já existiam tablets quando lançou o iPad. Noves fora, originalidade: ZERO.

E ai entra Jobs… Os executivos da BlackBerry, na época a empresa de telefones celulares “para executivos”, riram de Jobs quando souberam que ele testava um telefone celular com tela sensível ao toque. A Microsoft, já havia tentado anos antes do iPad, viabilizar um tablet comercial, sem sucesso. Esses entre outros exemplos ilustram que o negócio da Apple nunca foi inventar nada, antes sim, aprimorar o que já existia. Hoje, a grande maioria das pessoas usam telefones celulares com tela sensível ao toque, ou tablets, pra ficar nesses dois exemplos, graças a Steve Jobs.

Essa introdução era necessária ao texto, por um motivo simples, e mais simples impossível, posto que é ideia do próprio Jobs, a simplicidade, para o usuário final. Desenvolvendo a idéia: o usuário final é demente. Isso é fato. Então quanto mais fácil for de usar o novo aparelho, claro, melhor. E isso é obvio.

Chegamos então no “produto” Apple, e esse não é o telefone, não é o tablet, não é computador. Insisto, o produto vendido pela Apple é a experiência do usuário, e nesse sentido, eles vendem não só um sistema operacional, senão, que além deste, um sistema operacional móvel, entre outra gama de softwares que funcionam em ambos sistemas operacionais, e ainda assim, com a definição de sistema operacional, eu não definiria perfeitamente a tal “experiência de usuário”.

Sem embargo, esse é o produto Apple, a experiência de usuário, que claro, para quem nunca experimentou, não existe, e para quem sim, se a entende, acaba por se tornar uma facilidade. No último evento foram lançados novos modelos de aparelhos, já antigos, até para padrões da própria Apple. A grande novidade ficou por conta dos próprios aplicativos, e sistemas operacionais.

O OSX, um tipo de “windows” para usuários de Macintosh, foi lançado grátis. Além dele, o pacote office da Apple também ganhou nova versão grátis, diga-se de passagem, o pacote “Apple” office, para telefones móveis e para computadores.

Pra mim, esse foi o grande passo dessa bateria de lançamentos, a google já tem a sua suite office online há tempos, agora a Apple, lança, não só a gratuidade de seus sistemas operacionais, como também a de seu pacote office, e também do iLife que é mais um pacote de entretenimento, com edição de fotos, vídeos e música. E essa notícia pra mim é importante porque não obstante os aparelhos sejam os mesmos com atualizações de processadores entre outros hardwares, a atualização dos softwares, e sua gratuidade, farão empresas que trabalham apenas com software, sim falo de Microsoft e adobe por exemplo, decidirem novos rumos para suas linhas de produtos e respectivos preços.

É a Apple, ainda que não inovando, ou melhor dizendo, não aprimorando nenhum produto já existente no mercado, pressionando em outras frentes, e fazendo novamente o mar se mover na direção que eles querem de novo? São boas novas pra quem pensava que a empresa acabava em Jobs, esperemos pra ver agora, que novidades haverão no próximo ano, porque nem só de minha percepção torta vive a empresa, há o “hype“, que Jobs fazia tão bem…

Penne com galinha desfiada e pesto.

Muitos franceses não provençais creem que a chamada cozinha francesa é a melhor do mundo que exclui a Ásia. O restante deste mesmo mundo acredita nisso com a mesma fé que leva multidões a adorarem um livro ou uma personagem histórica. De minha parte, considerando-se este mundo em extinção, deposito minhas crenças e volto minhas preces para a cozinha italiana.

A culinária francesa é demasiado grassa naquilo que frio fica rançoso e tende a mudar de estado. E, embora rica de carnes e de pão, a expressar a riqueza de um dos países mais férteis que há, não teve a inteligência criadora da pasta e das combinações vegetais mais simples e extraordinárias.

Outro dia desses, via um programa de TV de um cozinheiro inglês que faz muito esforço para ser simpático. Geralmente, não levo esse pessoal de TV a sério, porque afinal é de TV e pouco ou nada de bom vem dela. Mas, o rapaz mostrou que não é burro, pois estava em Veneza e cozinhou inspirado em Veneza. Mais precisamente, o cozinheiro fez um carpaccio de carne, encimado por uma salada belíssima das mais coloridas e extravagantes folhas e , afinal, deitou por cima um pesto feito na hora.

A feitura do pesto chamou-me a atenção. Algo trivial que nunca me ocorrera é que os quatro ingredientes do pesto são todos maravilhosos individualmente: manjericão, alho, nozes ou pinhão, azeite e queijo parmesão. Claro, há variações e há quem use pinhão ou nozes ou mesmo castanha de cajú ou mesmo outro queijo forte que não o parmesão. Os pestos industrializados, reparei cuidadosamente que usam óleo de girassol ao invés de azeite de olivas e castanha de cajú, além de serem processados de forma a ficarem muito homogéneos.

O sujeito da TV fez da forma tradicional, triturando e moendo com um pilão e ajustando o alho e o azeite e o queijo aos poucos. Percebi que ele era sincero ao dizer que o instrumento primeiro e mais importante do cozinheiro é o pilão, a forma mais primitiva de misturar ingredientes. E percebi o quanto me faz falta um pilão de madeira…

Por via das dúvidas, adquiri um vidrinho de pesto industrializado, da marca italiana Barilla, para a hipótese do meu dar errado. E adquiri um molho de manjericão fresco, alhos, um pedaço de parmesão e nozes, porque pinhão aqui é impossível encontrar. Separei as folhinhas de manjericão, à mão, cuidadosamente, uma a uma. Descasquei os dentes de alho, todos os que compõem uma cabeça, e não os piquei à faca. Cortei as nozes em pedacinhos.

Pus num potinho de vidro as folhas, as seis nozes picadas e os alhos ralados e um pouco de azeite e comecei a amassá-los com uma colher de pau. À medida que são amassados, deita-se azeite. Esse processo é tão simples quanto demorado e trabalhoso, pois trata-se de amassar mesmo, o máximo possível, para que as folhas, as nozes e o alho derramem suas essências e se misturem ao azeite, veículo a que nada aquoso se mistura.

Depois de algum tempo, é hora de por o queijo ralado e misturá-lo e amassá-lo com força. Convém não exagerar no parmesão, pois é muito saboroso e pode desbalancear a desejada harmonia. No início, a impressão é que a coisa resultará em nada ou quase nada, por conta da aparência. Mas, à medida em que as folhas são trituradas, começamos a ter uma visão de algo mais uniforme.

Para comer com o penne e o pesto, escolhi galinha cozida e depois desfiada. A princípio, pareceu-me estranho e talvez inadequado, porque o peito da galinha é carne de pouco sabor, principalmente cozida. Mas, isso pode tornar-se uma vantagem, se a galinha for mais um veículo para o sabor intenso do pesto que uma carne protagonista a rivalizar com ele.

Cozinhei o peito da galinha na água, sal e pimenta moída, junto com cebolinha fatiada. Nunca havia cozinhado qualquer carne em água com cebolinhas, porque o comum é usá-las no refogado. Desconfiava que pouco do sabor ficaria, mas foi menos ruim que parecia. Depois de cozinhada a galinha, desfiei-a à mão e deixei-a com as cebolinhas fatiadas, murchas já de tanta agua fervente.

Hoje, nada estava previamente resolvido, exceto o pesto que tentaria fazer. Por isso, a mistura da galinha com o pesto foi resolvida na hora e, para meu gosto, ficou ótima. O penne, cozinhei em oito minutos de água fervente, já com sal e um fiozinho de azeite. Ficou propriamente al dente.

Pronto, nos pratos, penne e a mistura de galinha desfiada e pesto, mais um pouco de parmesão ralado por cima e o acompanhamento de um carménère chileno.

Montaigne e Plutarco: um diagnóstico e a impossibilidade de cura.

Michel de Montaigne alinhava entre os piores males do humano a tagarelice. É aquele falar sem fim de bobagens, ligadas umas às outras por laços fraquíssimos e, principalmente, relativa sempre a si mesmo. O tagarela não se interessa por nada mais que ele e sua vontade de serem os outros confirmações dele. Eu fui, eu estive, eu fiz, eu vi, eu acho, fulano disse, fulano foi, fulano achou, esse arcabouço discursivo é o dizer-se contínuo e dizer-se nada.

Plutarco parece ter-se interessado menos em dizer do que a tagarelice seria de mal humano. Talvez tenha saltado o diagnóstico, de tão evidente que é. Passou à constatação de algo quase trágico: ela é incurável.

Como tudo, sua remediação dependeria de palavras e que estas fossem escutadas. A tagarelice, de sua essência, é antitética ao escutar, portanto imune ao único remédio disponível.

Aí está: grave e incurável…

Uma freira na chuva e uma missionária de skate.

Depois de escrevê-lo percebi que o título aí em cima gera a expectativa de algo muito rico em termos de ficção ou de alguma divagação bastante escapista. Não é disso que se trata.

O caso é que vi duas cenas inusitadas ou pelo menos que assim me pareceram, na mesma semana. Às vezes paro a mirar uns passarinhos que vivem em duas árvores da casa vizinha, coisa que as duas gatas que aqui vivem também fazem. Diferentemente das gatas, não vejo uma refeição profundamente apetecível nem acompanho com a cabeça qualquer movimento, por discreto que seja, dos pequenos pássaros. Olho e reparo na repetitiva e diligente rotina deles.

Esse cenário que se abre nas janelas tem dois panos de fundo estranhos: de um lado, depois da casa das árvores dos passarinhos, há daquelas igrejas de Mórmons, que são todas iguais no mundo inteiro, como são sempre muito parecidos todos os consulados dos EUA mundo afora; em frente, um convento de freiras Clarissas, um pouco menos óbvio que o templo dos seguidores do profeta de Utah.

O convento das freiras não tem qualquer riqueza arquitetônica e é relativamente recente. Organiza-se em torno a um pátio quadrado e tem uma capela lateral, como em quase todos. O templo dos mórmons é vulgar como todos e se parece àquelas escolas secundárias de filmes norte-americanos da década de 1980, com o detalhe de dar a impressão das paredes serem blindadas. Estranha essa impressão, mas sempre achei que esses prédios têm paredes blindadas…

O convento oferece um espetáculo que para mim não é nada mais que comum, mas que para alguém vindo de outra cultura poderia ser extravagante. As freiras clarissas trajam-se como freiras, assim como qualquer um de mais de trinta anos sabe como é. Elas não estão meio à civil, como em algumas ordens. Elas estão no século XIX e talvez a sonharem com centúrias anteriores.

Daí, temos um paramento que cobre da cabeça aos pés, sendo a cobertura superior branca e o vestido marrom escuro. Nos pés, sandálias simples, e à cintura um cordão que deveria ser abolido, porque não cumpre função alguma senão marcar o que os votos disseram ser irrelevante. Abstraindo-se dos nossos hábitos, é estranhíssimo, assim como são todos os uniformes.

Os mórmons também usam trajes uniformes, mas é difícil estabelecer qual é o das mulheres, tamanho o desprezo destes ungidos pelo sexo feminino. Os homens, todos sabem que usam calças pretas, camisas brancas de mangas curtas, gravatas pretas e cabelos curtos. Andam em duplas e aqui no Brasil um bafejo de inteligência os fez esquecerem que todo ser humano não branco é filho de Satanás.

Essa gente que anda aos pares – aqui quase sempre um branco caucasiano e um brasileiro mais brasileiro – está tão uniformizada quanto qualquer outro grupo, apenas que seu traje convencionou-se aceitar como aquele que se esperaria num burocrata estatal ou num gerente de banco. De qualquer forma, continua a ser intrigante uma misoginia tamanha que não haja quem se lembre qual o traje padrão duma mulher mórmon.

Bem, deixando os trajes e edificações dos vizinhos para lá, o caso é que um dia destes vi a cena insólita duma freira a chegar ao convento pelas dez horas da noite, parar na porta e bater para virem abri-la. Vinha com um embrulho numa das mãos e sem guarda-chuvas, embora houvesse uma chuvinha fina e estivesse meio frio para nossos padrões, algo à volta dos 20º.

Bateu, chamou por alguma irmã fulana – não consegui reter o nome que não escuto bem e não é assim tão pertinho – e nada. Esperou, coitada, voltou a bater e a chamar e nada. Inquietou-se discretamente, deu dois passos para lá e dois para cá, firmou-se novamente, baixou a cabeça, parecia resignar-se. Parecia, a mim, que não tenho votos corporativos explícitos, que a irmã tinha vontade de urinar, mais que as premências de sair da chuva e do frio.

Para um leigo, parecia mesmo a impaciência legítima de quem quer abrigar-se, aliviar-se de águas acumuladas e que acha agressivo não vir qualquer um abrir a porta da casa que afinal é sua. Devo confessar que olhava a cena com curiosidade, sem juízos de valor além de solidariedade com a irmã que esperava por alguma semelhante sua que viesse abrir-lhe a porta.

A freira esperou muito. E não posso dizer que tenha esperado para entrar, porque não vi o desfecho, porque a irmã impacientou-se tanto que saiu a caminhar, não sei para onde. Isso tudo, que tomou três ou quatro parágrafos, levou dez ou quinze minutos, o que é ua eternidade para quem esteja em frente de casa, impedido de entrar, sob a chuva, provavelmente cansada, e quem sabe a urinar-se.

Outro dia, reparava eu o bem que o vizinho fez ao podar as duas árvores do seu quintal, que assim se tornaram mais agradáveis aos passarinhos que ali fazem residência, e vi uma senhora mórmon a andar de skate. Convenhamos que é algo raro, mesmo que se ache inusitado termo excessivo. A cena dava-se no estacionamento que há no térreo do rico prédio dos mórmons.

Não era uma jovem e isso é só uma constatação e talvez um elogio à capacidade de assumir riscos, porque isso é perigoso, afinal é comum cair e partir a cabeça, lascar uma perna e coisa e tal. A senhora ia e vinha, como se treinasse, como se quisesse obter técnica no uso da prancha de skate. Skatistas são comuns até demais, mas mulheres de meia-idade mórmons skatistas são relativamente pouco comuns.

Fiquei tentado a crer que o inusitado é algo primordialmente quantitativo, ou seja, que depende da raridade do episódio. Mas, pensando mais detidamente, acho que mistura quantidade e qualidade, o que torna as coisas mais simples e complicadas ao mesmo tempo.

Não é somente de raridade que se cuida, porque raridade em comportamentos é difícil de encontrar. A percepção do inusitado tem, talvez, mais a ver com a qualidade, ou seja, com o que difere dos padrões de habitualidade a que o observador habituou-se.

Espero que a freira não tenha apanhado um resfriado e que a senhora mórmon não tenha levado uma queda….

A senzala defende a casa-grande.

O Brasil é caso de estudo no que se refere a concentrações abissais de rendas por prazos muito longos. Também é objeto precioso de estudos sobre inércia social e sobre a capacidade de um pequeno grupo manter as rédeas do país, em benefício próprio, mesmo que isso implique em prejuízos imediatos e tangíveis para a maioria.

Para decepção dos amantes de lugares-comuns, não se trata aqui daquela síndrome que alguns sequestrados apresentam e que consiste em se enamorarem dos sequestradores. A coisa é muito menos simples e não se presta a abordagens simpáticas ao médio-classismo como são estas a partir de lugares-comuns. Não é a vítima que se torna simpática ao agressor por conta de uma convivência forçada, excepcional e traumática. É a vítima que ignora sua condição.

Só há – e desculpe-me quem ler este texto pelo corte abrupto – duas inclinações e propostas políticas: uma propõe concentrar mais a apropriação dos rendimentos; outra propõe desconcentrar um pouco a apropriação. Todo o resto é bobagem e adereço a querer disfarçar esta dicotomia. Estas bobagens passam geralmente por considerações pueris sobre capacidades inatas, sobre esforços individuais, sobre méritos, sobre natureza.

É interessante apontar que o disfarce é utilizado pelos proponentes da maior concentração, sempre. E também é digno de nota que os proponentes da maior concentração negam veementemente a historicidade do humano e, em via inversa, insistem numa natureza humana tão improvável quanto inexistente. Natureza humana, para os defensores da maior concentração de rendas, é um axioma a ser vertido em mantra, lento, repetido…

Isso que a teoria chama natureza é desdito por sucessivas naturezas conflitantes a depender da extensão do período que se considera. Ou seja, haveria tantas naturezas humanas quantos são os períodos históricos considerados, o que nega o próprio conceito de natureza como essência e identidade, coisa herdada de Parmênides.

A concentração de apropriação de rendimentos não é natural, como não é qualquer coisa de humano. Estas considerações estão no âmbito do arbitrário e moral, ou seja, do que se resolve ser regra sem qualquer parentesco com a necessidade ou com a identidade obtida por sucessivas depurações. A provar a não naturalidade dessas supostas leis temos que há períodos de maior e de menor concentração na apropriação de rendas e se uns fossem anti-naturais simplesmente não existiriam.

Nós teremos – e devo desculpas por outro corte abrupto – ruptura em 2014 e fim de um ciclo. A direita deve voltar ao governo central brasileiro e isto terá as consequências óbvias, porque tem as finalidades óbvias: consequências serão todas as que advêm da maior concentração e finalidades são, basicamente, vender o que faltou: a Petrobrás e um e outro serviço público.

Isso afetará a maior parte da população e inclusivemente as classes médias, que são o móvel desta viragem. A mudança será para pior, mas será realizada com apoio dos que perderão economicamente com ela. Eis o extraordinário para quem supuser racionalidade no processo. A senzala defende a casa-grande.

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