Campanha política significa para os sentidos visão e audição dois meses de agressões constantes e intensas. Já não contamos com padrões suficientes de limpeza urbana e isso piora muito durante as campanhas, por conta da quantidade de papéis jogados indiscriminadamente nas calçadas e ruas.

As agressões sonoras tornam-se em regra, com padrões rígidos de ocorrência. Desfilam pela cidade pequenos camiões munidos de aparelhos potentes de som, repetindo em alto volume propaganda dos candidatos. Não importam hora e local, pode ser em frente a escolas ou hospitais.

Essas práticas são ilegais e existem formalmente órgãos responsáveis por coibí-las. Não funcionam, simplesmente. A disfunção é aceita por todos, embora esses órgãos sejam pagos com dinheiro recolhido de todos. Seria melhor – ou mais barato – não os ter. Mas, precisamos viver a dualidade do real e do formal e gastar com isso.

Nestas plagas não somente toleramos o barulho, como parece que gostamos dele. Ele confunde-se com liberdade, ele identifica-se com alegria, com espontaneidade. Falar aos gritos assume-se como uma maneira normal de fazer-se compreender, pois não importa o conteúdo, importa o volume com que algum pouco conteúdo se afirma.

Entendemos que a desenvoltura grita e a timidez fala baixo. A alegria recebe sons em altíssimos decibéis e a tristeza quer algum silêncio. A arrogância cala-se e a simpatia destrói tímpanos. As religiosidades vendem-se aos gritos e os demônios só aceitam retirar-se se forem instados também aos gritos. Esse é o estado mental que temos na maioria das pessoas.

Se há alguma regra sobre barulhos, no fundo a desprezamos e reputamos uma excentricidade que alguém resolveu por em forma de lei, apenas para dizermos que temos esse tipo de regra a algum estrangeiro que considere isso importante. É, como diz o lugar-comum mais genial que existe sobre a psicologia social brasileira, coisa para inglês ver.

Aceitamos porque é o que está aí e sempre esteve, ou seja, o normal, a única coisa possível. Alguém pode até não gostar de barulho em alto volume, mas ficará envergonhado de afirma-lo, sentir-se-á ele próprio um ser exótico, que acha ruim algo tão normal, que não incomoda à maioria. Ora, pensará o incomodado, eu sou o deslocado dessa estória, incomodando-me com o que não preocupa ninguém.

Essa forma de incutir nas pessoas a vergonha e a estranheza de si por pensarem diferentemente de algo majoritário funciona como os sentimentos de culpa da vítima. Algo como aquela percepção canalha de que alguma jovem foi violada porque ela própria criou todas as condições para ser vítima do crime. Pensando assim não há crime, há vítimas criminosas.

Acontece – e sempre volto ao mesmo ponto – que pensando assim também não precisamos de leis nem de aparatos que se refiram à aplicação e cumprimento delas. Mas, somos tão infames e ignorantes que mantemos os aparatos, para participarmos da apropriação do público, embora eles sirvam a quase nada.

E conseguimos fazer o público pagar sem saber porquê, por algo que desconhece e com quê não se preocupa, no fundo. Uma parcela minoritária desse país vende às maiorias uma utilidade em que, nem o vendedor, nem o comprador acredita. Os últimos não sabem nem o que compram, na verdade.