Esse, certamente, é dos caracteres mais marcantes de certa forma de estar no mundo que viceja forte no Brasil: a total promiscuidade público-privada. Essas duas esferas misturam-se e imbricam-se como nervos na carne, até se confundirem quase totalmente.
Claro que nunca ocorre a confusão total, porque o privado defende-se, e fá-lo como se nunca tivesse sugado o público até este ficar exangue. No limite, escapa o interesse privado, sempre.
A repulsa que a simples expressão dedicação exclusiva causa é prova inequívoca da promiscuidade público-privada enunciada acima. E não precisa ser dedicação exclusiva imposta de cima para baixo; trato aqui da dedicação exclusiva opcional e aproveito para falar de coisas concretas.
Sabe-se que existe um regime de docência superior em instituições públicas submetido a dedicação exclusiva. Nesse sistema, o professor optante – sim, é bom apontar o optante – passa a ganhar uma gratificação e fica impedido de qualquer outra atividade. O exclusiva da locução não abre campo a dubiedades e espaços vazios para interpretação: exclusiva quer dizer exclusiva e pronto. Assim está na lei.
Pois bem, muitos docentes optam pela dedicação exclusiva, para ganharem mais, e trabalham em outras coisas. Nesses casos, ocorre improbidade administrativa, ilícito que implica na reposição ao erário do ganho ilícito, impõe multa civil, impõe proibição de contratar com os poderes públicos e impõe suspensão dos direitos políticos e perda do cargo!
As leis são claríssimas quanto a isso, mas o fato é tão comum quanto claras são as leis. Inúmeros docentes de medicina, em universidades federais, optam pela dedicação exclusiva e trabalham em consultórios particulares. Outros tantos de engenharia fazem o mesmo e trabalham como consultores ou projetistas. Os exemplos estão em todos os ramos da docência, enfim.
E, tolera-se! Sim, tolera-se, não se escuta falar da coisa, fez-se dela assunto proibido, ou desassunto, ou coisa de menor importância. Ora, se era para ser assim, por quê raios trataram disso na lei e regularam a proibição? Será o amor profundo das aparências, a hipocrisia insuperável que nos inspira as ações diárias? Será a inclinação para a palhaçada, para o ridículo de sairmos a fazermos proibições em que não acreditamos?
Se a preocupação do sujeito é ganhar mais e ele pode consegui-lo trabalhando fora do serviço público, por que opta por algo que legalmente é impeditivo? Porque sabe que dará em nada, que, no final e ao cabo, estará navegando nos mares da normalidade extralegal.
A dedicação exclusiva deveria ser a regra das funções públicas, até para se evitarem conflitos de interesses. Qual a razão para se admitir que juízes, procuradores, promotores públicos, por exemplo, dediquem-se à docência superior? Não vivem a reclamar que trabalham demais, como querem ainda trabalhar mais, acaso ganham pouco?
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