Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 57 of 126)

Fernando Henrique Cardoso está senil?

Não me conto no número dos que se envergonham de usar os termos direita e esquerda. E também não estou entre aqueles que evitam os termos classe dominante e dominada.

Com relação a esquerda e direita, além de tratar-se de coisas distintas, é qualificação útil para falar-se de política, independentemente de qualquer carga valorativa. Ou seja, existem os lados de esquerda e de direita e isso não significa que existam os lados bom e mau, que isso é lógica binária de pastor evangélico.

Dominantes e dominados é uma díade muito mais interessante, porque atravessa um largo espectro social e econômico.  Os dominantes no topo da sociedade tentam impor a não utilização do termo, porque a dominação mais efetiva impõe o próprio disfarce.

No sentido contrário, é válido afirmar que quanto mais ostensiva uma afirmação de domínio, menos efetiva ela é. O domínio profundo é aquele que se nega, que se esconde, que não se vê e não se percebe muito claramente. A ele convém ser assim nebuloso, porque o que não se vê não se ataca.

De uns tempos para cá, uma parte mais restrita da classe dominante brasileira, a parte mais aparentada ao financismo, enfrenta dificuldades em fazer a maioria da população comportar-se explicitamente contra si própria. Ou seja, perdeu um pouco a capacidade de enganar os dominados.

Assim, perdeu também três eleições presidenciais. Estranhamente, dá sinais de não perceber as razões disso, o que é deveras preocupante, como o viciado em estupefaciantes que não percebe o vício. Nada obstante, em lamentável falta de pudor, expõe sua incompreensão publicamente, como um lamento de ideólogos.

Essa indignação não tem mesmo razões para ser tão profunda. O povo não se tornou, de uma hora para outra, conhecedor das coisas, instruído ou liberto das amarras e disfarces que lhe turvam a visão. É, basicamente, o mesmo de sempre, enganado, ignorante, incapaz de distinguir o que está por trás do jogo mediático e político; premido pelas circunstâncias do dia-adia.

O que aconteceu, para que o povo não escolhesse os maiores dominantes, ou seja, para que não votasse contra si próprio novamente, foi simplesmente que os dominantes passaram dos limites do razoável na dominação. Aprofundaram o que já era muito profundo.

Acreditaram que era possível seguir aprofundando desde que as Globos, Vejas e Folhas seguissem seu bombardeio de mentiras e desinformação. Há precedentes desse tipo de engano. Adolfo Hitler acreditou em Göering, quando este assegurou que a Luftwaffe abasteceria as tropas da frente oriental. Ele precisava acreditar!

Mas, não deu. O modelo da gente representada por Fernando Henrique é concentrador demais, exclusivista demais, menos intelectualmente requintado do que pretende, mais vil do que uma e outra privatização sugere. É absurdo que um modelo de predação – quase aleatório – tenha chegado a crer-se um projeto de poder de longo prazo, o que evidentemente não era.

Que um e outro ideólogo forjado na ditadura mergulhe na impostura de reclamar do sistema político, como se fosse um democrata visceral, não surpreende. Não há o direito a enganar-se ou surpreender-se com farsantes que estiveram, em determinado momento, no lugar de evidência política, a revelar nada mais que oportunismo.

Todavia, que Fernando Henrique Cardoso tenha atitudes que permitam questionar sua inteligência é de surpreender mesmo. Não que seja o autor que ele, Fernando Henrique, supõe-se. Mas, o homem foi presidente da república por oito anos, foi o corretor – mor de venda do país por oito anos.

Ele foi ungido pelos dominantes e por significativa parte dos dominados. Não é um qualquer, portanto. Ele é o chefe de um partido, o representante na política de grande parte da classe dominante brasileira. Ele representa, no Brasil, interesses estrangeiros os mais variados. Ele costumava ser um homem de bons modos, de gestos corteses, de fala mansa, embora balbuciante e repleta de erros que nunca reconhecerá.

Pois Fernando Henrique diz que seu partido político – em provável marcha para a extinção – deve apoiar-se nas classes médias, deve identificar-se com elas, defender seus interesses. Que não deve preocupar-se em manter alguma interlocução com o povão. De minha parte, agrada-me bastante que sigam essa receita, pois assim precipitam-se de vez.

Fernando Henrique deve ter conhecimento bastante de que as classes médias são o que há de mais próximo, em termos de sinonímia, de ingratidão. Não há uma classe ou estrato social menos confiável que a média, nem menos dotada de honorabilidade.

A razão disso é que se julga meritocrática, ou seja, que se julga devedora de ninguém. Acredita que as migalhas que recebe de cima, ganhou-as por direito próprio ou divino. Acredita mesmo! É absolutamente incapaz de reconhecer sua incapacidade, sua pequeneza, suas dívidas sociais.

Crê-se plena, suficiente, devedora de si própria, apenas. Todavia, vende-se por qualquer coisa e depois não se considera corrupta ou corruptível. Ou seja, se fosse uma pessoa só seria o tipo do perfeito patife que ganha algo, mata o doador, sai a difama-lo e a elogiar-se a si próprio.

Fernando Henrique acha mesmo que um projeto político sério e grande pode apoiar-se nas classes médias brasileiras? Elas não admitem recuos em termos sociais e econômicos, porque crêem que suas posições são estáticas e imutáveis. Sua visão não é dinâmica, porque tomam o ponto de referência como ponto de partida.

Fernando Henrique não ganhou a terceira eleição presidencial exatamente porque levou a concentração a nível tal que implicou perdas para as classes médias. Elas não perdoam! Agora, ele convida seu partido a ser o representante das classes médias! Pode ser efeito da senectude.

 

 

 

Mulher nova, bonita e carinhosa, por Amelinha.

Não me acusem pelas imagens falsificadas de filme norte-americano. O vídeo tem dos melhores sons dessa canção que Zé Ramalho reivindica e que Amelinha canta como ninguém.

Essa canção sempre me chamou atenção, belíssima. Um tio meu, muito estimado, dizia-me que isso era de domínio público, que um cego na cidade pequena em que ele nasceu já cantava versos dela, na rua.

Não sei, mas que é bonita é.

Contra a homofobia, que recrudesce neste país de imbecis.

 

O Brasil é aquele lugar onde semeiam-se tempestades, embora já seja bem servido de ventos fortes. Mas, é aquela estória, o pior é o que ainda falta acontecer.

Firmes nos seus propósitos de laborar para piorar as coisas, desagregar o que já é mal arrumado, instilar o conservadorismo odioso, fazer regredir direitos fundamentais precariamente estabelecidos, a grande imprensa do país deu em estimular a homofobia.

É ilegal? É, sim, mas e daí? Certos grupos – e a imprensa insere-se destacadamente como um desses – operam segundo legalidade própria, auto-concedida e auto-interpretada, seletivamente. Não é o caso daquele lugar-comum de estar-se acima da lei, mas de ser o legislador de si mesmo.

A partir de argumentos de induvidosas tolice, superficialidade e má-fé, disseminam o ódio contra homossexuais, que já são grandes vítimas de estigmatização social e de violências físicas quase nunca punidas.

A coisa tem forte matriz religiosa, notadamente nos extremismos evangélicos, de uma superficialidade de poça d´água. Qualquer semi-alfabetizado incapaz de apontar em um mapa o sítio do lago da Galileia é capaz de enfileirar meia dúzia de citações mal traduzidas da Bíblia hebraica, para delas extrair um ataque virulento contra uma forma de sexualidade.

O que há de má-fé nisso é a deformação das idéias de liberdade e de vontade. Alguém tem vontade de urinar e não é propriamente livre para não na ter. Por outro lado, alguém não tem a pele amarela, por exemplo, como uma emanação de vontade livre. Alguém não tem olhos azuis como resultado de uma livre opção.

Da mesma forma, alguém não tem essa ou aquela sexualidade devido a uma opção livre. E, mesmo que assim seja, por ampliação racional do universo lúdico e lúbrico, será uma questão de liberdade individual e pronto.

Não há deuses metidos com essas coisas, que se houvesse deuses do tipo, seriam os mais cretinos imagináveis e menos divinos possíveis. Ora, deuses que cuidam de sexualidade são figuras de revistas de fofocas de novela!

As massas, todavia, são sensíveis aos extremismos. São – é trágico – sedentas por exclusão, querem ter sua parte ativa na exclusão. Elas, que são totalmente excluídas do processo decisório e da apropriação da parte relevante das riquezas, querem seu quinhão do poder de excluir.

Então, entregam-lhe essa parte, a exclusão por estigmatização social, a exclusão por diferença física ou comportamental. Elas, alheias ao grande jogo, aceitam sua parte e exercem a exclusão com gozo indisfarçável. Mais adiante, todavia, não mais se satisfarão apenas com isso. Quererão o direito a linchar, que é a resultante inevitável de semear as tempestades.

 

 

Brasil: infantil, vulgar e esquizofrênico.

É anátema ou apologia falar em ordem e em seriedade. A primeira, as pessoas confundem com repressão. A segunda, confundem com tristeza ou com a aparência formalmente compungida. As duas coisas não são o que o senso comum adotou como percepção delas; e faltam a esse país, ambas.

Repressão, já existe em demasia no Brasil e, ademais, de forma seletiva com pretos e pobres. Transborda seus efeitos, uma e outra vez, sobre aqueles que a glorificam, pegando-os aleatoriamente. Aí, é o escândalo, são os gritos, o fim do mundo, a reação bipolar.

Seriedade, para nós, é uma postura teatral. Há momentos para expressa-la, mas nunca é ua seriedade séria, em que se acredite. Sim, porque achamos-nos os felizes, os do carnaval constante, os únicos e exclusivos seres alegres do planeta. Acreditamos nisso como em uma revelação de carácter distintivo. Temos que sê-lo.

O povo recebeu o guia de comportamento, recebeu as linhas gerais de seus personagens sociais; ele os recebeu mais que os construiu, porque essa alegria, essa falta de seriedade, não se sabe o que são.

Fomos e somos profundamente infantilizados e vulgarizados. Somos capazes de reclamarmos de tudo e de compreendermos nada. Acreditamos que temos direitos vários, embora não os tenhamos, quase nenhum. Gritamos como crianças, falamos como crianças, chantageamos e somos chantegeados como crianças.

Como elas, somos enganados, recebemos um e outro afago; falam conosco naquela linguagem afetada destinada às crianças… e aceitamos.

Somos vulgares e rudes e achamos que isso é espontaneidade. Achamos, porque somos adultos, mas queremos que isso seja aceito porque queremos-nos aceitos como crianças! Estamos deslocados, a padecer de uma puerilidade adulta. Nosso comportamento é dúbio, cambiante, como adultos acanalhados a vagarem pela vida.

Tudo pode e nada pode, como se fôssemos 190 milhões de meninos e meninas, a quem se desculpa tudo. Partimos para o vale-tudo, porque tudo pode. Ao mesmo tempo, vivemos o vale-nada, porque a mão pesada da repressão e da vida miserável cai aqui e acolá, como por sorte ou acaso.

Na verdade, a mão pesada da realidade não somente cai, ela permanece a esmagar a maioria e a maioria… a ser infantil. E a reagir esquizofrenicamente a qualquer estímulo, sem perceber o jogo que joga. A maioria a ser guiada, mas não segundo um guião que construiu a passos lentos, ainda que de servidão, mas construído por seus passos.

Não, a servidão é dupla, é real e formal. É vivida e encenada e suas vítimas resignam-se a ela, nas duas formas. Acham que basta-lhes a possibilidade de fazer parte do caos, ativamente, para deixar de perceber o caos.

A liberdade de ser mal-educado, de expandir sua esfera individual até agredir as dos outros basta às pessoas para viverem sem qualquer liberdade. Deram o mais em troca do menos. Perdeu-se a civilidade para ganhar o direito a viver em aparente liberdade de ser-se selvagem.

Esse foi o diversionismo que 02% do país impôs aos restantes 98% dele. Ou seja, tu podes achar que és livre porque pões o barulho do teu carro a incomodar meio mundo, tu podes urinar ou defecar nas ruas, tu podes furar uma fila, tu podes dar um pequeno golpe de estelionato, para que uma escassa minoria possa apropriar-se de ti, para viver apartada de ti e passar as férias no estrangeiro.

Essa é tua liberdade, a de seres selvagem, fazeres de criança, falares disparates, trabalhares a salários miseráveis. Tudo isso para achares que és livre e manteres as coisas como estão, para 02% do total das pessoas do teu país viverem como querem e como sabem que querem.

Mas, precisarás de segurança pública, precisarás de andar nas calçadas. Ficarás doente, terás que por teus filhos em escolas. Terás o retorno que os selvagens infantilizados e vulgarizados têm, ou seja, qualquer farsa. E, se reclamares, dar-te-ão mais um carnavalzinho e mais um direito a te embriagares.

Se pensares em reclamar com um pouquito mais de crítica, terás uma revista semanal qualquer a te lembrar do roteiro de tua vida. Tens que ficar escandalizado porque um fulano maluco matou dez ou doze pessoas, ainda que teu dia-a-dia te mostre cem ou duzentos mortos tão ou mais reais.

Vais preocupar-te com os japoneses que morreram de um terramoto, ou vais falar de uma guerra em um país que não sabes em que parte do globo está. E tu podes ter rendas mínimas ou até elevadas, és uma criança de toda forma.

Logo, teu supremo direito a passar outra criança para trás, a cometer uma incivilidade qualquer, te fará esquecer até o guião recebido da revista de imbecilidades semanais. Assim seguirás, tolo, vulgar, grosseiro, certo de que és cordial e alegre, servo, sempre servo.

 

 

 

Justiça de transição. Acertam-se contas?

O problema das leis – o maior deles – é o tempo. Elas transformam-se ou mantém-se conforme o ritmo da vida do grupo que disciplinam. Elas têm a pretensão da permanência, mas esse desejo é incompatível com a História, porque vive-se. Mas, a dinâmica histórica é compatível com certos padrões mais estáticos, com certas balizas mais estáveis.

As leis costumam dizer porque se fizeram: é o dever de motivar uma imposição ampla e supostamente abstrata. Ou seja, elas se destinam a tratar de uma situação e devem explicar porque o fazem daquela maneira.

O sistema de fazer leis obedece à hierarquização. Assim, há leis mais importantes que remetem os detalhes a leis menos importantes, sucessivamente. As mais inferiores e detalhadas devem estar em conformidade às superiores.

A legalidade constitucional é tão frágil quanto uma roseira comprada no mercado, que já chega morta em casa. Ela rompe-se e, depois, põe-se no seu lugar outra legalidade constitucional, pois não falta quem escreva uma constituição.

Quando o rompimento é drástico, os problemas tendem a ser econômicos e políticos, ao depois. Quando é aparentemente suave, ou é disfarçado, ou negociado, os problemas são mais sutis, embora mais duradouros, com é uma ferida que não para de supurar.

O Brasil, em 1964, teve um golpe de Estado. Um golpe que teve resultado positivo, depois de muita insistência, pois ele foi tentado várias vezes, contra os governos de dois presidentes, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.

O terceiro – ou quarto, melhor dizendo-se – sucumbiu. O Presidente João Goulart foi deposto por um golpe de Estado, em 01 de abril de 1964. Instalou-se no poder um grupo que ainda não saiu dele integralmente, mas não é disso que se trata.

Vigorava no país, na ocasião do golpe de Estado, a constituição de 1946. Os que se instalaram trataram de modificar essa lei constitucional: primeiramente em 1967 e, depois, em 1969. Instituiu-se uma ordem constitucional mais restritiva de direitos e garantias individuais, a bem da segurança nacional. Abstraindo-se do que se considere segurança nacional, deu-se ao país um novo ordenamento jurídico.

Estabeleceu-se, enfim, uma ditadura, com militares à frente das posições mais destacadas no Estado. Instituiu-se um bipartidarismo farsesco, a possibilidade do presidente da republica cassar mandatos políticos livremente e eleições indiretas para a presidência.

Essa ditadura teve vinte e um anos de vida e cinco presidentes não eleitos democraticamente. Ela acabou-se quando julgou conveniente acabar-se; não foi derrubada, cansou-se. Deformou profundamente as mentalidades, instilou as idéias do oportunismo, da superficialidade e da aparência como fundamentos sociais.

Claro que essas três inclinações estão sempre presentes nos agrupamentos humanos, em maior ou menor proporção, por isso mesmo não é necessário estimula-las. As piores coisas vivem por si, não precisam de ajuda.

A ditadura que se queria regime de legalidade plena deixou seus agentes praticarem violências enormes, arbitrárias e ilegais contra os cidadãos. Sequestrou-se, matou-se, torturou-se, violou-se, espancou-se. A mim, parece-me que essa tolerância com a violência institucional era o pagamento aos servos médios. Deixava-se que se saciassem com sangue, enquanto outros saciavam-se com dinheiro. Cada grupo com sua paixão, enfim.

Em 1979, o regime político ditatorial, antevendo o esgotamento, fez passar no Congresso Nacional a lei nº 6.683/79, chamada lei de anistia. Interessa transcrever o artigo 1º e os parágrafos 1º e 2º dessa norma:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

§ 2º – Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.

 

O sistema constitucional brasileiro desconhece a inconstitucionalidade de normas produzidas antes da constituição vigente. É uma questão de coerência lógica. Todavia, existe outra maneira de aferição de compatibilidade de uma norma pre-constitucional com a constituição superveniente. Então, as normas anteriores à constituição, ou são recepcionadas pela nova ordem, ou não são.

Para julgar a recepção – conferindo os mesmos efeitos práticos de uma ação declaratória de inconstitucionalidade – existe a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF. Por meio dela, pode-se obter uma declaração do supremo tribunal federal sobre a compatibilidade de uma norma anterior com a constituição superveniente.

A OAB, por meio do excepcional trabalho de Fábio Konder Comparato, propôs uma ADPF para que o stf se pronunciasse sobre a compatibilidade, a recepção, em termos jurídicos,  da lei de anistia com a atual constituição. Compatibilidade muito improvável, pois a Constituição veda a tortura e a considera crime imprescritível.

O supremo tribunal federal julgou a lei compatível com a atual Constituição, em atitude infamante e indigna de juízes que se supõem conhecedores da lei, da filosofia do direito e que, ademais, são os maiores magistrados do país. Foi preciso julgar contra a técnica e com amparo nas inúmeras variantes do discurso que, no fundo, nega a história e estimula a violação das regras. O stf agiu em desconformidade a qualquer coisa que se assemelhe a um poder judicial, porque alinhou-se à noção de que regras são desprezíveis.

A lei controvertida anistia os crimes políticos e aqueles conexos a eles. Aqui, deve-se ir ao ponto central, que é a conexão entre crimes. São conexos os crimes que têm a mesma motivação, que são praticados pelas mesmas pessoas e que são praticados nas mesmas circunstâncias temporais e geográficas, sendo as provas de uns dependentes das de outros.

Os crimes praticados pelos agentes do estado não são conexos àqueles praticados por quem resistiu ao regime ditatorial. Ora, crime político é aquele cuja motivação é atingir um regime político e não pode ser conexo aos crimes praticados com a motivação de defender esse mesmo regime. A diferença de motivação é de uma obviedade que leva a pensar que os defensores da conexão não agem por estupidez – que seria muita – mas pela histórica leniência conciliativa brasileira.

Os motivos de quem age contra ou a a favor de uma ordem política são tão diferentes quanto vinho e água. Uma interpretação correta leva à conclusão de que inexiste conexão entre tais delitos e que, consequentemente, a lei foi escrita por juristas incapazes que, embora querendo anistiar tudo, fizeram um texto que anistia apenas quem devia ser anistiado. Mas, nestas plagas, a pressa e a insuficiência intelectual são premiadas depois. As mesmas inclinações chancelam as intenções iniciais, a despeito do erro formal e material.

Essa piada levou o Brasil a ser condenado na Corte da Organização dos Estados Americanos, porque não se coaduna com os princípios a que os Estados participantes aderiram.

A justiça de transição não é a formalização de vinganças. É, antes, afirmação de que há direitos invioláveis, afirmação de que afronta-los implica riscos e, sobretudo, afirmação de que a história deve ser clara, de que devem estar presentes os elementos que permitam observa-la.

No Brasil, não apenas a pretensão à impunidade teve sucesso. A operação de lanças névoa sobre o passado também prosperou, tanto por meio da supressão de documentos, quanto pela consagração de uma tola ideia de inutilidade de falar-se da ditadura, como se o não falado inexistisse. É dos maiores triunfos que se conhecem, nessa área de imunizar-se a críticas.

O contrário do que se faz no Brasil está por todas as partes. Para cuidar de exemplos mais evidentes, basta evocar a Espanha, a África do Sul, a Argentina, o Uruguai. O caso espanhol mereceria um artigo próprio, dada a complexidade e a longevidade da ditadura superada e porque, além de tudo, envolveu uma guerra, no seu início.

Em geral, os países que superam ditaduras em que se violaram direitos de cidadãos, sistematicamente, por agentes do Estado, abrem acesso a todas as informações disponíveis. Assim, quem quiser pode debruçar-se sobre o suporte documental e escrever o que quiser, contra ou a favor. Quem disser algo pode ser contrariado por outrem, que viu os mesmos documentos.

Afastar a obscuridade e o sigilo é fundamental, porque eles só aprofundam a ignorância, a superficialidade e a tolerância ingênua de quem não sabe bem o que foi aquilo sobre que propõe tolerância. É um jogo de cegos e surdos, aos gritos e às tapas, um jogo se soma zero, enfim.

A ditadura militar de 21 anos foi grande vencedora, em detrimento do restante do país. Impôs sua forma de saída, impôs o sigilo sobre o que fizeram os agentes do Estado, concedeu-se – em mau português, é claro – um impossível perdão, estabeleceu as regras para a interpretação de si própria.

Deformou a percepção de democracia, de sistema eleitoral, de igualdade legal, de fronteira entre público e privado. Deixou de herança um partido que ainda hoje é ponto fundamental de sustentação política, um partido que nada mais é que a resultante da oposição consentida, com toda honorabilidade que as oposições permitidas podem ter.

Enfim, o Brasil, depois de 21 anos de ditadura, não teve ainda uma justiça de transição. Teve, antes, uma transição acertada internamente, sem justiça. E a maioria crê que isso não tem consequências.

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