Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 56 of 126)

Saudades de Braga.

Lígia enviou-me um e-mail. Disse-me que vai a Portugal com a sobrinha Mirella, que deve lá estar por quinze ou vinte dias e pediu-me algumas sugestões. Estará duas semanas em Lisboa, com primas dela que lá moram, e tem três ou quatro dias para viajar. Parei pára pensar…

Não consegui evitar responder em uma longa mensagem, como se saboreasse todas as trivialidades que fizeram parte de meu cotidiano, por um ano. Não pude evitar a sugestão de ir ver a Ribeira do Porto, descendo de São Bento, a caminhar. De ir a Gaia, passando pela Ponte D. Luís, porque assim vê-se o Douro verde granítico.

Não pude deixar de dizer que, se possível, fosse a Braga. Que fosse ver a Catedral, que subisse a Rua do Souto, que tomasse um café n´A Brasileira, que olhasse a Avenida Central, a Avenida da Liberdade. Que, antes, entrasse à esquerda e fosse ver o Jardim de Santa Bárbara, que deve estar florido por estes tempos.

Fui fazendo sugestões que eram coisas comuns, há três anos… Não perdi a precisão, acho, pois consegui lembrar o preço de um comboio do Porto para Braga, consegui lembrar como é a cidade vista desde o Bom Jesus.

Lembro-me com saudades imensas de um passo após o outro, na caminhada pela feia Rua Nova de Santa Cruz, até chegar à passagem para a Rua Dom Pedro V, de calçadas estreitas até ao Largo da Senhora-a-Branca. Chove fininho e, na altura do Minipreço, a calçada alarga-se, há uma garagem de Volkswagen e, depois, a Igreja de São Victor.

Depois de São Victor,  mais memórias. O Largo da Senhora-a-Branca, a Av. Central.  Caminha-se mais lentamente, agora. Se tomo à direita, sigo pela avenida, com as gambas e a loja do paquistanês à esquerda. Se tomo à direita, vou aos correios, como ia frequentemente, mandar livros para os que gostam deles.

Posso ir lentamente até o Continente, comprar um jornal, alho, cebolas, carne moída, algum sabão que falta em casa. Passo a passo estou em casa e não estou nela. Sempre, ao mesmo tempo, sou de fora e sou do caminho. Vejo – com o só podem ver os que caminham – o rio que passa pequeno, os delumbrados das BMWs modificadas, as crianças que saem da escola, o gato Joaquim que está na janela na rua que aponta para o Continente.

Não vou ao supermercado. Viro à direita, vou ao centro pelo caminho mais longo…

 

 

Osama bin Laden morreu. O que importa?

Os bin Laden eram e são patrões. Gente de uma oligarquia saudita, aparentada aos da casa real, riquíssimos. Partícipes da riqueza gerada pela exploração do petróleo, na Arábia Saudita.

Como todos os poucos sauditas em situações semelhantes, os Bin Laden têm empregados representantes de seus interesses nos EUA e na Europa. Trata-se de investir dinheiros limpos, branquear dinheiros duvidosos, contratar fornecedores, comprar simpatias no Congresso e, claro, vender óleo.

Um dos representantes dos Bin Laden era George Bush, aquele que ainda fez parte de uma aristocracia que foi à guerra, ou seja, o Bush que sucedeu a Ronaldo Reagan. Esses Bush trabalham com petróleo e elegem-se no Texas, embora estudem – os que estudam – no leste.

Um dos vários Bin Laden é Osama, o que foi assassinado recentemente, em operação dos militares norte-americanos em terras paquistanesas. Parece que Osama nunca seguiu o destino mais comum aos Bin Laden, ou seja, não foi mais um príncipe saudita, rico e vivedor segundo as riquezas de passeios no Mediterrâneo em grandes barcos repletos de moças fremitosas ao fremir dos dinheiros.

Mas, a circunstância de ser o não-playboy não fez de Osama um não negociador com os Bush e o o governo norte-americano. Há pouco menos de trinta anos, Osama foi útil para o desiderato norte-americano de complicar a vida da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas na sua guerra contra os afegãos.

O que se desvia do habitual – e só se percebe muito depois – é que a disposição de Osama para negociar provinha de uma crença que não dependia propriamente de dinheiro. Alias, coisa que seria óbvia se os negociadores norte-americanos se ativessem ao fato de Osama ser rico! Eles compraram o que não estava à venda.

A questão das crenças e inclinações de Osama não vem ao caso, agora. Importa não esquecer que ele fez aquele acordo para dar combate aos russos da mesma forma que faria qualquer acordo para dar combate a quem fosse, momentaneamente, contra o povo que julgava agredido, ou contra suas idéias.

Importa não esquecer que ele não foi comprado integralmente, senão circusntancialmente. Claro que nada disso exclui a possibilidade de tratar-se de um patife – nunca de um louco – porque um árabe não tem que meter-se em assuntos da estepe, mas…

Os EUA responsabilizaram Osama e uma agremiação bastante implausível por explosões e matanças ocorridos em onze de setembro de 2001, em Nova Iorque e Washington DC. Esses episódios, a meu ver, estavam acima das possibilidades de Osama e de quantos seguidores ele tivesse. Excepto se contavam com facilidades como uma estranha sonolência das defesas aéreas norte-americanas e uma ignorância profunda dos serviços secretos sempre tão celebrados.

Depois desses feitos atribuídos a um potente Osama bin Laden, os EUA estiveram à vontade para atuar na sua área de preferência: a emergência. Ela permite o levantamento de quaisquer ordens, de quaisquer garantias, ela torna viável o estado de excepção. A guerra – chamada agora de justiça – tem livre trânsito, protegida por razões jurídicas.

A guerra não pode acabar-se. Ela é um fator mágico: gera receitas para o enorme complexo industrial militar, para o setor de prestação de serviços mercenários, para as corporações estatais que cuidam de segurança, para o setor financeiro e para as classes que se ocupam da direção governamental do estado.

Para esses últimos, a guerra e o estado de tensão neurótica permanente fornecem a desculpa para o levantamento de certas legalidades, sob o pretexto da exceção. A tensão funciona como causa excludente da normalidade legal e, por isso mesmo, é muito útil para os políticos.

Ainda tem outro efeito positivo para os governantes, porque ela embriaga as massas de fervor cego, sanguinário e patriótico. Assim enlouquecidas, as massas são conduzidas para onde for necessário. Às vésperas de um processo eleitoral em que o presidente Barack Obama apresentava-se com poucas chances de reeleição, o assassinato de Bin Laden foi o golpe certo.

Do ponto de vista de terrorismo e outras coisas desse tipo – todas muito diversas e chamadas pela mesma ambígua palavra – o assassinato de Bin Laden quer dizer nada. Não era líder de coisa alguma um homem que não podia estar por trás de todas as bombas explodidas no mundo. Não há uma rede organizada como querem crer cérebros que acreditam em organização. Não há porque pessoas com os interesses mais diversos simplesmente não se organizam.

Bin Laden vivia ni Paquistão há anos, com o conhecimento do governo paquistanês, é claro. Por dinheiro, eles os governantes paquistaneses só não entregam suas bombas nucleares. O restante está à venda, precisando-se apenas acertar-se o preço. Deu-se isso relativamente à localização de Bin Laden.

Disseram onde ele estava e os norte-americanos foram lá e mataram-no, pronto. Fizeram isso precisamente porque Bin Laden valia nada, porque se valesse, ou não diriam, ou cobrariam muitíssimo mais caro.

 

 

 

 

Passivos, guiados e limitados.

O que existe mais claramente é o que se precisa negar mais veementemente. É aquilo que deve ser contraditado a todo tempo, insistentemente.

O que há mais evidentemente é o pensamento limitado, balizado, turvado, condicionado. As margens de variações são tão estreitas que as pequenas diferenças, vistas de mais distante, anulam-se. As pequenas variações dão-se em um campo delimitado previamente e não consistem em qualquer diferença qualitativa.

Os grupos humanos são guiados e vivem segundo roteiros seguidos involuntariamente. A liberdade de ação e de pensamento é, portanto, um mito, que vive do seu contrário, a não-liberdade absoluta. Por isso mesmo é que se ouve e se repete sempre que se tem liberdade, para que se viva sem ela e sem perceber sua ausência.

A supressão da liberdade de pensamento, aqui tomada como potencialidade humana, é obra das mais grandiosas já realizadas. Sim, porque é quase inabalável e pode seguir triunfante mesmo na presença de todos os elementos que supostamente a ameaçariam.

No ambiente do pensamento único, dos hábitos, das emergências, do trabalho e do consumo, não há problemas na existência e na disponibilidade das informações, porque elas não serão usadas nem relacionadas. Elas serão apenas um adorno, preferido por uns  a outros tipos de adornos.

Ela, a informação, será um bem consumível como outro qualquer e, portanto, perderá seu carácter real e manterá apenas a aparência. O fulano que adquire alguma informação ou ares de pensador é uma variação tipológica social essencialmente igual ao outro fulano que, aos ares pensadores prefere ostentar um Porsche.

Todos os fulanos cabem em uma tipologia social previsível e pré-ordenada em todos os aspectos da vida exterior. Haverá guiões para todos os grupos, inclusive com as exceções aparentes que permitem àlguns sentirem-se diferentes, muito embora a própria diferença seja parte do que os iguala a todos.

Falo em aspectos da vida exterior porque os da vida interior terão desaparecido. A vida interior volatiliza-se em superficialidade de comunhão de despudores privados. Na medida em que mais e mais detalhes pequeninos de intimidade são compartilhados avidamente, menos particularidades e menos percepção há.

A vida interior, como percepção das externalidades e das interioridades ao mesmo e a todo tempo, dilui-se a tal ponto que se anula na comunhão de trivialidades sem consciência de si próprias. É um estado de dormência em que se vive, em um presente contínuo e sem portas de saída ou de entrada.

Não é que não se possa parar para pensar – até porque pensar não implicar para-se – como as maiorias gostam de repetir. É que não se pensa e isso não influi aparentemente no fluxo das vidas, porque não se pensa mas imagina-se que se o faz constantemente, e mais, livremente.

Algumas pessoas mais intelectualmente honestas, embora presas nas mesmas cadeias, têm a pequena ousadia de objetar com a inutilidade do pensamento. Mais honesto, mas não menos limitador, esse é o cinismo da ignorância utilitarista e segura de si. Talvez um cinismo temperado com preguiça.

O utilitarismo, compreendido somente nos seus aspectos mais vulgares, contribui enormemente com a manutenção do pensamento balizado e guiado. Torna-se um instrumento de uniformização, até de forma contraditória porque as utilidades supostamente implicariam em buscas, não em aceitações.

Ou seja, a noção de utilitarismo foi deformada pela superficialidade em noção de impossibilidade do diverso. A utilidade tem que ser considerada em mão única e, ademais, irrevogável. Esse formato é uma verdadeira conquista da incoerência, porque a crença generalizada na contingência mantém-se a partir de múltiplos indivíduos que afirmam a liberdade!

O teórico vai-me cansando o juízo e lembro-me de algo que soou muito interessante, recentemente. Trata-se da repetição geral de que em breve só haverá smartphones. Claro que falo de uma trivialidade e que abstraio da tolice imensa que o nome telefone inteligente ou sagaz carrega.

Mas, é um caso interessantíssimo a crença em algo certo e impassível de ocorrer diversamente: só haverá smartphones. Tudo bem, embora haja poucos smartusers de smartphones, mas eles serão todos, não haverá outros. Se você, no futuro próximo, quiser um telefone móvel para falar apenas, você terá um smartphone.

Não servirá de nada entrever que pode ser pouco smart ter um smartphone somente para falar, o que se fazia antes em um dumbphone. Você não estará diante de uma opção, você só terá à venda smartphones.

Mas, você provavelmente vai achar que sua liberdade amplia-se com a disponibilidade desses telefones muito sábios. Na verdade, terá que achar isso, porque terá vergonha de perceber que foi levado a comprar algo que lhe traz o que não quer ou precisa. E, para não se julgar tolo, passará a usar as possibilidades inteligentíssimas do telefone e se integrará plenamente ao modelo, agora sem vergonha, sem achar-se tolo e achando-se livre!

Usarás o que tens de usar, comprarás o que tens de comprar. Claro, terás uma alternativa, que será não ter telefone algum. E se optares por isso, serás catalogado em uma categoria própria, já prevista para tanto. Terás de aceitar-te como um ser exótico e assim oferecer-te à percepção socialmente compartimentada, a única possível.

A liberdade é de ser conforme a modelos pré-estabelecidos, as opções já estão dadas, mas o terceiro nunca é dado. Nem pode ser cogitado, até porque o utilitarismo de aba de livro que preside aos pensamentos leva a julgar inúteis quaisquer cogitações que fujam aos guiões padrões.

 

 

 

Wojtyla foi beatificado, mas esqueceram de Marcinkus!

 

Instituto per le Opere di Religione é o nome oficial do Banco do Vaticano, respeitável casa bancária que foi presidida pelo Bispo Paul Marcinkus, de 1971 a 1989. Um banqueiro longevo, como é raro acontecer. Uma longevidade que implicou na brevidade de outras instituições, como o Banco Ambrosiano, e na brevidade do presidente deste, Calvi.

A lavagem e o branqueamento de dinheiros das máfias – italianas e não italianas – foram tão intensas que Monsenhor Marcinkus teve que retirar-se de cena e voltar para Chicago. Claro que foi uma saída honrosa, daquelas que se devem aos grandes colaboradores. Não abandonaram Marcinkus ao azar, deram-lhe uma saída possível.

Ele aceitou-a, como aceitou quase todos os papéis, inclusive os mais grandiosos, como arquitetar e financiar a eleição de Wojtyla para Bispo de Roma. Alguns vêem também o desempenho de outros papéis difíceis – embora menos nobres – como a passagem de Luciani para outros tempos…

O caso é que Monsenhor Marcinkus operou grandes transformações, intermediou sinais, para utilizar-se a terminologia de Paulo. Por sua competência bancária, vários grupos formalmente inexistentes funcionaram como se fossem empresas detentoras de inocentes contas no Citibank, e nem empresas eram…

Sindicatos sem dinheiro funcionavam como prósperas iniciativas, por obra de Monsenhor Marcinkus… A Democracia Cristã era um aglomerado de bem-intencionados sem recursos e, nada obstante, havia dinheiro para mansões na Tunísia.

Hoje, beatifica-se Wojtyla porque uma mulher curou-se de Parkinson ou Alzheimer – não fui verificar – e se esquece de Marcinkus, companheiro de milagres e grande promotor do milagreiro beatificado. Ele, que operou milagres imensos, entre os quais não falar nunca, hoje é esquecido.

Para que justiça fosse feita, considerando-se que Wojtyla é beato oficial, Marcinkus devia ser santo!

 

 

Barcelona baila no Benabeu!

 

A valsa catalã de um futebol rápido, rodado, insinuante, belo e irresistível, enfim, triunfa no Bernabeu. Não foi uma vitória qualquer.

A partida opõe um símbolo castelhano, um símbolo até falangista, à única manifestação de nacionalismo catalão permitida por anos.  A única manifestação permitida por Franco era o Futebol Clube Barcelona, que catalisou, assim, toda a noção de orgulho nacional catalão.

Quando ele joga, é como se entrasse no gramado a seleção da Catalunha que não se quer Espanha. Suas responsabilidades são enormes, portanto. Nada obstante a imensa responsabilidade, ele joga ofensivamente, não se acovarda a um futebol mesquinho, de lógica utilitarista e defensiva.

José Mourinho, um homem profundamente arrogante e sabedor de como tornar essa característica em publicidade pessoal, pôs-se a provocar o Barcelona e seu treinador, Josep Guardiola. Não se devem provocar símbolos nacionais, principalmente quando eles são eficazes e seus adeptos são fiéis.

Mourinho reviveu um postura dominadora anacrônica, serviu-se de um assunto que não se deveria prestar ao que ele reputa provocações estimulantes. Foi irresponsável e até ignorante.

Guardiola, elegantemente, disse que José já entrava nas partidas vencedor! E lembrou que José já trabalhou no Barcelona, ou seja, lembrou-lhe, algo sutilmente, que deveria saber de que se trata ou, pelo menos, poderia saber.

Se sabe, Mourinho preferiu ignorar e arriscar. Quem sabe não retorna para a Inglaterra, que ele afirma ser seu habitat natural! Realmente, o que há de melhor no futebol inglês são os franceses africanos e o verde impecável dos relvados.

Racismo no Brasil.

A Universidade Federal do Rio de Janeiro produziu um estudo nominado Segundo Relatório Anual de Desigualdades Raciais. Alguns números são reveladores do racismo brasileiro. Os pretos e pardos têm menos acesso à saúde e à educação, por largas margens. Por exemplo, os afrodescendentes com mais de 15 anos apresentam tempo médio de estudos de 6,5 anos e os brancos de 8,3 anos.

As diferenças já foram maiores e vem reduzindo-se muito lentamente. Mas, essas diferenças revelam o que se quer negar veementemente, a custo de agressões frontais à lógica e às evidencias. O combate à evidência intensificou-se com a adoção de políticas afirmativas de inclusão.

A base do ataque às políticas afirmativas, de reserva de cotas, por exemplo, é a negativa das diferenças e dos conflitos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se tenta combater as cotas raciais, tenta-se esconder que a situação de sempre configura uma verdadeira política de cotas a favor de uma minoria que se julga devedora apenas de si, individualmente.

O modelo social brasileiro é profundamente perverso e sofisticado. Ele conseguiu um êxito raro entre os grupos humanos: manter níveis de desigualdades sociais e raciais muito profundos e evitar a explosão que seria natural esperar-se. E fê-lo com níveis de violência sistemática mais reduzidos que em outras experiências do gênero, como a sul-africana, por exemplo.

Claro que há níveis de violência não sistemática avassaladores, ou seja, de criminalidade dita comum. Ela, de certa forma, desempenha o papel repressor que a violência sistemática e organizada tem nos modelos excludentes tradicionais. Ele é somente aparentemente aleatória, porque os números revelam que as maiores vítimas são precisamente dos grupos excluídos e que se devem controlar.

A contenção social e a punição violenta por meio da criminalidade comum ainda tem uma vantagem de cunho psico-social que é afastar a percepção individualizada de culpa, seja de um e outro indivíduo, seja do governo, seja de uma certa classe social. Ela parece mesmo aleatória, embora não seja.

As partes mais engenhosas do formato brasileiro de exclusão são os múltiplos disfarces sob que ele esconde-se. Muitos escritores de grande talento – intelectuais, diriam alguns – contribuíram esforçadamente para a consolidação da idéia de mitigação das diferenças. E, aparente contradição, fizeram-no celebrando uma miscigenação que não foi uma integração. O caso mais notável é o de Gilberto Freyre.

A celebração da miscigenação racial a partir de elementos curiosos ou pitorescos, encadeados com fibras de ciência social, firmou a noção da democracia racial, até mesmo da esculhambação racial, como se no Brasil essas fronteiras se tivessem abolido em um conúbio de lubricidade e promiscuidade racial profunda. O que pode ser muito verdadeiro em termos puramente sexuais, não tem qualquer sentido social, contudo.

Muitos se compraziam em comparar essa suposta democracia racial brasileira com a segmentação evidente ocorrida nos Estados Unidos da América. Ou seja, ativeram-se ao aspecto puramente sexual e cromático da questão, deixando de lado as resultantes estruturais na sociedade.

A miscigenação, no Brasil, deu ensejo a uma estratificação cromática, a uma escala de branquitude a ser galgada constantemente, ao longo de gerações. Uma escala que correspondia, quase que à exata proporção, àquela do ascenso social e econômico. Quer isso dizer que a miscigenação considera-se um caminho programático de despreteamento da população, algo muito diferente de democracia racial.

A configuração da estratificação cromática sempre foi eficazmente disfarçada pela crença na ausência de barreiras raciais, quer dizer, na carnavalização das relações entre indivíduos e grupos de origens sociais e raciais diferentes. O modelo impôs-se fazendo acreditar que existe, sim, hierarquia social, mas que não existe racial.

Todavia, os valores cultivados, nomeadamente os estéticos, também permitem ver que a hierarquização não é apenas social e econômica, mas racial. Claro que descortinam a questão mais sutilmente que os números reveladores da nítida exclusão por raça. Interessam exatamente porque são uma via de percepção mais sutil.

É notável que os padrões desejados de estética corporal, em sua maioria, claro, apontam para o branqueamento. Assim, em exemplo bem redutor, buscam-se cabelos claros e lisos e não o inverso. Buscam-se traços fisionômicos caucasianos e não é à toa que este país é o campeão mundial na área da cirurgia plástica!

É inegável que há forte miscigenação racial no Brasil e que as classes intermédias são compostas de mestiços. Porém, é também inegável que as classes dominantes, nos seus estratos mais altos – digamos os 02% – são quase integralmente compostas de brancos, que se apropriam da maior parte das rendas nacionais.

Os números e conclusões apresentados pelo estudo da UFRJ indicam que os pretos e pardos têm qualidade de vida inferior aos brancos, sob qualquer aspecto objetivo considerado. Ora, isso não tem outra explicação senão um profundo, dissimulado e continuado racismo. Sim, porque a única explicação restante não convém aos racistas atualmente, excepto por um e outro grupo francamente defensor de superioridades raciais.

Os líderes da dominação, de qualquer delas, sabem que precisam esconder, primeiro a própria dominação, segundo suas causas, terceiro sua inércia. Precisam exercer o domínio por meio do que os norte-americanos chamam soft power, ou seja, mediante o engano, a confusão e o disfarce.

Trata-se de asseverar que existe a igualdade e de pô-la nas leis, formalmente. Trata-se de assegurar que as oportunidades são iguais, ainda que o sejam somente nos papéis escritos. Trata-se, enfim, de esconder que há uma tremenda inércia social e que isso é decisivo para que alguém esteja onde está.

Se alguém consegue perceber, ainda que discretamente, o papel da inércia social, logo o modelo lançara nuvens sobre esse pedacinho de compreensão e falará como se tudo se limitasse ao recebimento ou não de heranças. Pois o domínio implica também em fazer ele mesmo a pauta de discussões e delimitar como os assuntos serão abordados. Assim, ele conduz às conclusões que lhes convém, ou conduz à falta de conclusões, à confusão e a mais nuvens.

 

 

É o petróleo, estúpido!

Em 1979, os norte-americanos começaram a temer que a virada autonômica sucedida no Irã se espalhasse por todo o médio oriente e norte da África. Temor um pouco explicado pela insistente ignorância de que a Pérsia não tem nada a ver com a arábia, excepto pelo islamismo. Pode ser difícil de acreditar, mas a diplomacia norte-americana costuma ser ignorante, talvez por excesso de confiança.

O fato é que temiam um aumento grande dos preços do óleo cru, além da dificuldade de explorá-lo a partir de suas próprias companhias. Tinham na memória as nacionalização de Mosaddegh, algo que os tinha obrigado a promover um golpe e patrocinar o Xá Phalavi, um usurpador dócil às Shell e British Petroleum da vida.

Quando os problemas circunscreviam-se à Península Arábica, ao Magreb e à Cirenaica, era mais fácil de resolver, bastanto, muitas vezes, chamar a aviação israelense. Mas, com o Irã, era diferente.

Partiram para uma tentativa óbvia: armar o Iraque, por a soldo o chefe sunita Hussein, e manda-lo incomodar o Irã com uma guerra totalmente sem sentido para os guerreantes. A guerra custou caríssimo, mas não resultou no desejado, ou seja, não conseguiu levar o Irã à falência e à sucessiva ocupação ocidental.

O chefe sunita Hussein, certo de ter tentado cumprir sua missão e de contar com alguma solidariedade dos seus chefes, parou um pouco de ser instrumento e foi cuidar de governar seu feudo babilônico. Deve ter percebido que, para agradar minimamente os súditos, precisava desagradar também minimamente as companhias petroleiras estrangeiras.

Os EUA e seus acompanhantes europeus não podiam descuidar de um assunto tão importante quanto o preço do óleo combustível. Organizaram um grande bombardeio e, alguns anos depois, uma invasão militar. Ocuparam o Iraque, militarmente, destruíram sua infra-estrutura, dissolveram a precária arrumação de forças que lá havia e escolheram outros bandidos para comporem um governo de farsa.

Criou-se demanda para as indústrias bélica, de construções, de fornecimento de mercenários e, principalmente, garantiu-se abastecimento de óleo.

Hoje ou, melhor dizendo, antes do bombardeio da Líbia, vinham de lá 15% do petróleo consumido na França. É uma parcela muito significativa, o que explica a avidez gaulesa em agredir a Tripolitânia e a Cirenaica. Esse fornecimento não estava ameaçado, porque o regime conduzido por Gaddafi havia-se articulado aos interesses das petroleiras.

Acontece que outros países norte-africanos e árabes viviam revoltas populares contra governos absolutamente vendidos e dóceis aos interesses ocidentais. E, por outro lado, absolutamente contrários às maiorias de suas populações. Era a perfeição de um neocolonialismo sem tropas de ocupação. Bastavam algumas famílias de saqueadores locais e as companhias européias e norte-americanas, com livre trânsito.

A Líbia, embora Gaddafi tenha-se transmutado de cão louco em sábio amigo, revelou-se o objetivo ideal de uma ação exemplar. Precisamente onde os indicadores sociais eram os melhores e a população a mais rica dos Estados Norte-Africanos. Precisamente onde jorra o petróleo mais leve e mais fácil de ser refinado.

Aqueles a quem chamam rebeldes são uma gente que não gosta de Gaddafi, mas tampouco quer, em sua maioria, ser escrava de franceses, ingleses e norte-americanos, como simples instrumentos de um saque a recursos naturais. Apenas subornando-os e dando-lhes armas, não será suficiente para obter-se o país.

Terão que invadí-lo, ou seja, fazer da forma mais cara o que já funcionava da mais barata. O momento crucial deu-se quando Gaddafi, pressionado, disse que venderia seu óleo apenas a chineses e russos. Daí surgiu toda a bravura francesa na defesa dos interesses humanitários de meia dúzia.

Esse mapa acima, da divisão do saque ao Iraque, já está pronto para a Líbia. Nele, certamente a Total tem um quinhão maior, na proporção de quantas bombas e quantos Rafales as despejaram na Cirenaica. Assim são as ações humanitárias aprovadas pela ONU. Quer isso dizer que o petróleo humanizou-se?

 

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