Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Autor: Andrei Barros Correia (Page 55 of 126)

O óbvio, garantido por um especialista.

O crime contra o patrimônio em evidência, no Brasil, é a explosão de caixas de bancos. Por todos os lados, explodem-se caixas de levantar dinheiro na rua, com dinamite. Quando isso não machuca alguém que nada tenha a ver com a coisa, acho até engraçado e engenhoso meio de roubar os bancos, afinal eles merecem.

Evidentemente, isso virou notícia de jornal televisivo. Não vejo muito televisão, e jornais apenas da Bandeirantes e da Record. Não que sejam bons, mas são  menos ruins que os da Bobo, esses insuportáveis em pedantismo, mentira e dramaticidade de problema inexistente.

Eis que o jornal da Bandeirantes falava nas tais explosões, havidas em São Paulo. Houve delas no país inteiro, mas precisou acontecer no centro de São Paulo para ser relevante. E, lá pelas tantas, a apresentadora diz: segundo especialistas, essa é a forma escolhida pelos ladrões porque conseguem dinheiro com menos riscos.

Segundo especialistas? Quais especialistas são tão especiais para dizer-se uma obviedade dessas? Todos os crimes que visam a dinheiro e são praticados por ladrões um pouco acima da barbárie total visam a dinheiro e aos menores riscos. É claro que o meio foi escolhido por ser o mais eficaz, ou seja, o de maior retorno com menos riscos.

Precisava de um especialista para diagnosticar essa evidência? Sim, porque há especialistas para tudo, incluindo-se o óbvio mais óbvio. Aquilo que qualquer pessoa sabe, ela deixa de saber, porque está acertado que é assunto para especialistas, como tudo. Não se ousa dizer que uma coisa é como sempre se supôs que fosse, porque será âmbito de alguma especialidade e, portanto, ninguém deve aventurar-se nela como se fosse coisa comum.

Claro que o óbvio continua a ser a maior parte das vidas. Em conversas particulares, de cafés e bares e locais de trabalho, o óbvio está impregnado como o óleo nas engrenagens de uma caixa de mudanças. Mas, as mesmas pessoas que obviam suas vidas nas conversas comuns, aceitam que as obviedades sejam subitamente elevadas a coisas de especialistas, nos jornais televisivos e solenes.

Os pontos de vista mudam. Alteram-se na passagem do à vontade para o à sério, embora ambos girem em volta da mesma coisa, uma obviedade! Ela consegue ser duas, sendo uma e só uma, conforme seja trivial ou seja adornada de circunstância por um agente dador de seriedade, o especialista.

 

Tocata e fuga em Ré menor, de João Sebastião Bach, para os dois lados do cérebro.

Sidarta, estimado, pensei em ti quando vi este magnífico vídeo. A melodia da Tocata e Fuga em Dó Maior, de Bach, é triste e insinua uma transcendência gloriosa, talvez temida, talvez com percalços, certamente tributária do platonismo para as massas, na sua melhor interpretação reformada. Em música, é o que Kant foi em filosofia racional cheia de deidades categóricas, disfarçadas em aparente racionalismo. Kant, afinal, é o São Tomás da Reforma.

Mas, não é isso que interessa, por aqui.

O vídeo e a música fazem pensar em limites e possibilidades das linguagens. Por um lado, o que se vê é matemática pura, porque tempos, tons e semitons, na escala cromática, são questões de divisões. Interessante é um mesmo significado ser apresentado por três significantes, ao mesmo tempo, o que nos permite perceber as diferentes abordagens que podem resultar dos hemisférios esquerdo e direito.

Vê-se, sob um aspecto, e escuta-se, também sob um aspecto, matemática. E com uma clareza imensa.

Ao mesmo tempo, o que se vê, os pontos e barras com tempos e intensidades e, mais, cores, é percebido espacialmente, em uma competência especial do hemisfério direito.E com a melodia, dá-se o mesmo, porque ela percebe-se em três dimensões, certamente em função das competências da metade direita dos lobos frontais.

Mas, esse lobos comunicam-se, por meio dos corpos calosos, e tudo percebe-se como um e vários! Já imaginaste como isso seria visto por alguém submetido a calosectomia? É pena que não se possa mais perguntar a Roger Sperry!

Medicina: e a vítima ainda precisa compadecer-se do algoz!

Esse vermelho pode ser lavado…

Dói onde?

 

Convém dizê-lo muito claramente: os serviços médicos, no Brasil, são muito ruins para os que não os podem pagar aos bons profissionais, que não mantém qualquer relação com o Estado.

Os restantes, públicos, semi-públicos ou prestados por meio de seguros e planos de saúde são ruins e caros. A parte evidente do problema é falta de dinheiro e de rigor, embora nossa forma distorcida de ver insista em bobagens laterais como defeitos de gestão e outras coisas mais subjetivas.

O custo elevado explica-se, basicamente, por duas coisas: 1 – equipamentos e procedimentos caros, muitas vezes desnecessários, que precisam ser remunerados; e 2 – escassez de médicos, ou seja, pouca oferta de profissionais em relação à demanda pelos serviços.

O preço de um serviço não escapa da lei básica de procura e oferta. Há poucos médicos e profundamente mal distribuídos no território do país, ao tempo em que há muitos doentes. Assim, podem cobrar caro pelo trabalho; é compreensível que assim seja.

Condicionar a prestação de um serviço essencial a remunerações altas ou muito altas é uma chantagem que se pode fazer e não há no termo chantagem um conteúdo moral ou axiológico, é apenas o nome da postura. Já se faz e tem grande êxito para um dos lados, o dos prestadores do serviço.

Os usuários dos serviços público e semi-público nunca estiveram bem, sempre foram mal atendidos e sempre viram claramente que a pobreza não pune duplamente, senão infinitamente. O que têm a perder é pouco, porque só se perde o que já se teve.

Acontece que ao absurdo costumam-se ajuntar mais absurdidades, porque nada está tão ruim que não possa piorar. À situação objetiva de mau atendimento a preços elevados, acrescenta-se um discurso piedoso dos médicos, que pedem à doente sociedade não apenas que lhes pague bem, mas que compre seu discurso, que se apiede dessa classe de filantropos, de abnegados.

A lógica da justificação moral faz dessas obras, ela não se contenta com subjugar objetivamente, ela pretende que a servidão seja voluntária, de corpo e alma, sincera, bovinamente mansa. O sujeito que vê um filho morrer em um hospital público tem que antes chorar algumas lágrimas para o coitado do médico que, infeliz, tem que ter três empregos para poder custear as prestações de um Range Rover de R$ 400.000,00.

A vítima tem que se apiedar do algoz, antes de pensar em si mesma. Ou seja, ela tem que imbecilizar-se a ponto de abstrair-se e mergulhar na servidão ampla, aquela que entrega tudo, o corpo, a força de trabalho, a capacidade crítica, a percepção da realidade, a percepção de si. Não basta sucumbir, tem que sucumbir dizendo que assim quis.

Essa lógica da justificação percebe-se, por exemplo, na imprensa, que não pode deixar de tratar do assunto da má prestação de serviços de saúde, pública e semi-pública. Ao invés de tratar do assunto com objetividade e considerando o interesse público e dos usuários, trilha o caminho das névoas.

O cerne de quase todas as matérias jornalísticas não está no serviço, está nos interesses dos prestadores dele, seja dos administradores públicos, seja dos médicos. Faz-se uma confusão dramática, escandalosa, meio histérica, mas o viés não é de abordar-se a coisa objetivamente.

Leio um jornal que dedicou três páginas ao assunto, muitas delas repletas de lamentos de médicos, que têm que ter muitos empregos para viverem. Se fosse jornalismo sério, diria para viverem de que maneira os médicos trabalham em mais de um serviço e de que maneira vive a população que recorre a tais serviços. Jornalismo é comparação, também.

Se fosse jornalismo sério, dir-se-ia que ter muitos empregos, em larga margem dos casos, é simplesmente ilegal, porque os horários formais são incompatíveis. Só são materialmente compatíveis porque os médicos não cumprem os horários formalmente contratados.

Se fosse jornalismo sério diria que muitos médicos professores de instituições federais de ensino aderiram ao regime da dedicação exclusiva, voluntariamente, porque este regime é facultativo e paga mais. E que o optante pela docência exclusiva não pode desenvolver qualquer outra atividade, embora isso seja solenemente ignorado e conte com a ampla complacência.

Mas, praticamente não há jornalismo sério, porque ele atende aos interesses dominantes, é claro.

 

 

O Paquistão tem 100 ogivas nucleares!

 

A forma de atuar do governo dos EUA é conhecida e previsível, tomando-se em conta a quais interesses serve e seu histórico recente. Gerar ameaças e mantê-las atualizadas, ou seja, constantes, é o objetivo imediato.

O objetivo mediato é fazer o restante do mundo pagar-lhes para combaterem a ameaça, qualquer que seja. Desde a queda da URSS, esse meio de atuar aprofundou-se e pulverizou-se. A substituição necessitou ser constante e programada.

Bem programada, deve-se dizer. Realmente, atuar fora da bipolaridade requer muito mais responsabilidade e habilidade que antes, quando a brincadeira era mais evidentemente combinada com os russos. Eles não forjaram um histórico de atuação estratégica cuidadosa e inteligente, simplesmente transpuseram os nomes nos manuais.

O jogo de enfrentar al quaedas e coisas do gênero, inclusive criando líderes de coisa nenhuma, é pouco perigoso. Mas, ele pressupõe um controle que somente se tem quando todos são oriundos de uma mesma matriz. A verdadeira pulverização de uma ameaça não está prevista.

O Paquistão não se resume a meia dúzia de generais riquíssimos e profundamente laicos. E as agressões norte-americanas no mundo inteiro não são poucas, nem geradoras de pequenos ressentimentos que se possam controlar com políticos subornados.

Portanto, convinha que passassem a jogar com mais habilidade, porque esses generais não detém 100 ogivas nucleares por direito divino e imutável…

 

Picanha com bacon e vinho tinto, na caçarola.

Estou com uma gripe relativamente forte, muito constipado, mas ainda não o suficiente para deixar de pensar em comida. Hoje, queria comer carne de boi, fartamente.

Eis o que fizemos: uma picanha na caçarola, inventada na hora.

Toma-se uma peça de picanha, com a capa de gordura média, e corta-se em fatias de dois centímetros, mais ou menos, perpendicularmente.

Espremem-se oito dentes de alho e corta-se em rodelinhas um maço de cebolinha. Refogam-se o alho e a cebolinha em azeite, por um ou dois minutos e acrescenta-se bacon cortado em pedacinhos miudos. Tampa-se a panela e baixa-se o fogo. Passados outros dois ou três minutos, acrescenta-se um bocado de molho inglês – worcestershire – que baixa a fervura. Mantém-se a panela fechada e o fogo baixo.

Em seguida, aumenta-se o fogo e põe-se os cortes de picanha, arrumados de forma a ocupar toda a área da panela, que se tampa. Cinco minutos depois, viram-se os pedaços de carne mantém-se tampada a panela, agora com fogo baixo.

Mais cinco minutos e despeja-se um copo cheio até às bordas de vinho tinto seco. Daí em diante, são mais vinte minutos.

O resultado, maravilhoso, de uma carne macia e um molho consistente e escuro, sabendo ao toucinho fumado e aos alhos e ao vinho, come-se com arroz branco. Depois… um cochilo.

 

Humano: infra-humano, escravo.

Devo dizer infra-humano e intranscendente, para evitar dubiedades e previsíveis abordagens oriundas de platonismo das massas.  Não se trata de afirmar o humano como bom ou mau, não se trata de qualquer coisa a partir desse moralismo derivado da lei de um legislador ausente.

Trata-se do infra-humano por aquém da potência, por aquém da nobreza, por aquém da auto-percepção, por humano, enfim, pois que o mais carrega o menos em si. Só assim percebendo-se a questão, escapa-se das armadilhas da bipolaridade que resulta da moral de escravos.

A moral da justificação, como se a vida se justificasse, ou por convenções sociais, ou por recurso ao externo, é precisamente a mantenedora do infra-humano. Do que é apenas quantitattivamente diferente do humano, porque qualitativamente são idênticos, um está no outro.

Também não queria fazer o mais tênue recurso à noção de utilidade, para não gerar confusões, a lembrar de utilitarismo como corrente filosófica. Todavia, é necessário dizer-se que o infra-humano vê-se também no inútil, naquilo que é inútil para fazer atuar a potência do Humano.

Escrevo essas linhas mal conectadas a propósito de algo que me repugna: pessoas adultas a maltratarem animais. Falo em adultos, porque as crianças são outras pessoas, maltratam bichos, outras crianças, objetos, tudo, em maior ou menor proporção, a variar de uma para outra. Não falo de gente a maltratar gente, porque isso é outro assunto, que também tem a ver com o infra-humano, mas é outro assunto.

Foi bom ter mencionado a utilidade, para não precisar alongar-me sobre os bichos que matamos para os comermos. Sim, porque eles os bichos fazem a mesma coisa e ficamos, portanto, bem explicadinhos, todos nós, os que pensamos pensar e os que pensam sem se pensarem.

Nunca apreciei os jogos de caça, fossem de raposas, de aves ou de peixes. É um jogo de morte que as pessoas deviam jogar entre si, ao invés de fazerem simulacros com as caças sempre perdedoras. Um combate de morte entre gladiadores é muito mais nobre que uma caça à raposa, que é decadentismo puro.

Mas, os jogos de caça, em geral, têm ao menos uma vantagem: a vítima é abatida instantaneamente. Os maus tratos que atingem gatos, cachorros, jumentos, cavalos, bois, pássaros, são torturas precendentes a uma morte agoniada.

Uma mulher bate com um pau em um cachorro ou em um gatinho até que a cabeça dele estoure, perca a consciência, agonize com movimentos involuntários de patas já não comandadas por um cérebro morto. São imagens que não saem da vista e ficam a repetir-se em níveis diferentes e mais depurados de escândalo e asco.

Asco pelo infra-humano, que é plenamente capaz do mesmo com qualquer ser ou coisa superior a si mesmo, como contra o humano ou contra os bichos, ambos superiores ao infra-humano. O infra-humano reconhece no animal, sobretudo nos mamíferos, a nobreza que ele não tem, a nobreza de ser só o que é e conhecer sua precisa dimensão, a extensão de suas vontades. A inveja, que o infra-humano tem em doses imensas, fa-lo agir, portanto.

É assustador perceber que as pessoas fazem exatamente o que aceitarão que se faça a elas. O contrário dessa afirmação é o lugar-comum repetido, mas não é verdade. Elas estão no jogo, no mesmo. Elas, no fundo, aceitam muito bem as regras do jogo, por elas mesmas feitas e consagradas na prática.

O escravo bate e mata com avidez e gozo porque baterão nele e o matarão os outros escravos e os escravos com rendimentos financeiros de senhores. Ele faz o que julga ser uma questão de oportunidade, ou seja, põe para fora toda a sordidez e violência porque seu mundo é sordidez e violência. Os bons exemplos não valem coisa alguma – só frutificam em terra apta – os maus têm enorme força, são o normal…

Frederico-Guilherme Nietzsche caiu doente irremediavelmente – louco, diz-se – precisamente no dia em que agarrou-se a um cavalo que o cocheiro açoitava, em Turim, em janeiro de 1889. É óbvio que a loucura – essa que não há palavra mais precisa a denominar – já se instalava há tempos. Mas, é muito significativo perceber qual foi o evento capital a desencadear a instalação definitiva da compreensão profunda.

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