Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A Peste, de Albert Camus.

Tenho empreendido releituras. Muitas vezes são melhores que as primeiras e dão ocasião a outras percepções. No caso d´A Peste, a releitura foi praticamente o primeiro contato com o livro. Há quinze anos, meti-me com Camus, a partir do Estrangeiro, e deleitei-me com tudo quanto a Editora Record publicou dele no Brasil. Nessa empreitada meio acelerada, a Peste não me chamou grande atenção.

Agora, chamou-me bastante a atenção. É facílimo e seguro sugerir sua leitura, como, de resto, a de qualquer livro de Albert Camus. Mas, é difícil falar do livro. Os comentários habituais que vêem nas orelhas dos livros devem ser desculpados porque o comentarista fê-los por obrigação. Alinhou provavelmente os lugares-comuns fartamente repetidos do existencialismo, da alegoria do fascismo e etc.

O melhor comentário sobre Camus parece-me ser a crônica dos ataques que recebeu de Sartre. Ele foi atacado exatamente pelo que tinha de grandioso, lúcido, valente, talentoso e livre. Pelo que não tinha de prosélito religioso de um culto da ação pelos que não agiam. Por não ser um racionalista da razão vazia e triunfante, que nega o absurdo. Transcrevo um trecho, que fala melhor que comentários:

Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as duas hesitações. E por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: “Não vai durar muito, seria idiota.” E sem dúvida uma guerra é uma tolice, o que não a impede de durar. A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis.

9 Comments

  1. Germano

    Andrei,
    Leia Louis-Ferdinand Céline, contemporâneo (maldito) de Camus e Sartre. Leia Norte e Morte a Crédito, depois escreva aqui me agradecendo a dica. Aguardo.

  2. Germano

    (sendo muito chato): perto daquelas obras, A Peste de Camus fica parecendo o Quinze de Rachel de Queiroz (peço desculpas antecipadas a todos pela brincadeira…)

  3. Andrei Barros Correia

    Germano,

    Sugestão quanto a Céline aceita. Vou em busca dos livros que mencionaste.

    Lembro-me, de conversas, pois não o li, que teve problemas com Sartre também, como Camus. E reputo ser alvo da ira egoceêntrica de Sartre uma boa apresentação.

  4. Germano

    O problema com Celine é mais sério. Acusação? O mais visceral dos colaboracionistas. Recebeu a punição devida – ou talvez exagerada. Conseguiu a proeza inigualável – de que ele se gabava – de atrair para si a ojeriza universal: da esquerda, da direita e do centro. Enfim, foi oficialmente declarado “desgraça nacional”. Escreveu “obras” absolutamente execráveis, indignas da espécie humana. Entretanto, é mais conhecido pelo que de bom (excelente!) escreveu. Voyage au bout de la nuit é considerado um dos romances mais importantes do Século XX. Obra que Beauvoir dizia ter decorado trechos inteiros. Há quem diga que a fenomenal “The end”, de Jim Morrison foi inspirada pela obra. Quanto a Sartre, honremos seu legado, afinal o Século foi seu. Como era preferível errar com Sartre a acertar com Aron! Mais que sacana, o filósofo era! veja o interessante filme francês, Sartre: Anos de Paixão, de 2006. Imagino que tratamento a iletrada e estúpida ditadura brasileira – não me conformo de ter sido obrigado a assistir silvio santos quando criança! – teria dado a Sartre. Teria arrancando, literalmente seus olhos e o esquartejado? E com Beauvoir, o mesmo que fizeram com Sônia Maria, esposa de Stuart Angel?? Pensamentos lúgubres e improdutivos… Comece tão cedo quanto possível a leitura de Viagem ao Fim da Noite, para depois ler Norte. Detalhe pitoresco: comprei minha edição de Norte em uma filial da Livro Sete, há muito extinta.

  5. Andrei Barros Correia

    Germano,

    Viagem ao fim da noite, há em edição de bolso, o que é auspicioso, porque elas são relativamente disponíveis. O Norte e Morrer a crédito, encontrei-os em inglês.

    Além das dificuldades de ler em outra língua, em inglês perde-se muito. Para fazer esforços, seria preferível lê-los em francês mesmo. Mas, de uns tempos para cá, resignei-me à Science et Vie!

    Sartre, vejo-o como um irresponsável, na amplitude do termo. Como quem fala do que não conhece. Impudico! Nunca pegou em uma arma e assacou contra quem o fez, mas não lhe pagou tributo de submissão acrítica.

    De Gaulle deu-lhe a exata dimensão. Ou talvez tenha exagerado, com alguma ironia. Diante do palavrorio insistente, teria dito: “mas, não se pode mandar prender Voltaire.”

    Sartre era um profundamente religioso.

    Quanto a Céline e colaboracionismo, o sujeito que feriu-se em combate, viu estourar bomba ao lado, teve posta no peito condencoração por bravura, podia muito bem, depois, dizer ora fodam-se (desculpe o termo).

  6. Pedro

    Andrei,

    Se você não se importar em comprar livros usados, dê uma olhada em http://www.estantevirtual.com.br/buscaporautor/Louis+Ferdinand+Celine. Tem as obras citadas e outras do mesmo autor em português. Também me interessei pela sugestão e em breve lerei o autor, mas há livros suficientes para nós dois.

  7. Andrei Barros Correia

    Pedro,

    Não me incomodo de comprar livros usados. Mas, aproveito para te perguntar: O sistema deles é seguro?

    Mudando de assunto. Já ando pela metade do Desprezo das Massas, que sugeriste. Nessa altura, agrada-me e afasta a má impressão das páginas iniciais. Realmente, não gosto de propaganda contra, nem a favor do judaísmo.

    E o início do livro é meio elementar em acusações de anti-semitismo a A, B e C. Matéria cansativa, deves concordar.

    Adiante as coisas tornam-se bem interessantes, na abordagem da elevação das massas a sujeito social e político. Ele pinça muito bem o que há em Hobbes de interessante.

    Todavia, não tem a amplitude da visão orteguiana, nem a precisão. Ao final, porei aqui uma sugestão com alguns comentários.

    Abraços e vamos aos livros.

  8. Pedro

    Andrei,

    Compro na estante virtual há alguns anos e nunca tive problemas. O site é apenas uma reunião de sebos, de modo que ele não dá a garantia de restituir os valores pagos em caso de você não receber o pedido. O que faço para tentar me garantir é pagar por transferência bancária e olhar os comentários dos compradores sobre o vendedor. Caso ele tenha um histórico ruim, não compro. Parece-me que o risco é o mesmo de qualquer compra via internet na qual o vendedor venha a encasquetar que você não pagou: ter que engolir o sapo ou recorrer à justiça. Enfim, se diferença houver quanto ao risco das grandes livrarias, é só de grau.

    Quanto à análise da obra, concordo integralmente. Vou esperar seus comentários.

  9. Andrei Barros Correia

    Pedro,

    Fiz a compra. Tens razão, risco sempre há. Utilizei um tal de sistema de pagamento digital. O vendedor só recebe depois e quinze dias e coisa e tal.

    Agora é esperar por Viagem ao fim da noite. Sim, ia-me esquecendo, sobraram muitos ainda.

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