Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A falácia da oposição entre desenvolvimento e preservação urbana.

Palácio Monroe, antiga sede do Senado, no Rio de Janeiro.

Palácio Monroe, antiga sede do Senado, no Rio de Janeiro.

Cinelândia, o que se pôs no lugar do Palácio acima

Cinelândia, o que se pôs no lugar do Palácio acima

As oposições ou dicotomias tornaram-se modas. Utilizá-las passou a ser acreditado como algo a conferir ao teórico ares de ser ponderado e sábio. É um pouco a resultante de acreditar-se no mito da balança, em que um lado desce quando se põem pesos no outro.

Mas, esse mito cai por terra se retirarmos das condições ambientes a lei da gravidade. Então, os dois lados podem ficar estáveis com pesos diferentes, o que já está a parecer suprema contradição, ou devaneio.

Bem, o fato é que opõem o progresso, o desenvolvimento, ou qualquer termo que se utilize, à preservação. Falo aqui de arquitetura e ordenamento urbanos. Assim, destruir seria a indesejável porém inescapável condição para construir algo novo. De início, percebe-se que a coisa implica grandes julgamentos, porque nada indica que o novo seja preferível ao velho, nem em tese, nem em prática.

E nada indica que o novo implique a destruição do velho, até porque não são, novo e velho, necessariamente coincidentes no espaço. O novo pode estar ao lado do velho ou mesmo mais afastados um do outro podem estar. Podem estar de várias formas, mas não podem estar no mesmo espaço, porque aí um pede a extinção do outro.

As pessoas guiam-se por esse determinismo, além de coisas mais bobas ainda, de que não evitarei falar. Elas querem retirar algo para pôr no mesmo lugar outra coisa, ou mesmo coisa nenhuma, porque acham que o que se vai pôr é progresso ou desenvolvimento. Mas, por quê é?

No caso de uma cidade que não se veja comprimida por limites naturais quase intransponíveis – como seriam altas montanhas ou caudalosos rios – o que impede que o novo se faça à margem do velho? Na verdade, somente a conveniência, no sentido de preguiça física e mental, é que impede a preservação de algum patrimônio arquitetônico e urbanístico. A preguiça de afastar-se um pouco de si e do centro.

Deve ter passado pela cabeça de um de outro botar abaixo a Igreja de Nossa Senhora, na Île de la Cité, para, no espaço desocupado, fincar um vistoso edifício de 30 pavimentos, todo revestido de vidros azuis espelhados. Certamente passou pela cabeça de pouquíssimos essa idéia, pois a igreja lá está e os prédios estão em outros bairros. Continuou uma e fizeram-se as outras edificações.

Antes que alguém acuse-me de enorme exageração, explico logo que ela foi proposital. Porque a despeito do exagero, as comparações são possíveis, são quase sempre possíveis para desespero de quem não compreende que a variação limita-se à precisão e à pertinência delas.

A variação da qualidade estética e da abundância quantitativa dos patrimônios arquitetônicos é imensa. Há cidades riquíssimas, de muitas belezas e há delas pobres, de escassas manifestações de beleza arquitetônica, tanto em número, como em qualidade. Nessas últimas, o pouco é ainda mais precioso.

Uma casa opulenta de residência em estilo art déco tardio, onde há meia dúzia delas, é mais preciosa que a mesma inserida em um conjunto de mil. E um edifício de 30 pavimentos, revestido em vidros azuis espelhados, também tardio, pode ser fincado em vários sítios, não sendo necessariamente e divinamente predestinado a estar onde um dia esteve uma das seis casas. Até porque – e isso esquecem-no os modistas do progresso – a aceleração desse mesmo progresso implicará que edifícios espelhados haverá muito mais que casas art déco, independentemente do valor estético de cada um.

Mas, o fetiche da oposição entre progresso e preservação vai adiante, ele pretende justificar-se. Diz-se, então, muito emotivamente, que sempre teremos as fotografias, esse magnífico espelho que reflete uma já não-imagem. Que ótimo! Levada a extremos, essa lógica permitiria dizer a alguém que, se ele tem um retrato dos seus pais para olhar depois, nenhum problema resulta que se os matem.

O Sultão Suleimão, depois de tomar Constantinopla, em 1453, não pôs abaixo a mais bonita igreja do mundo. Tornou-a em mesquita e, ainda, depois, edificou-se uma outra mesquita, quase contígua, tardia de mil anos. Ficaram duas mesquitas, onde, se o Sultão fosse um dos teóricos da dicotomia aqui falada, ficaria apenas uma, sobre os alicerces da igreja.

Aqui onde estou é Campina Grande, uma cidade de 400 mil almas vivas, na região nordeste do Brasil. É uma cidade nova, como já andei a falar nesse blogue. Enriqueceu rapidamente, da prosperidade trazida pelo comércio do algodão. Essa prosperidade fugaz ensejou o pouco de patrimônio arquitetônico que há na cidade. Uma parte desse patrimônio consiste em propriedades privadas, feliz ou infelizmente.

É pouco, qualitativamente e quantitativamente, mas é o que há e se vai reduzindo a bem dessa idéia de progresso, que carrega toda a deselegância da mistura de novo-riquismo com desprezo e ignorância histórica. Vai, ao que tudo indica, ser reduzido a fotografias, embora nenhuma incompatibilidade haja entre as fotografias e as coisas que elas retratam. Podem ambas existir.

Alguém dirá que isso é saudosismo e anacronismo. Pode ser, e daí? Essas motivações são demasiado humanas e subjazem a muitas coisas. Os cemitérios são em grande parte motivados por saudosismos e ainda não triunfou a idéia de acabar com eles, pura e simplesmente.

O gosto por esculturas persas ou gregas é, de certa forma, saudosismo e anacronismo, a par com outras motivações talvez de pura forma. Nem por isso, destruiram-se todas para fazer qualquer coisa com seus pedaços de mármore, embora muitas tenham merecido esse destino.

Bem, o que salta evidente a quem ponha-se a pensar com mais calma, é que a necessidade que supõe a dicotomia é uma falácia.

2 Comments

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