Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

A classe média brasileira. O tempo passou na janela e só Carolina não viu.

Esse grupo social, particularmente a classe média alta, é um poço de aviltamento, superficialidade, arrogância, crença de que o mundo foi criado para agradar-lhe os gostos, ausência de responsabilidade, e uma profunda auto-confiança que somente uma profunda ignorância pode permitir.

Não percebe que existe em articulação com outros grupos sociais e comporta-se como se os outros grupos existissem em função dela. Na verdade, parece crer que todas as coisas foram dispostas tomando-a por centro de gravidade e referência. Que tudo existe contra ou a favor de seus interesses, que tudo deve ser-lhe perguntado.

Criado o mundo para acolher-lhe e agradar-lhe, é de esperar-se que não acredite em instabilidade, em possibilidade de mudança. É de seu feitio não compreender que os equilíbrios são muito mais tênues do que parecem, que resultam de jogos de forças muito intensas e dispersas e que tudo pode ruir facilmente.

É incapaz de gratidão, pois sua atitude mental é fundada em uma deformação que chamam mérito, embora com ela não se ganhem guerras, não se projetem aviões, nem se descubram penicilinas. É incapaz de respeito e de magnanimidade, porque mede tudo com sua régua pequena, que não é medida na escala do excelente.

Arremeda modos e costumes que reputa distintos, embora de elegância não tenha a mínima noção. Desconhece a proporção e a espontaneidade, que vai substituindo por uma representação que, de tão acostumada, torna-se sua profunda realidade. Uma realidade feita de imitações.

Tem uma biblioteca que não lê, porque é chique tê-las e, ler ou não, é um detalhe. Tem um e outro intelectual de frases feitas de estimação, porque é chique cultivar a excentricidade vazia. Tem um acervo de fotografias em Paris e Londres, embora a loja sem impostos do aeroporto tenha sido o seu local preferido.

Não tem memória e reputa desnecessário tê-la. Essa é sua pior característica, embora não seja a mais irritante ou mais evidente. Essa aversão pela memória torna-a vil a ponto de deixar-se subornar e sinceramente esquecer-se disso. E não entrega o que vendeu porque simplesmente acha que não fez negócio algum.

Nesse sentido, é incorruptível, não porque honorável, mas porque supõe que os subornos foram presentinhos merecidos. De tão impermeável e segura de ser merecedora de tudo, gratuitamente, dá-se ao espetáculo de ser comprada escancaradamente e não perceber, nem a piada, nem o aviltamento.

Quando mostra-se surpresa por alguma coisa, não é porque surgiu algo novo e imprevisto. É porque surgiu algo longamente gestado, bem em baixo de seus olhos, mas que ela não viu, porque sua janela é um espelho. Ela é Carolina da música de Chico Buarque, para quem o tempo passou na janela e só ela não viu. E depois guarda mais que dor, guarda rancor.

6 Comments

  1. Katyuscia Carvalho

    Parabenizo-o pelo texto e pelo blog, que passarei a seguir.
    Poucas vezes encontra-se algo tão lúcido e coerente, que merece ser ecoado.
    Se me permite, vou divulgar entre colegas professores, porque vejo nas salas de aula o melhor lugar para esse estado de marasmo e omissão ser “sacudido”.
    Claro, divulgarei com o link incluso.

    Um abraço.

  2. Andrei Barros Correia

    Obrigado, Katyuscia. Esteja sempre à vontade na Poção.

  3. Carla

    Simplesmente: parabéns.
    Em poucas linhas disse tudo. Só que eu adicionaria a classe média-média, não só a alta. Más, perfeito.

    • Andrei Barros Correia

      Obrigado, Carla. Venha sempre à Poção.

  4. Paulo

    visito seu blog hoje pela primeira vez atraido por uma referencia em comentario de um post no blog de Luis Nassif ( desvendando a espuma..) e de ¨lapada¨ li varios posts. Farei mais visitas.

    • Andrei Barros Correia

      Seja bem-vindo, Paulo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *