Em que pese o equilíbrio dentro das forças armadas, a Força Aérea ainda pode ser considerada símbolo de elegância. Ela surgiu no Brasil em 1941, quando se uniram a aviação naval e a aviação do exército. Veio a ter protagonismo internacional quando, em 1944, participou da 2ª grande guerra junto a Força Expedicionária Brasileira.
Foi nessa “arma” que ingressou o hoje Coronel da reserva Ozires Silva, filho de funcionários da Companhia Paulista de Eletricidade. Ele saiu de Bauru em 1947, aos 16 anos de idade, querendo formar-se engenheiro aeronáutico. Um apontamento que acho bastante interessante fazer é que a engenharia aeronáutica, naquele momento, logo após a segunda guerra mundial, era uma carreira absolutamente nova e sem muitos parâmetros, algo semelhante, mesmo que de bem longe, com a computação há trinta anos atrás…
Oziris Silva, acompanhado de um amigo, foi de casa para um Rio de Janeiro então mais romântico. Com relação ao Rio de Janeiro, as pessoas que andam à volta da idade atual de Ozires, 87 anos, lembram-se de suas escolas públicas como centros de ensino não somente de qualidade, como também de excelência.
Essas informações são importantes porque objetivamente definem o pensamento do Coronel, ao situá-lo cronologicamente. Este pensamento foi moldado, portanto, bem antes de “Uma Teoria da Justiça” (1971) de John Rawls, livro que veio definir o liberalismo moderno como modelo de solidariedade sentado em cima do Estado de bem estar (Wellfare State) e é o que de mais importante foi escrito nos Estados Unidos da América desde os Federalist Papers em termos de teoria política.
E foi moldado logicamente antes também do livro de Robert Nozick, “Anarquia, Estado e Utopia” (1974) que assentou as bases do libertarianismo, usando como trampolim o liberalismo clássico inglês (utilitarismo) e que as pessoas hodiernamente confundem com uma forma generalista, e portanto equivocada, do que seja “liberalismo”.
No dia 18/06/2018, Ozires Silva concedeu uma entrevista interessantíssima ao programa de televisão Roda Viva. Este programa televisivo é produzido pela TVCultura de SP que, por sua vez, é gerida pelo partido político PSDB no mesmo Estado. A política deste grupo é, via de regra, vender soberania para perpetuar algumas pessoas no poder político paulista, num tipo de neo-coronelismo da política brasileira, supondo-se de direita.
Uma das coisas mais interessantes sobre o entrevistado, porém nunca levantada, é que ele participou ativamente do período ditatorial brasileiro, em que aconteceram muitas torturas. Ora, a despeito de ser militar e de ter servido ativamente na época ditatorial, não pesa sobre ele nenhuma acusação. Essa inexistência de suspeitas sobre Ozires, com relação a participação em atos violentos não se deve a ter sido da aeonáutica, já que o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) no Rio de Janeiro servia efetivamente como “ponto de tortura”.
O fato é que além das reprensões “naturais” a movimentos sindicais, inclusive a uma greve na Embraer que ficou famosa em 1984, não paira sobre Ozires a sombra da tortura. E só isso já fala muito sobre a pessoa dele.
Todos esses apontamentos foram necessários para fazer o que para mim seria a observação mais importante sobre a entrevista. Percebe-se que em seu decorrer, vai-se desenhando um Ozires que não existe e, a certa altura, tanto o entrevistado como os entrevistadores começam a falar sobre empreendedorismo e forças de mercado.
É claríssimo que Ozires é um empreendedor nato, hábil e bem sucedido, tanto quanto é claro que o sucesso dele se deve muito pouco a “mercado”, “empreendedorismo”, “meritocracia” e seja lá o que for. A compreensão de que a Embraer, criada em 1969, tem mais a ver com o ímpeto de um jovem militar bem formado por escolas públicas de qualidade, proveniente de uma família de funcionários públicos (que então significava uma grande vantagem), e com um ímpeto nacionalista que talvez hoje esteja um pouco adormecido é primordial.
Diz Ozires que existiu uma reunião com o então presidente da república, um militar, para convence-lo a fabricar aviões. Eu não estava na tal reunião com o presidente, mas tenho uma certeza quase absoluta de que dentre as muitas coisas aventadas naquele momento, absolutamente nenhuma foi: vamos dominar o mercado. Isso em momento algum foi mencionado. Não obstante, algumas outras coisas eu acredito piamente que tenham sido mencionadas como, por exemplo, estratégia, defesa, investimento público, aquisição de tecnologia, tudo isso embalado num patriotismo, que sim, os militares tinham (muitas vezes usado de forma errada, mas tinham).
Esse tipo de relação onde existem investimentos públicos a financiar direta ou indiretamente negócios privados não é novo, inclusive perdura até hoje e é condição quase que sine qua non para os “empreendedores” pátrios obterem sucesso e/ou expandirem seus negócios. A novidade no caso de Oziris, é que ele não utilizou os recursos em empresa própria e construiu com recursos públicos um empreendimento tão grandioso quanto nacional.
Então, a entrevista, assim como a pessoa, impressionam de duas maneiras absolutamente distintas, uma por sua história absolutamente fantástica, outra pela história que querem atribuir-lhe, e que, pra minha decepção, ele aceita de bom grado, tornando quase irrelevante, de maneira irresponsável, uma conjunção de fatores decisivos para que o menino de Bauru se tornasse o criador da Embraer.
Deixo abaixo a entrevista, que de fato, é boa:
O texto nasceu de conversas com Luiz e Paulo, da ajuda e edição primorosa de Andrei (obrigado) e infelizmente da minha audiência ao Roda Viva.
Queria agradecer a alguns comentários que chegaram a mim, via WhatsApp, e tomar a liberdade de colocá-los aqui, são excelentes observações que eu mesmo gostaria de ter feito:
“Ozires é filho de um projeto de Estado”
“tentaram dissociar a embraer de um projeto de Estado”
“se a mentalidade fosse de planilha teriam importado aviões prontos”