O que é característico deste momento é que a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem o denodo de afirmar o direito à vulgaridade e impõe-no onde quer que seja. Como se diz na América do Norte: ser diferente é indecente. A massa arrasa tudo o que é diferente, egrégio, individual, qualificado e selecto. Quem não for como toda a a gente, quem não pensar como toda a gente, corre o risco de ser eliminado.
Esse trecho, retirei-o da Rebelião das Massas, de José Ortega y Gasset, a mente mais clara do século XX. O momento de que ele fala é o final dos anos vinte do século passado, mas tem se tornado todos os momentos. Uma advertência sempre necessária para evitarem-se mal entendidos é que massa não é um conceito econômico – como o próprio esclarece no livro – ou seja, não é sinônimo de pobres.
Essa força uniformizante pelos padrões mais baixos, intelectuais e de comportamento, é a mais intensa de quantas agem na sociedade. A uniformização acrítica está para as massas como a muralha estava para um burgo europeu medieval. Ela está para as massas como a claudicante noção de merecimento está para as classes médias brasileiras. Ou seja, é um elemento de conservação.
E Ortega foi muito agudo na observação do que é a diferença específica. Ela não se encontra na vulgaridade, que sempre houve em altas proporções. Encontra-se na sua afirmação como regra, na sua proclamação como um direito, na sua elevação a padrão cuja infração acarreta eliminação. A superficialidade do técnico detentor de um cabedal de conhecimentos e que se aventura a opinar em tudo não é o novo. O sapateiro que pretendeu imiscuir-se na fazedura da escultura toda é exemplo antigo.
Mais novo é ser isso a regra e estar à vontade a superficialidade para impor-se de rosto descoberto, declarando-se o normal, o que todos acham, o padrão fora de que nada pode haver. Todos têm idéias de tudo e não desconfiam minimamente que essas idéias podem ser uma tremenda coleção de bobagens, irrelevências. Ao contrário, a vulgaridade comporta-se com uma segurança enorme, está muito à vontade, certa de sua predominância social, mas incapaz de compreender que predomínio e exclusividade são coisas diferentes.
Encontramo-nos, pois, com a mesma diferença que existe eternamente entre o estúpido e o perspicaz. Este surpreende-se a si mesmo sempre a dois dedos de ser estúpido; por isso faz um esforço para escapar à estupidez iminente, e a inteligência consiste nesse esforço. O estúpido, pelo contrário, não suspeita de si mesmo: julga-se discretíssimo, e dai a invejável tranquilidade com que o néscio se alicerça e instala na sua própria necedade.
Não desconfiar de si próprio, instalar-se dentro de si, com o acervo de lugares-comuns possuídos, enfim, ser-se hermético. Eis uma inclinação pessoal que dá inércia ao comportamento social da afirmação da vulgaridade do todos pensam assim. Elas se retroalimentam.
Ainda lembro de um episódio acontecido comigo numa conversa com um colega de trabalho, há vários anos. Pelas tantas, meu interlocutor saiu-se com essa: Olha, Andrei, só tu pensas assim. E abriu um sorriso irônico, triunfante e malicioso, como de quem põe o outro em xeque.
Impressionante era o fulano usar a variante do todo mundo pensa assim – pela excludente, eu era o infrator, porque era o único a não pensar como todo o mundo – como argumento. Isso é uma assertiva, mas não é um argumento, falando-se propriamente. Quer dizer, a própria situação em que o fulano está imerso tornou-se argumento de autoridade! E argumento triunfante, devastador, o último e mais forte, que já não admite réplica. Mas, insisto, isso não é um argumento, é no máximo uma proposição a ser verificada. Na ocasião, eu calei-me, e hoje faria o mesmo.
Andrei, realmente Ortega y Gasset é fantástico, quando li esse livro fiquei impressionado com a perspicácia dele em perceber esse fenômeno das massas quando ainda era um tendência.
Hoje é cada vez mais difícil enxergar isso porque estamos tão inseridos na massa que se torna complicado de se desvencilhar das forças massificadas e ter visão e opinião próprias.
Eu gostaria de ler ainda “O mocinho satisfeito”, que creio, trata da temática da classe média “meritosa”, mas nunca encontrei para vender.
Corrigindo meu comentário anterior, quis dizer que gostaria de ler algo mais elaborado sobre o mocinho satisfeito, mas nunca encontrei nada mais interessante sobre esse assunto.
Davi,
Mantenho a Rebelião como livro de cabeceira. Na verdade, como livro ao lado da rede, que é onde leio. Li e reli inúmeras vezes. Não perde o encanto, pois é claríssimo.
O mocinho satisfeito (ou senhorzinho, nas edições portuguesas) é o retrato perfeito da atitude mental dominante hoje.
Os escritos de Ortega y Gasset sobre estética, nomeadamente a Desumanização da arte, e os Estudios sobre el amor são preciosos também.
Um livro bem agradável de ler relacionado ao tema é o de Peter Sloterdijk chamado “O desprezo das massas – ensaio sobre lutas culturais na sociedade moderna”. Não é tão bom quanto Ortega Y Gasset mas vale à pena. p.s.: espero que esse colega de trabalho não tenha sido eu. Ao menos não lembro de ter dito nada nesse sentido.
Pedro,
Desconheço Peter Sloterdijk e vou procura-lo.
O colega não foste tu. Não me lembro de dizeres qualquer coisa do gênero. O colega foi… É melhor não dizer.
Pedro,
Andei em busca de algumas resenhas do O desprezo das massas e encontrei uma, que tem ares de pequenina resenha modelo.
Interessei-me, até porque dizia que o escritor recorre até à teoria da graça, o que é incomum e até arriscado.
Em resumo, encomendei o livro. Obrigado pela sugestão.
Ainda bem. A cerveja do Brejo, com um só copo, causava amnésia. Deve ser a água do Boqueirão. É melhor não dizer mesmo.
Em situações como estas é melhor calar