Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: março 2011 (Page 3 of 5)

Um brasileiro em Washington, nos anos 70.

Por Sidarta

 

Sou mais afro-brasileiro do que judeu iberico brasileiro. Por conta disso, nos tempos em que estudei e estagiei nos USA não era preto nem branco… não era nada, só um latinoamericano pretensamente mais bem educado social e tecnicamente falando. Isso facilitou, de certa maneira, a não obrigação de tentar ser “compliant” com algum grupo racial ou hierarquicamente dominante no trabalho e poder ver que a democracia racial existia obrigatoriarmente dentro do trabalho mas só até terminar o expediente do dia.

Na primeira semana em Washington fui colocado junto com outros brasileiros, vietnamitas, salvadorenhos e outro “subdesarrollados” para “attent a lecture” sobre como não se sentir hostilizado pelas exibiçoes dos pretos nas ruas, principalmente com os latinos. Não tinha nenhum preto puro, aluno ou instrutor, na sala: “Andem sempre bem vestidos, sejam cordiais e não encarem os pretos direto nos olhos; voces não são americanos e eles não se sentem mais compelidos a os respeitar”. Disseram também que os cachorros americanos nas casas latiam pouco e raramente partiam para morder … mas que deixassemos que eles nos cheirassem.

Lendo atualmente um livro sobre o processo de ascençao (briga de foice) dos militares aos altos postos das forças armadas americanas, junto com parlamentares que são assessorados pelos militares e que agem junto aos fabricantes de armas, deparei-me com uma expressão dita por um almirante branco sobre um almirante preto de que, “desde a segunda guerra, os objetivos dos militares pretos não tinham mudado mas que agora eles estavam sabendo se aproveitar melhor de ONG’s, legislações contra o racismo, quotas e acusações de discriminação para alçarem vôos mais altos nos escalões militares e politicos”.

O alto comando militar americano adora receber ordem para matar mas parece gostar mais quando essas ordens saõ dadas por um presidente branco. Vai ser dificil mesmo para Obama ser o que não é ou não ser o que é…

Penso que é a rearticulação dos republicanos em cima das oscilações e do evidente oportunismo de Obama.

Obama não passará de quatro anos.

Bye

 

Obama elegeu-se presidente dos EUA a partir de um discurso de renovação e rompimento com políticas levadas a cabo polo antecessor Bush. Evidentemente, não se tratava de rompimento abrupto, nem profundo, porque isso não é possível na democracia de modelo ateniense que vivem os EUA, a democracia da Boulé, de quatrocentas famílias.

Tratava-se de suavizar a extrema truculência dos anos Bush, tarefa fácil considerando-se que os limites do razoável em mentira, violência, captura do Estado por financistas, petroleiras e industriais bélicos, e falta de sutileza haviam sido rompidos por larga margem.

Tratava-se de estancar o processo de empobrecimento do norte-americano médio, prover-lhe alguma ajuda estatal, como a saúde, por exemplo. Tratava-se de impor alguma regra aos mercados financeiros, apenas o suficiente para evitar que leve o mundo à ruína, especulando com dinheiro de mentira.

Tratava-se de reduzir a beligerância e as agressões perpetradas em todo o globo, contra quem não se pode defender, feitas para roubar recursos naturais e dar fluxo de caixa ao complexo industrial-militar.

Tratava-se de ser menos unilateral e imperialista, porque essa postura vai, a pouco e pouco, tornando-se inviável e profundamente antipática. De dar um pouco de inteligência às relações internacionais, reduzindo-se a percepção de arrogância desmedida.

Tratava-se de harmonizar o discurso às práticas e reduzir a imensa percepção de hipocrisia norte-americana no que se refere aos direitos humanos. Como um país sai arrogantemente a gritar acusações de violações contra os outros – e a matá-los por isso – e mantém um campo de concentração repleto de presos arbitrariamente, sem direito de defesa, sem acusação formal?

Essas suavizações não foram realizadas. Obama sentou-se no colo de Wall Street, do complexo industrial-militar, das petrolíferas. Deixou tudo como estava e piorou outras, como no caso da transferência de dinheiro de toda a população para os bancos de investimentos que, inclusive, não deixaram de pagar bônus milionários aos seus gestores.

Ora, para fazer isso, ou melhor, para não fazer o que prometeu e esperava-se, havia o candidato republicano! Obama guia-se pelo roteiro perfeito da auto-destruição política.

Para os que confiaram e puseram suas esperanças nele, é um traidor. Para os que o cooptaram é um que se entregou, como muitos, ao depois e, por isso, não é realmente um deles. Ficará em apenas um mandato, porque esse programa tem como donos verdadeiros os republicanos.

Todavia, essa continuidade vai acelerar a decadência norte-americana, que será profundamente dramática. Vai implicar em cada vez mais guerras, para dar vazão à produção bélica e para obter por saque o que não se obtém mais por produção. Vai aprofundar o fosso que separa as práticas dos discursos, ou seja, vai aprofundar a hipocrisia.

Não tenho muitas dúvidas de que terão que voltar-se para o Sul, ou seja, para a América do Sul. Mas, não será para simpatias e relações simétricas. Será para roubar-nos, no caso dos brasileiros, o petróleo, os minérios sólidos, a força de trabalho. Claro que o leitor de revista Veja – escravo cego e voluntário – dirá que isso é teoria da conspiração, mas é o futuro cristalino.

Máfia na saúde pública, em Campina Grande. A cumplicidade social tem inércia própria.

Os meios de comunicação noticiam o caso de um médico cirurgião que cobrava dos pacientes o que o Estado brasileiro já lhe pagava. Fala-se que o esquema envolve enfermeiros e funcionários de hospital, que atuavam para obter pagamentos dos doentes por atendimentos que deviam ser gratuitos. Se assim ocorreu, há um crime, pura e simplesmente.

No Brasil, existe o SUS – Sistema Único de Saúde. Trata-se de uma rede de pagamentos feitos pelo Governo Federal a hospitais e clínicas que devem atender às pessoas, desde que tenham voluntariamente aderido ao sistema. Isso criou-se para cumprir o preceito constitucional da saúde pública universal e gratuita.

O governo central distribui aos Municípios e aos Estados Federados dinheiros públicos para se pagarem atendimentos médicos à população, prestados por entidades privadas conveniadas ao sistema. Um médico que trabalhe nesse sistema aceita suas regras e recebe segundo uma tabela com valores para cada intervenção. Ele não é obrigado a aderir ao modelo, convém esclarecer.

Se ele adere ao sistema público, não pode remunerar-se de qualquer outra forma pelo serviço médico que presta, porque aí está a exigir vantagem indevida e a enriquecer ilicitamente, até porque recebe duas vezes pelo mesmo serviço.

Faltam médicos no Brasil. Além de serem poucos, relativamente à população, estão mal distribuídos pelo território. Há cidades que os têm, na relação para cem mil habitantes, mais que o recomendado pela ONU. Há outras cidades que os têm em proporções ridículas, relativamente às suas populações.

Por conta dessa escassez, os serviços médicos são caros. É resultado evidente da lei de oferta e procura, segundo a qual uma oferta pequena para uma demanda grande encarece os preços. Esse é o aspecto objetivo do problema, aquele que permite apontar uma solução também objetiva: aumentar o número de médicos. Leva tempo, mas é possível e deve fazer-se.

A escassez tem o efeito indesejado de aumentar os preços e o poder de chantagem dos profissionais, mas não guarda relações teóricas diretas com outra face do problema. Esse outro lado tem relações com a sociedade brasileira, com a forma de organização dela. Tem relação com a estratificação social e as forças de manutenção da estrutura.

Quando falei em cumplicidade social, no título, não quis insinuar que haverá cumplicidade com a não punição do médico especificamente descoberto a cobrar pelo que não podia. O especificamente descoberto a delinquir provavelmente será linchado, em primeiro momento, e esquecido, ao depois. É o espetáculo.

A questão é precisamente que a punição é – caso ocorra – pontual. Porque, na verdade, é punição espartana, não no sentido habitual do termo, de simplicidade e contenção, mas de exemplo a estimular a não descoberta. Em Esparta, os jovens bem-nascidos eram retirados das famílias para serem educados pela Cidade. Eram estimulados a tudo, a matar um meteco, se fosse o caso, mas, se fossem descobertos, levavam uma sova de deixar às portas da morte.

Tudo pode e tudo acontece, só não pode ser descoberto. Bem, esse é o resumo de algum modelo espartano, porque nós o elaboramos e chegamos à fórmula que lincha o descoberto, mas ao final o absolve. Mas, principalmente, chegamos à fórmula que prescreve a absolvição geral com um e outro apedrejado pelo caminho.

Os médicos que cobram duas vezes pelo que já receberam são muitos; esse que foi descoberto é apenas o que se sentiu mais à vontade no crime. Os servidores públicos que pedem dos usuários o que eles não precisam dar são muitíssimos. Os que entregam uma prestação obrigatória como se fizessem um favor são quase todos.

A raiz disso – não há como evitar dizê-lo – está na concentração brutal de rendas no país. O nível extraordinário de concentração é parente na linha reta da apropriação do Estado, um instrumento de extorsão de recursos do todo e de repartição do produto entre poucos, além de aparato de violência e contenção social.

Assim ele é percebido e assim ele vem funcionando, a despeito de uma e outra reação, de uma e outra intenção dos chefes de governo. Na percepção social dominante, o Estado não é uma entidade supra-individual que existe em função da nação, mas um poder patrimonial que existe em função dos proveitos que se podem retirar dele.

O mais simples indivíduo que se torne funcionário público ou trabalhe em colaboração com o poder público sente-se um recebedor de salário desobrigado de quaisquer deveres realmente públicos. Claro que se sente obrigado aos deveres de contenção formal e de representação teatral de um papel ridículo de aparente probidade, mas nada de assumir-se servidor, em sentido próprio.

Assim percebe-se a realidade, seja o indivíduo empregado do Estado, diretamente, seja o que se chama um empreendedor privado. Qualquer que seja a posição do indivíduo, se ele tiver um certo nível de rendimentos, será um sócio dessa coisa chamada Estado. Mas, ele negará, ele afirmar-se-á independente desse Estado, ele se comportará como se nem existisse Estado, desprezível.

E, por ser desprezível ou maravilhoso, assim esquizofrenicamente, o Estado não será compreendido, não será percebido o que é, ninguém vai saber o que implica, o que significa, os direitos que eventualmente ele lhes assegura. Essa esplêndida confusão vai permitir que ele siga a ser o instrumento de meia dúzia, pago por todos.

E, quando um ladrão for descoberto, será empalado em praça pública, ou não será empalado nem nada, e os outros ladrões vão comentar sua sorte, em casa a bebericar uísque e a dizer que fulano devia ter tomado cuidado. Eles dirão exatamente isso, que fulano devia ter tomado cuidado!

Está fácil, assim. Essa gente –  nós – devia ter que defender seus interesses com os punhos, ou os revólveres, ou as facas. Assim como está é fácil, criamos uma coisa genialmente perversa, criamos a inércia social, quase o modo contínuo. Quando um de fora entra, um de entre milhões, ele torna-se nós!

No final e ao cabo, se é para continuar a falar nos crimes da saúde pública, o que acontece é o seguinte: se as vítimas são pobres, pode acontecer. Se alguém é descoberto, rompendo o pacto de inércia social pelo excesso, faz-se o espetáculo e tudo segue; premiam-se os que cometem crimes mais discretos.

 

A selva em Campina Grande: aniversário em um restaurante vizinho.

São precisamente onze horas da noite. Vizinho ao prédio em que moramos, há uma pizzaria. No prédio em que moramos há muitos velhos e alguns deles doentes. Ou seja, é um lugar bom de morar, porque é silencioso.

Eis que há uma festa de aniversário no restaurante vizinho. A tal festa, como não poderia deixar de ser, tem todos os elementos do mau gosto dominante: um carro que pára em frente, com um fulano ao microfone, aos berros, dizendo pieguices em homenagem ao aniversariante.

Depois da sessão de dramatização vulgar aos berros, fogos, foguetões, um barulho danado. Depois, música em alto volume.

Isso é simplesmente proibido, como inúmeras outras coisas são. É proibido porque agride as pessoas que moram ao redor, evidentemente. Trata-se de harmonizar os interesses dos habitantes de uma cidade. Se tudo for permitido, qualquer invasão das esferas alheias, a bem da liberdade de uns, torna-se a barbárie.

E não se trata de proibir as pessoas de comemorarem coisa alguma. Quer fazer barulho, entra em uma boate fechada e destrói os tímpanos!

Serviços no Brasil: TV Via Embratel é uma merda!

Contrata-se uma TV a Cabo, no caso a Via Embratel. O preço e os canais disponíveis estão claramente oferecidos em prospectos e no sítio de internet da empresa.

Como se trata de um contrato, cada parte tem suas obrigações. A do contratante é pagar polos serviços em dia, segundo os preços oferecidos pela empresa. Paga-se em dia.

A obrigação da empresa que ofereceu os serviços é entrega-los, na medida e na extensão do que foi contratado. Mas, o que acontece?

Acontece que nós pagamos o preço, nos prazos estipulados e a empresa não oferece os serviços na extensão contratada. Dois canais simplesmente não funcionam.

É simples, uma das partes descumpre sua obrigação. Fá-lo porque vale a pena fazê-lo, nestas paragens de tolerâncias imensas com serviços mal-prestados. O consumidor, se descumprir a sua parte, que é pagar em dia, tem o serviço cortado e pronto.

Quando o descumprimento é do prestador do serviço, as coisas complicam-se e não foi à toa que se fez um Código de Defesa do Consumidor, logo tornado em papel molhado.

O consumidor está condenado a telefonar para aqueles sistemas de atendimento que, ou não atendem, ou atendem com funcionários cujo objetivo é enrolar tudo ao máximo, resolver nada e levar o consumidor à exasperação e perda da paciência. Depois de sugerir toda sorte de tolice – como sugerir que os cabos não estão corretamente conectados – ele vai dizer que é preciso um chamado da área técnica.

Esses coitados que atendem às chamadas telefônicas cumprem um papel aviltante. Os filhos-das-putas são as empresas, que têm por política gerencial atender da forma que bem entendem e que se danem os clientes.

O consumidor, incauto e exasperado, pensa que tem grandes âmbitos de liberdade e pensa: vou deixar esta merda e contratar os serviços de um concorrente. Mas, o concorrente é a mesma coisa!

Viva a liberdade de lesar o consumidor – que é mesmo a parte mais fraca – viva o mercado, viva o capitalismo das cavernas…

Histeria anti-nuclear.

Estava a escrever um texto muito calmamente sobre o assunto aí do título.  Coisa pensada, alinhando uma e outra informação. Afastei-me do computador por alguns instantes, para pensar um pouco, comer alguma coisa, tomar um copo de vinho. Quando voltei, não havia mais coisa alguma. O texto sumiu. Acho que alguma das gatas andou pelo teclado e sumiu o texto.

A raiva é imensa, pouco importa a qualidade do que se fazia, é imensa, sempre. Raiva é sensação de absurdidade, de perder subitamente pensamentos. Mas, talvez venha a calhar para a noção de risco, de que falava e vou falar agora mais rapidamente.

Esses terremoto e maremoto que aconteceram no Japão levaram duas centrais nucleares a pararem de funcionar. Três reatores estão a fundir-se, embora neguem sutilmente. Fundem-se porque não podem fazer outra coisa sem a refrigeração do sistema fechado de circulação de água. Mas, essa fundição de U-235 vai ficar confinada em um casulo de aço com paredes de 15 cm que, por sua vez, está em uma imensa caixa de concreto.

Urânio 235 enriquecido a mais de 3%, em situação supercrítica, emite nêutrons que bombardeiam os núcleos e geram a fissão deles. Resultam muito calor e radiação. Calor ferve água e gera energia, em resumo impaciente. Toda essa coisa precisa de refrigeração, além de bastões de grafite que atenuam a fissão. Sem o sistema de água a circular, ele derrete.

As usinas têm sistemas redundantes de bombeamento de água. No caso de Fukushima, três redundantes geradores a óleo devem garantir a energia para a circulação de água no núcleo do reator. Com um terremoto de 8,9 graus na escala de Richter, acompanhado maremoto, podiam ser quatro cinco ou seis, que não resultaria.

Com um terremoto e um maremoto desses, se fosse próximo à usina hidrelétrica das Três Gargantas, na China, morreria muito mais gente. Com um negócio desses em Itaipu, boa parte do Paraguai e do Uruguai viraria um pântano, cheio de cadáveres. Enfim, com um negócio desses nada fica bem depois, seja usina nuclear, seja um café da esquina.

Morreu gente embaixo de navio, embaixo de carro, dentro de carro, debaixo de prédio, simplesmente afogada, enfim, morreu gente de toda forma. E morrerá gente contaminada por radiação – expelida com os vapores do sistema de refrigeração – uns rapidamente, outros com cânceres e leucemias de longo prazo.

Se um sismo desses atingisse laboratórios franceses, suiços, norte-americanos, haveria uma impiedosa difusão de microorganismos – virus e bactérias, basicamente – que matariam com os requintes da feiúra própria das infecções mais poderosas. Feiúra tão feia quanto as queimaduras ou leucemias de contaminações nucleares.

Risco não é algo que se suprima, senão chamava-se por outro nome. Risco é a possibilidade de algo acontecer, o que se tenta evitar prevenindo-se a partir de séries de dados históricos e extrapolações matemáticas. Mas que, como risco, um dia acontece.

O que ficou nas cabeças das pessoas como ciência oculta de almanaque de curiosidades mete medo. Na verdade, a vida é que devia meter medo nas pessoas, porque é o mais assustador que existe. O caso é que a geração de energia a partir da fissão do núcleo do urânio ou do plutônio é um medo histérico para muitos.

Histérico e curiosamente revelador de quanto há de desinformação. Esse medo histérico da geração nuclear é capaz de contemplar a enormidade imponente de um porta-aviões norte-americano, quem sabe fundeado ao largo de Lisboa. Essa majestosa nave de guerra é um bocado de aço em torno a uma usina nuclear!

Todos aqueles naviozinhos menores que acompanham o imenso porta-aviões são usinas nucleares mais pequeninas e mais graciosas, nas suas proporções. Todos os dias, em todos os locais, há usinas nucleares norte-americanas, chinesas, russas, francesas, inglesas, israelenses navegando em mares nem sempre calmos. Usininhas nucleares boiando sobre as águas tempestuosas ou calmas, administradas por marinheiros cujos humores não se conhecem.

Aquele vaporzinho que sai do convés de vôo dos porta-aviões, quando suas catapultas lançam ao ar um avião, foi gerado pela usina nuclear desconhecida da histeria coletiva. Enfim, há muito mais usinas nucleares por aí do que supõem os manifestantes de qualquer cruzada anti-nuclear.

A França, hoje, gera aproximadamente 65% de sua energia elétrica a partir de usinas nucleares e nunca teve um acidente significativo. Significativas são as reduções de dependência do petróleo árabe e norte-africano, do gás russo, do carvão deles e dos alemães. Significativo foi o que deixaram de plantar com turbinas eólicas e células foto-voltáicas para plantar com trigo.

Significativo foi o que deixaram de queimar fósseis, de emitir dióxido de carbono na atmosfera. O que deixaram de ter de instabilidade na rede, porque a geração nuclear tem imensa disponibilidade de despacho de cargas. Significativo foi o que deixaram de gastar de recursos naturais, porque meio quilo de urânio 235 a 3% equivalem à energia de 3.800 milhões de litros de gasolina, para um exemplinho vulgar.

Um acidente nuclear pode matar gente? Pode, claro. As guerras por petróleo podem e matam gente diariamente. Os lagos das hidrelétricas matam vastas áreas em que se pode plantar o que gente come. Se rompe uma barragem morre gente? Pergunta tola, sem precisar de resposta.

Pode o mundo dar-se ao luxo de gerar energia queimando carvão e petróleo? Sim, pode, até que alguém ache ruim e até que o óleo acabe, depois de ter acabado com o clima, com as temperaturas minimamente razoáveis, com alguma estabilidade do regime de chuvas.

Pode o mundo viver do que a tolice dominante – religiosidade científica – chama de energias limpas? Pode, sim, desde que o mundo passe a ter metade de sua população ou que aceite pagar mais pelo mesmo ou que aceite matar a outra metade de fome sem culpas na consciência. Não há energias limpas, não há vida limpa.

Não há energias limpas – para ficar com o termo – que supram a voracidade energética atual. Se cataventos imensos foram instalados de norte a sul, na costa leste dos EUA, expulsando as mansões dos milionários e as indústrias do turismo e da pesca, de nada adiantaria. E, depois de vinte anos, pensem o que se faz com uma pá de trinta metros de uma turbina eólica. Corta-se em pedaços e vende-se como souvenir?

A bobagem fotovoltaica, que hoje não se leva a sério, já foi uma redenção para todo sujeito que acha bom e acha ruim conforme o programa de Discovery Channel que viu. Seria maravilhoso substituir toda a soja plantada no Brasil por células fotovoltaicas. Ficaria mais bonito. E identificaria limpeza energética a fome.

Os sonhos vêm do ar e da luz, isso é bastante poético e humano. E ar e luz têm muita energia, a mesma que os vegetais usam para viver e crescer e alimentar-nos. A questão aqui é de preço e de quantidade de gente a consumir comida e energia. Um dos preços paga-se materialmente, realmente, ou seja, come-se menos, há menos gente.

Tenho para mim que todo esse besteirol é pago pela indústria do petróleo, que é quem controla a das energias limpas. Aparente contradição, a mais suja é a dona das limpas. Aparente, porque ambas são as mais caras. Mas, quando a mais suja acabar-se, os donos vão vender as mais limpas – para ganhar dinheiro – e a única possível para atender a demanda, a nuclear, porque não são suicidas.

Há, porém, uma saída, de que ninguém quer ouvir falar: reduzir drasticamente o consumo. Reduzir a ponto de ficar-se com os potenciais hidrelétricos e eólicos como suficientes. Reduzir a ponto de evoluímos, em milhões de anos, até vermos com pouca luz, como os gatos. A ponto de aceitarmos os calores e frios estúpidos com a nudez e camadas sucessivas de lã fiada à mão.

 

Reparo sobre o Lobo Antunes.

Assim que terminei O manual dos inquisidores, achei de iniciar a leitura de outro Lobo Antunes, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?

E vieram-me vivas na memória as advertências do Miguel. É uma leitura difícil, esta, realmente. Difícil como não me pareceu O manual dos inquisidores, porque neste a base histórica é muito evidente e a dissolução cronológica do discurso é pouca.

O livro que comecei ontem tem uma narrativa verdadeiramente fragmentada, com idas e vindas desconcertantes, sem um ponto de referência narrativa claro.

É um tanto estranho, porque não se trata de escrever no formato em que se falam os diálogos. Nem se trata de escrever como pensam as personagens. É dissolução maior que isso.

O manual dos inquisidores, de António Lobo Antunes.

Gosto de escrever pela manhã. Mas terminei de ler O manual dos inquisidores agora e já é noite. As impressões estão fortes na cabeça, talvez não deva perder a oportunidade, mesmo que saia mal pensado e apressado.

Há dois anos,  mais ou menos, o Miguel me dizia da leitura do Lobo Antunes que era difícil. Eu enchia a paciência dele a perguntar de autores portugueses, que exceto por Eça e Saramago pouca coisa tinha lido. Com a paciência de quem gosta do assunto, Miguel falava de um e outro. Do Lobo Antunes lembro-me da advertência.

Tanto que ficou muito para depois o Lobo Antunes, para agora. O homem facilita a percepção de que ele seja meio louco, diz que escreve talvez para remediar-se. Que escrever e ser psiquiatra são coisas próximas. E fica a parecer real, porque muito psiquiatra é médico para tratar de si mesmo. Mas, deixo isso para lá.

Não andei em busca de críticas e resenhas do livro, apenas li aquelas bobagens que vêm nas orelhas e nas contra-capas. Sempre são bobagens, é impressionante. O lugar-comum é decadência, embora ninguém saiba o que é isso. Querem significar com isso tempo, história?

Devem querer dizer história, porque é a coisa mais difícil de perceber que existe e, por isso mesmo, a que é chamada por mais nomes diferentes é multi significantes. As personagens envelhecem e ficam decrépitas, é isso, acho, que leva o comentador a falar em decadência. Ora, decadência sempre há, não pode ser o elemento distintivo de alguma coisa.

O bom autor Lobo Antunes fala de história, é claro. Muito mais que de histórias particulares das personagens, mas da história de um período: o salazarismo do meio para o final. A história apreendida nas suas expressões em cada camada social, porque o quadro completa-se com as realidades múltiplas.

O formato do livro é quase destituído de surpresas, exceto para quem entenda linearidade como evolução cronológica ritmada. A linearidade narrativa do livro está na integração evidente das idas e vindas do tempo contado ao depois. Os episódios são perfeitamente necessários, uns aos outros.

Os relatos e comentários, partes que sempre se sucedem, são mudanças de ponto de vista, como fotografias de uma coisa tiradas a partir de locais diferentes e dão idéia de profundidade, porque assim pode-se relacionar as percepções diferentes de um episódio. É algo diferente de versões, devo apontar, são visões distintas de um mesmo processo.

Um processo que evidencia algo terrível e tão terrível que muitos ignorarão, porque somos treinados desde cedo para não ver esse ponto essencial. Nos processos históricos e mesmo naqueles que têm grandes mudanças políticas e rompimentos, há um grupo que nunca perde.

Há um grupo que sofre, aqui e acolá uns problemas, mas sempre arruma-se, pemanece quase que acima da história. Por isso mesmo, é superficial falar em decadência ou, talvez, fale-se em decadência muito superficialmente. Ela acontece para os grupos movidos e para os indivíduos particularmente, mas não para um grupo. No livro, isso é claríssimo e, de tão terrível, ocupa somente uma porção inicial dele.

Por outro lado, a grande personagem do livro fez-me lembrar outro livro, por conta de uma associação bastante livre, que não é propriamente literária. Falo do Médico e o Monstro, de Stevenson, que geralmente é visto como algo meio extraordinário no sentido de ficcional, ou de algum terror.

O livrinho de Stevenson é das mais profundas análises da alma humana que se fizeram. Eles convivem em todos, o médico e o monstro, é questão de despertá-los. E convivem até pacificamente, é questão do médico perceber o monstro ou de não o perceber em absoluto. Se eles entendem-se razoavelmente, superficialmente, aí é que a convivência é conflituosa.

O Ministro do livro, o Ministro de Salazar que vai de poderoso a velho de sanatório, não percebe o monstro absolutamente. Até ao final ele não se vê além de como sempre se viu, então ele conta o que torturou por mandar, o que matou por mandar matar, o que comprou de gente por comprar e simplesmente conta.

Ele é a figura vulgaríssima de pessoa com apetites e meios para satisfazê-los, com apetites e sem meios para satisfazê-los;,mas sempre com apetites. O que muda são as disponibilidades dos meios o que equivale a dizer tempo. Ele é só ele, não tem propriamente pensamentos, mas recordações e apetites. Não tem crítica, mas imagens que se referem a ele e só a ele.

Um morto ou vários mortos, um morto na frente dele morto por ordem dele é um elemento de recordação que faz sentido na lembrança de toda sua vida, que é muito bem alinhavada na narrativa, a despeito das idas e vindas cronológicas e do texto sem vírgulas. Uma vida extremamente coerente, diga-se, quase uma vida de coerência da razão de Estado.

E as outras personagens, subsidiárias, evidentemente, são a mesma coisa. Claro que são coisas socialmente diferentes, mas fica evidente que feitas da mesma matéria. Elas são as suas posições sociais, enfim, são móveis de pouca ou nenhuma liberdade. O livro, e aqui devo dizer, é terrível para quem acredita em liberdade.

A única liberdade que há é de lembrar-se e de querer, de ter apetites. De tê-los e satisfazê-los, de tê-los e não os satisfazer, de continuar a tê-los e não os poder mais satisfazer, pouco importa. O que houve, todos os fragmentos, foram somente partes de uma trajetória, não implicam qualquer coisa que não se refira a si mesmo.

Várias personagens ligadas, como é de um romance ou novela, com vidas ligadas, deixam claro que as ligações são muito menos que cada um. Que cada um percebe o mundo em si e vai até ao final assim.

 

O furriel Tomás, do Lobo Antunes, diz o que é um crepúsculo.

Aqui não vai comentário sobre o Lobo Antunes, ou sobre O manual dos inquisidores. Vai uma transcrição de um trecho esplêndido. Um trechinho de algo que me chamou a atenção por identificação.  Ninguém percebe que os finais do dia, os escurecimentos, têm uma existência própria, uma cor própria, temperatura própria, que cores e sons e tatos misturam-se?

Pelas tantas, o furriel Tomás entra a dizer o seguinte:

… no momento em que o escuro impedir de nos vermos um ao outro esqueça-me que eu faço a mesma coisa: do meu lado e pronto, assunto resolvido, continuo a tratar das hortaliças em sossego, continuo a envelhecer em sossego, já reparou no brilho dos legumes se anoitece, na cintilação do limoeiro, como tudo se torna nítido e claro antes das trevas, o contorno dos telhados, o contorno das janelas, a vibração de susto de água nas cortinas, uma fissura microscópica da parede ou uma minúscula nódoa de grelado agora enormes e nas quais nunca tínhamos atentado, já reparou como os sons e as vozes mudam de cor, íntimos, vizinhos, inquietantes,  como parece que habitamos uma redoma de silhuetas e de ecos…

Pára mim não é assim quanto à nitidez das coisas, mas é assim com o restante e com o que não foi dito no trecho acima. É assim que são os escurecimentos…

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