Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Mês: fevereiro 2010 (Page 3 of 7)

Mário Soares quer o quê, afinal?

Doze anos depois dos Cravos, Mário Soares iniciava seu decênio presidencial. Pode soar muito simplificador, mas sempre pareceu que sonhava ser Mitterrand, ou seja, o rei sem coroa, o árbitro charmant de todos os litígios nacionais.  Ainda tentando catalisar os interesses populares a partir de alguma sedução do homem sábio sem ser o puro intelectual. E disposto a conversar com as grandes corporações.

Politicamente, a fórmula esgotou-se, o que ficou evidente em 2006. E agora, como é próprio das fórmulas esgotadas, parece que evolui para a sabotagem partidária. O alvo é o senhor da fotografia à direita, o poeta Manuel Alegre. Ele tem condições objetivas de vencer as presidenciais deste ano de 2010, candidatando-se pelo PS.

A despeito disso – ou, talvez, exatamente por isso – o senhor da fotografia à esquerda manobra contra a escolha de Alegre no partido que ambos integram. Soares, nessa pouco nobre missão, não tem grandes possibilidades de êxito, então, pergunta-se: o que ele quer realmente?

Vocações ainda existem.

Meu amigo Rafael foi nomeado Defensor Público do Estado do Ceará. É por isso que escrevo, porque estou satisfeito com a satisfação dele e porque vejo um caso raro de vocação.

O bacharelado em direito,  no Brasil, tornou-se opção maioritária de quantos têm vocação para nada, dos que têm medo de matemática, dos intelectualmente preguiçosos, dos formalistas aplicados e dos oportunistas em geral. Essa massa busca ganhar a vida com uma atividade meio que no fundo desconhece.

O bacharelado em medicina segue o mesmo rumo, com duas diferenças. Ainda é um pouco mais difícil entrar nesse curso. E os efeitos de sua realização apenas visando ao dinheiro são muito piores.

Não me acuse alguém de estar a defender o desinteresse material, que não é disso que se trata. Nem se trata de defender o ataque quixotesco aos leões ou aos moinhos de vento. É o caso, apenas, de celebrar essa raridade que é alguém interessar-se pelos resultados que podem advir do trabalho nessa área profissional, aviltada pela ignorância, cupidez e falta de nobreza.

A vocação é um pouco como a rebeldia inútil e necessária que permeia a obra de Camus. Ela enobrece e o constante esforço que fazem para desmerecê-la, como algo infantil e ridículo, está a provar sua nobreza. Só as condutas de distinção merecem tanto esforço contrário das massas.

Sugestão de leitura. Do amor e outros demônios. García Marquez.

Texto de Olívia Gomes.

Neste carnaval dei-me de presente a leitura de um bom livro. Li Do amor e outros demônios do colombiano Gabriel García Marquez. O livro é de 1994, mas a estória o autor retirou-a de um episódio acontecido em 1949, em Cartagena das Índias.

O fato é que o autor, quando do exercício da função de jornalista, e em busca de uma notícia, foi acompanhar o desenterrar dos corpos das criptas do antigo convento de Santa Clara.

Eis que no terceiro nicho do altar-mor, ao lado do evangelho, estava a notícia: “a lápide saltou em pedaços ao primeiro golpe da picareta, e uma cabeleira viva, cor de cobre intensa, se espalhou por fora da cripta”, estava preso a um crânio de menina e media 22 metros e 11 centrímetros. Na lápide estava escrito o nome dela, Sierva María de Todos los Angeles.

Então, o autor lembrou-se de ouvir, quando menino, sua avó lhe contar a estória de uma marquesinha de 12 anos cuja cabeleira se arrastava como um véu de noiva, que morreu de raiva contraída pela mordida de um cachorro e que era venerada no Caribe por seus milagres. Eis que surgiu a notícia de García Marquez, na época, e o fantástico livro cuja leitura venho sugerir.

Pois bem, o contexto é a Colômbia e a estória é a de Sierva María, filha de Bernarda Cabrera e de um nobre crioulo, o marquês de Casalduero. A mão odiou a menina desde que ela nasceu, e o pai era dotado de tamanha apatia que o levava a não perceber a existência dela, de modo que a menina foi criada pela negra Dominga de Adviento, no pátio dos escravos.

Dominga fez a promessa de somente cortar os cabelos da criança quando ela se casasse em troca dela sobreviver ao cordão umbilical enrolado em seu pescoço que a acompanhava quando de seu nascimento.

As negras cuidavam de Sierva María e de seus cada vez mais longos cabelos. Até que um dia a menina foi mordida foi um cão raivoso, quando passeava em uma feira acompanhada de uma escrava.

Dom Ygnácio de Alfaro y Dueñas, o marquês, após um ataque da raiva e diante da possibilidade da morte da filha, procura ajuda do médico Abrenuncio de Sá Pereira Cão, um médico judeu, perseguido pelo Santo Ofício e fugido de Portugal. Este, por sua vez, ao afirmar a impossibilidade de cura da hidrofobia, sugere ao pai de Sierva María que até o fatídico dia faça-a feliz, já que “não há remédio que cure o que a felicidade não cura”.

E assim o marquês tentou fazê-lo. Trouxe a menina de volta para a vida dos brancos, sem se perguntar se isso faria feliz a menina que sempre se apresentava pelo seu nome de negra, María Mandinga. Bem o disse a professora de música contratada para lhe dar aulas: “não é que a menina seja negação para tudo, o que há é que ela não é deste mundo”.

O fantástico da estória – que levou o autor a ser sempre apontado pelo seu realismo fantástico – começa exatamente quando a menina é exposta ao mundo que não é o seu. Os ataques da raiva foram logo confundidos com uma possessão demoníaca e em virtude dos consehos do Bispo da diocese, Dom Toríbio de Cáceres y Virtudes, ela foi levada ao convento de Santa Clara, para que fossem iniciados os trabalhos do exorcismo.

No convento, como não poderia deixar de ser, os costumes africanos da menina também foram confundidos com as artimanhas do inimigo. Os colares das dividades africanas assustavam as noviças, para além dos hábitos da menina de matar carneiros, estrangulando-os e depois comer seus olhos e testículos cozinhados, e falar em iourba e congo, e em outras línguas aprendidas com os escravos.

O padre responsável pelo exorcismo, Cayetano Delaura, o bilbiotecário da diocese que acreditava ser descendente direto de Garcilaso de la Vega, finda se apaixonando por Sierva María e ela por ele. Consequentemente, o padre deixou de sê-lo e foi castigado a cuidar dos leprosos em um hospital, o que o deixou atormentado e com ares de louco. Esta também foi uma façanha do demônio que havia possuído o corpo da menina.

García Marquez demonstrou com muita sensibilidade e com uma ironia sútil o quanto a realidade pode ser fantástica. Sierva María só vivia, sendo que o fazia com outro modelo. O fantástico aqui fica por conta da vida diferente da que é comumente encontrada.

Eis que Sierva María morre de amor a espera de Cayetano que, em razão de seu castigo, não volta. Seus cabelos haviam sido cortados e raspados para o exorcismo. A noviça que a encontra sem vida vê seus cabelos crescendo rapidamente em um corpo já morto.

Por fim, não posso deixar de mencionar duas coisas: a primeira é que sempre sinto os cheiros ou sou levada aos locais descritos pelo autor em suas obras. Este é permeado de cheiro de mar e de flor de laranjeira. A segunda é um trecho que me chamou muita atenção.

O bispo da diocese em conversa com o vice-rei recém chegado: “Falou de Yucatán, onde tinham construído catedrais suntuosas para esconder as pirâmides pagãs sem perceber que os aborígenes acudiam à missa porque debaixo dos altares de prata seus santuários continuavam vivos”.

Lembrei-me dos templos destruídos, das catedrais e do convento construído em cima de uma estrutura inca, no Perú.

Arrogância e heresia. Por que o Nazareno precisa ser contra Iemanjá?

Houve um grande encontro de adeptos do cristianismo reformado, em Campina Grande. Não sei se todas as denominações estavam representadas, mas acho difícil, pois são muitas e continuamente surgem novas variantes. É um modelo permanentemente cismático e pulverizado.

Nessas grandes ocasiões sempre se reproduzem variações de alguma idéia central. E, os monoteísmos de raiz mosaica derivam suas doutrinas da exclusividade de seu deus. Se o deus do deserto palestino contentava-se em opor-se aos outros deuses, o de agora está bem certo de não haver outros e requer dos seus prosélitos que afirmem essa exclusividade à exaustão.

Leio, em um qualquer jornal, que um qualquer pastor volta suas armas e sua pobre retórica contra a religiosidade de matriz africana, que se cultiva no Brasil. E ele diz que essas crenças africanas devem ser repudiadas porque se baseiam em personagens inexistentes. Ou seja, o pastor reivindica a verdade na historicidade do profeta nazareno que transformaram em um deus e rejeita o resto por historicamente falso.

Já não basta ao pastor a revelação, ele quer a história. E quer esmagar o que reputa serem mitos. Ele não disse, mas imagino que suas grandes provas da historicidade do nazareno sejam as de sempre. O livro de Flávio Josefo, evidentemente falsificado pelos cristãos primitivos, que interpolaram trechos sem pertinência com a história da guerra dos judeus. As cartas de Plínio, o Jovem, de Tácito e de Suetônio, que referem a existência da seita cristã, mas nada realmente sobre a figura do nazareno.

Forte nessas habituais referências – que talvez nem conheça realmente – o pastor diz que o culto de uma Iemanjá é desprezível, porque ela nunca existiu. Ele levou o problema simples de uma religião querer destruir outra para o campo da verdade fática de seus profetas, o louco! Esse é um risco da atomização das denominações reformadas, que não comportam uniformizações doutrinárias.

Ora, no campo da historicidade dos profetas e dos santos, todos são cegos sem guias. Nessa escuridão, ninguém se acha e todos se perdem. É melhor batalharem em outros sítios, invocar conversas diretas e particulares com os deuses, promessas, novas promessas, visitas do anjo, sinais, textos poéticos, textos desesperados, textos mal escritos. Tudo, enfim, que não meta a historicidade de alguém entre os argumentos.

Os favoritos do deus único não precisam da história. Quando acendem as fogueiras, não é para fazer história. Quando queimam as bibliotecas, não é para fazer história. De heresia, já basta acreditarem que sabem o que pode agradar a um deus, portanto não precisam aumentar o catálogo das impiedades invocando verdades humanas.

Kyrie da Misa Criolla, de Ariel Ramirez.

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Morreu Ariel Ramirez, compositor, entre várias outras, da grande obra que é a Misa Criolla. O grupo Los Fronterizos cantou-a desde o início. No vídeo, cantam um trecho do Kyrie, no filme Argentinisima, de 1973.

Há, de fato, uma Argentina que, embora católica, não é propriamente branca, castelhana, italiana ou inglesa. É muito indígena e está para além de Buenos Aires.

Meu Tio, filme de Jacques Tati, de 1958.

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O primeiro vídeo é um pequenino trecho do início deste magnífico filme e permite ouvir a música tema, que será repetida várias vezes. Essa melodia nunca me saiu da cabeça, simples e delicada.

Desconheço outra oportunidade em que a modernidade, como objetivo em si, tenha sido mais atroz e poeticamente ridicularizada que nesta obra de Tati, vencedora de Cannes, em 1959.

Não é sem razão lembrar que Jacques Tati era desprezado pelos diretores autoproclamados sérios e intelectualmente engajados, que pululavam na França pagadora de tributo a uma certa chatice sartreana.

Sugiro que se veja o filme e que se repare numa das cenas finais, que está no segundo vídeo. Hulot – a personagem principal – vai no carro do cunhado a algum sítio. Dentro do automóvel estão Hulot, o sobrinho e o pai deste. O cunhado é o capitão de indústria daquela França em reconstrução, ávida em marchar para o progresso. O carro do cunhado, de último tipo, é o símbolo máximo da modernidade.

Pelas tantas, Hulot quer acender seu cachimbo e não consegue fazê-lo com fósforos. O cunhado aponta a solução tecnológica, o acendedor elétrico do carro. Hulot, nem impressionado, nem resistente, pega do acendedor, tira os primeiros fumos do cachimbo, balança o acendedor como um fósforo e o deita fora pela janela, como a um fósforo…

Urubu tá com raiva do boi. Baiano e os Novos Caetanos.

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Já houve humor realmente satírico no Brasil. O alvo de Baiano e os Novos Caetanos é demasiado evidente. A Tropicália, Caetano Veloso e a filosofice de obviedades e vacuidades lançadas como grandes conclusões.

O Grupo era formado por Arnauld Rodrigues e Chico Anysio. Ontem, morreu Arnauld, cantor, humorista e ator.

Essa música, humorística, é uma pequena amostra de genialidade. O urubu tá com raiva do boi / e eu já sei que ele tem razão / é que o urubu tá querendo comer, mas o boi não quer morrer / tá sem alimentação.

Cria corvos e eles te comerão os olhos.

Esse é um provérbio ibérico – português e espanhol – e até deu nome a um filme de Carlos Saura. Se o Departamento de Estado Norte-Americano atentasse às coisas das diversas culturas, esse provérbio, por exemplo, talvez errasse menos.

A diplomacia estadounidense especializou-se em fomentar os problemas que ela própria teria de enfrentar, mais adiante. Se é burrice ou cálculo, não sei, mas é verdade.

Depuseram Mossadegh, no Irão, para lá pôr o Xá Pahlavi, usurpador dócil aos interesses petrolíferos estrangeiros. Resultou na revolução islâmica, fortemente contrária aos interesses norte-americanos na Pérsia.

Financiaram o Taleban, uma quadrilha conhecida, para dar trabalho aos russos no Afeganistão. Resultou, sim, na saída dos russos do Afeganistão. E, também, nos atuais problemas, já que a banda Taleban voltou-se contra os norte-americanos.

Criaram Sadan Hussein, para dar trabalho aos iranianos. Antes, os britânicos já tinham criado esse artificialismo que é o Iraque. Resultou no que se tem visto por lá, desde há vinte anos.

Algum dia eles estudarão história, ou assim está mesmo bem, porque atuam calculadamente a favor do caos, do saque e da venda de armamentos?

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