Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Uma freira na chuva e uma missionária de skate.

Depois de escrevê-lo percebi que o título aí em cima gera a expectativa de algo muito rico em termos de ficção ou de alguma divagação bastante escapista. Não é disso que se trata.

O caso é que vi duas cenas inusitadas ou pelo menos que assim me pareceram, na mesma semana. Às vezes paro a mirar uns passarinhos que vivem em duas árvores da casa vizinha, coisa que as duas gatas que aqui vivem também fazem. Diferentemente das gatas, não vejo uma refeição profundamente apetecível nem acompanho com a cabeça qualquer movimento, por discreto que seja, dos pequenos pássaros. Olho e reparo na repetitiva e diligente rotina deles.

Esse cenário que se abre nas janelas tem dois panos de fundo estranhos: de um lado, depois da casa das árvores dos passarinhos, há daquelas igrejas de Mórmons, que são todas iguais no mundo inteiro, como são sempre muito parecidos todos os consulados dos EUA mundo afora; em frente, um convento de freiras Clarissas, um pouco menos óbvio que o templo dos seguidores do profeta de Utah.

O convento das freiras não tem qualquer riqueza arquitetônica e é relativamente recente. Organiza-se em torno a um pátio quadrado e tem uma capela lateral, como em quase todos. O templo dos mórmons é vulgar como todos e se parece àquelas escolas secundárias de filmes norte-americanos da década de 1980, com o detalhe de dar a impressão das paredes serem blindadas. Estranha essa impressão, mas sempre achei que esses prédios têm paredes blindadas…

O convento oferece um espetáculo que para mim não é nada mais que comum, mas que para alguém vindo de outra cultura poderia ser extravagante. As freiras clarissas trajam-se como freiras, assim como qualquer um de mais de trinta anos sabe como é. Elas não estão meio à civil, como em algumas ordens. Elas estão no século XIX e talvez a sonharem com centúrias anteriores.

Daí, temos um paramento que cobre da cabeça aos pés, sendo a cobertura superior branca e o vestido marrom escuro. Nos pés, sandálias simples, e à cintura um cordão que deveria ser abolido, porque não cumpre função alguma senão marcar o que os votos disseram ser irrelevante. Abstraindo-se dos nossos hábitos, é estranhíssimo, assim como são todos os uniformes.

Os mórmons também usam trajes uniformes, mas é difícil estabelecer qual é o das mulheres, tamanho o desprezo destes ungidos pelo sexo feminino. Os homens, todos sabem que usam calças pretas, camisas brancas de mangas curtas, gravatas pretas e cabelos curtos. Andam em duplas e aqui no Brasil um bafejo de inteligência os fez esquecerem que todo ser humano não branco é filho de Satanás.

Essa gente que anda aos pares – aqui quase sempre um branco caucasiano e um brasileiro mais brasileiro – está tão uniformizada quanto qualquer outro grupo, apenas que seu traje convencionou-se aceitar como aquele que se esperaria num burocrata estatal ou num gerente de banco. De qualquer forma, continua a ser intrigante uma misoginia tamanha que não haja quem se lembre qual o traje padrão duma mulher mórmon.

Bem, deixando os trajes e edificações dos vizinhos para lá, o caso é que um dia destes vi a cena insólita duma freira a chegar ao convento pelas dez horas da noite, parar na porta e bater para virem abri-la. Vinha com um embrulho numa das mãos e sem guarda-chuvas, embora houvesse uma chuvinha fina e estivesse meio frio para nossos padrões, algo à volta dos 20º.

Bateu, chamou por alguma irmã fulana – não consegui reter o nome que não escuto bem e não é assim tão pertinho – e nada. Esperou, coitada, voltou a bater e a chamar e nada. Inquietou-se discretamente, deu dois passos para lá e dois para cá, firmou-se novamente, baixou a cabeça, parecia resignar-se. Parecia, a mim, que não tenho votos corporativos explícitos, que a irmã tinha vontade de urinar, mais que as premências de sair da chuva e do frio.

Para um leigo, parecia mesmo a impaciência legítima de quem quer abrigar-se, aliviar-se de águas acumuladas e que acha agressivo não vir qualquer um abrir a porta da casa que afinal é sua. Devo confessar que olhava a cena com curiosidade, sem juízos de valor além de solidariedade com a irmã que esperava por alguma semelhante sua que viesse abrir-lhe a porta.

A freira esperou muito. E não posso dizer que tenha esperado para entrar, porque não vi o desfecho, porque a irmã impacientou-se tanto que saiu a caminhar, não sei para onde. Isso tudo, que tomou três ou quatro parágrafos, levou dez ou quinze minutos, o que é ua eternidade para quem esteja em frente de casa, impedido de entrar, sob a chuva, provavelmente cansada, e quem sabe a urinar-se.

Outro dia, reparava eu o bem que o vizinho fez ao podar as duas árvores do seu quintal, que assim se tornaram mais agradáveis aos passarinhos que ali fazem residência, e vi uma senhora mórmon a andar de skate. Convenhamos que é algo raro, mesmo que se ache inusitado termo excessivo. A cena dava-se no estacionamento que há no térreo do rico prédio dos mórmons.

Não era uma jovem e isso é só uma constatação e talvez um elogio à capacidade de assumir riscos, porque isso é perigoso, afinal é comum cair e partir a cabeça, lascar uma perna e coisa e tal. A senhora ia e vinha, como se treinasse, como se quisesse obter técnica no uso da prancha de skate. Skatistas são comuns até demais, mas mulheres de meia-idade mórmons skatistas são relativamente pouco comuns.

Fiquei tentado a crer que o inusitado é algo primordialmente quantitativo, ou seja, que depende da raridade do episódio. Mas, pensando mais detidamente, acho que mistura quantidade e qualidade, o que torna as coisas mais simples e complicadas ao mesmo tempo.

Não é somente de raridade que se cuida, porque raridade em comportamentos é difícil de encontrar. A percepção do inusitado tem, talvez, mais a ver com a qualidade, ou seja, com o que difere dos padrões de habitualidade a que o observador habituou-se.

Espero que a freira não tenha apanhado um resfriado e que a senhora mórmon não tenha levado uma queda….

2 Comments

  1. Sidarta

    Excelente a sua percepção da verdade subjacente.

    Eu acrescentaria que a vida monástica não é tão cheia de amor e de solidariedade para com os que estão a padecer até de coisas menos desvirtuosas como uma incontinência urinária, e a importação da cultura americana de mulheres mormons andarem de skate ainda vai ser um “must and very fancy practice” em Campina.

    A propósito de paredes blindadas, a embaixada americana em Moscou já tinha esse recurso há uns 40 anos atrás…

    • Andrei Barros Correia

      Sidarta,

      A arquitetura desses complexos mórmons é algo tão homogêneo que ainda me impressiona. De qualquer forma, revela a ruptura deles com qualquer coisa que se aproxime de uma estética. Deve ser utilitário ao extremo, por outro lado.

      Algo que percebi vendo como são por toda parte e notadamente em Braga porque havia um no caminho do mercado a que ia frequentemente, é que todos têm ligações diretas por satélite. Dai para parecerem todos bunkers disfarçados, é um pequeno passo.

      A vida monástica é muito mais cheia de intrigas que o normal das outras corporações. É algo parecido às forças armadas, todos querendo jantar os demais, mas sempre unidos em torno aos interesses corporativos.

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