Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Um forasteiro, um domingo qualquer e a redenção de pecados.

Um texto de Ubiratan Câmara.

POA

Amanheceu o domingo, mas não parecia, estava cinza, frio e chuvoso lá fora.
Quando esperanças não mais havia, os céus se abriram e um novo dia parecia acontecer.

Romper a inercia da comodidade era preciso, e na mesma medida se tornou imperativo aproveitar o dia, pois as dádivas do tempo e da disposição física não merecem ser despendidas sob amarras de lençóis solitários ou tolices virtuais… Era hora, portanto, de andar pela cidade.

Porto Alegre, cidade dos outros, que apática e caótica me recebeu, se tornou minha, ensolarada e prazerosa acolhida.

Destino não poderia ser outro senão um espaço público, onde meus descuidados passos fossem indiferentes e a fotográfica permanecesse alheia à cobiça de terceiros. O Parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção, se apresentou como uma opção, enfim.

No Parque, nos dias de domingo em que o bom tempo permite, estranhos se reúnem para negociação dos mais variados artefatos. São antiguidades, artesanato, obras de arte, porcelanas, livros, vinis, quadros, mosaicos, cacarecos de pouca ou nenhuma utilidade também repletam as calçadas. Ao escambo dominical deram o nome de brique da Redenção.

Andar calma e despretensiosamente, sem receios de qualquer natureza, é algo que me apetece em desmedida e que sinto falta no calor excessivo do nordeste, onde sou refém de um automóvel, na imensa parte do tempo.

Além das sutilezas que são comercializadas, não passam desapercebidas as pessoas que dominam algum tipo de habilidade e, com isso,  deixam um chapéu emborcado para receber contribuições dos mais surpreendidos.

O primeiro a se apresentar foi um argentino, que me lembrou Segovia, ao dedilhar com destreza, em seu violão cansado, Asturias. Ofereceu, em seguida, Piazzola, Gardel, Paco de Lucia e, até mesmo, para o deslumbre das maduras mulheres que ali passavam,  Roberto Carlos.

Nao ficou por aí. Eis que solta o violonista de rua, desta vez para delírio meu, o tema de Zorba. O meu tímido e improvável ímpeto de sozinho começar a dançar hedonisticamente como o Grego, foi levado a cabo por alguns germânicos que descansavam abaixo do Monumento ao Expedicionário.

Talvez estivessem eles despreocupados com o jogo da Alemanha, que aconteceria com a Argélia no Beira Rio. Ou, quem sabe, já estivessem comemorando a profecia da conquista do mundial.

Ciclistas, cadeirantes,  bebês e muitos cachorros testemunharam a dança. As testas franzidas e os sorrisos incontidos, como os meus, distinguiam aqueles que não tinham a menor noção de que se celebrava, daqueles que sabiam, respectivamente.

O argentino precisou descansar.

Próximo dali, se ouvia ainda uma uruguaia cantando o hino francês, acompanhada com um tambor. Em seguida, ofertou gracias a la vida. Piaff e Mercedes foram lembradas, como diferente não poderia ser.

Alguns passos adiante, compatriotas tocavam, cantavam e dançavam alegremente O Barquinho. Cantaram ainda mais bossa, em harmonia, com um tom de samba. Imagino que Vinicius sorriu e dançou junto, esteja onde estiver.

Se não bastasse, pequenos peruanos, sob os olhos cuidadosos de uma mãe, tocavam el condor passa e outros tons andinos; confrontando com a gaita e o violão elétrico de um rapaz que tocavam blues, convidativo para um bourbon, se não fosse ainda manhã.

Opções de gastronomia – até mesmo tapioca, acarajé, quentão e cachorros quentes com duas, três,  quatro ou mais salsichas –  se encontravam com facilidade. Até uma boa confeitaria estava ao alcance, apesar do nome, no mínimo, curioso: Maomé Doces Bárbaros.

E assim foi passando o dia… suave e despreocupado, na Redenção.

Dele me despedi com a impressão de que minhas transgressões estavam redimidas, ou, ao menos, esquecidas em momento, tamanha a leveza do domingo…

2 Comments

  1. Andrei Barros Correia

    Ao ouvir Zorba, dileto Bira, devias ter dançado! Anunciavas, no começo do dia, a catarse que se encontra num dia apenas.

    Saravá!

  2. Alcides

    El Condor Pasa é uma das canções mais belas e místicas que já ouvi. Se bem que, de misticismo, entendo muito pouco ou nada. Acho que continuarei assim. De beleza não sei. Depende muito do ouvinte ou do espectador. O que é belo para mim certamente não o será para o mestre Andrei, ainda mais quando a questão é música. Tenho um certo pendor para o rock. Pouco eclético eu sou. O mestre, por sua vez, é cosmopolita. Falando em rock, um quarteto dos mais prediletos meus, o mestre o considera um e mais três. Em que pese a crítica, eu a vejo de bom grado, porque existe um remanescente que ele aprecia. E o remanescente mostrou seu talento e valor. Confira abaixo:

    http://www.youtube.com/watch?v=14UOUwa8AZU

    Abaixo o link da versão original de El Condor Pasa:

    http://www.youtube.com/watch?v=pey29CLID3I

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