Moramos quase em frente ao grande terminal de integração, onde todos os ônibus de Campina Grande têm que passar. Daqui até lá são uns quatrocentos metros e é um local sempre cheio de gente. Barulhento, como todos os locais repletos, principalmente nesta terra de barulhos e gritos.
Porém, entre barulhos há deles que chamam a atenção, pois são barulhos invulgares. Um sujeito que conduz um carrinho de CDs está todos os domingos no terminal de integração dos ônibus. Todos os domingos, a partir de uma hora da tarde, ele põe a tocar uma música que me aborrece, mas não me irrita. Aborrece profundamente, é verdade, porque ela repete-se a tarde inteira, em volume altíssimo.
Mas, é extraordinário, é curioso, não deixa de ser incômodo, chega a ser cômico, mas deve ser mais que isso. Os versos dizem: Se converte Barack Obama, se converte Barack Obama, que o prêmio Nobel da paz não é teu, é de Jesus. Se converte Ahmadinejad, se converte Ahmadinejad…
Segue pedindo a conversão de meia dúzia de líderes nacionais a Jesus, seja lá o que o pedido signifique. Diz – é desconcertante – que isso e aquilo não são de fulano nem de beltrano, são de Jesus.
Essa toada triste serve-se da melodia de Para não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré! Assim, apropriando-se dessa canção, ou melhor, dessa melodia em que o verso condoeiro confunde-se com a melodia, a coisa parece mística de louco evangélico. Ninguém fica indiferente à sonoridade dessa obra de Vandré. Ele casou o tipo de verso ibérico antigo com o único ritmo que lhe seria possível. Essa canção assumiu significado político, para muito além do autor.
Pois sou obrigado a ouvir o sem-sentido do se converte Barack Obama, se converte fulano de tal, que o prêmio Nobel da paz é de Jesus, na melodia das Flores! Podia ser em inúmeras outras, mas o sujeito escolheu essa. E escolheu tocar a música a tarde inteira, todas as tardes de domingo, o que revela má estratégia de venda ou nenhum interesse em vender.
Esse sujeito conduz um carrinho com CDs, em que há a bandeira da Palestina! Quem é o sujeito que recorre a signos extremos, como são uma canção de religiosidade evangélica e moralista casada a uma melodia antiga e associada à insatisfação política de quarenta anos atrás? O sujeito que anda por aí com uma bandeira da Palestina. É um louco, provavelmente; não é um ladrão, certamente.
Em três ocasiões ele cumprimentou-me. Todas, as mais imprevistas e improváveis. Nelas, estava eu no carro, tanto conduzindo, quanto no banco do passageiro, com Olívia na direção. Passando devagar, ou saindo de um sinal recém aberto, o fulano que conduz o carrinho de CDs cumprimentou-me, com um aceno de mãos, vívido, dirigido a mim. Hesitante, cumprimentei-o ou, antes, retribui o aceno.
Nunca percebi bem porque os loucos me procuram e eles sempre o fazem. Não tenho medo de ser um igual, tenho medo de ser o extremo oposto: um sujeito a observar-lhes os modos e a querer mandar neles. Afasto-os, portanto, para não os ter próximos como objetos de assimilação ou de mando ou de jugo.
Mas, o cara cumprimenta-me sorrindo; ele já é meu íntimo e não posso dizer-lhe ó, filha da puta, põe a música mais baixo.
Andrei,
Excelente, isso é coisa de Finismundi.
Deves certamente te lembrar de “Zé Luís Lagrange: de pretenso a incompetente doido”. Prefaciaste divinamente o livro.
Cuida-te com o convívio desalertado com esses gênios ou daqui há uns tempos estarás te pronunciando “papa de Roma três vezes”; podes também, como Dr. Aluizio, ser convidado a fazer uma módica doação para uma nova igreja sincretista campinense e a fazer um discurso no dia da sua inauguração.
Se aceitares o convite para a inauguração, sugiro que peças emprestado ao zoológico um filhore de leão ou algum bicho exótico e o leve para testemunhar o teu discurso… como bem o fez um conhecido nosso em outros tempos.
Por intermédio de alguns gênios começaram e se ainda perpetuam muitos rituais religiosos; alisar a cabeça do leão e ganhar a salvação eterna pode ser um deles.
Grande abraço,
Sidarta
Doido não, só burro… ignorante, caso não goste da palavra. O cara não sabe qual é a melodia, nem as pessoas mencionadas na letra, muito menos como é a bandeira da Palestina e provavelmente nem sequer tá ouvindo a música. E os cumprimentos são ou carisma normal das pessoas ou tua barba e cabelo, hehehe.
Entendo perfeitamente sua indignação, hoje desfrutei de alguns minutos na integração ao som de “te converte Barack Obama” é uma onda mesmo. Mas sou evangéica e garanto que a Beldade absolutamente não representa a comunidade evangélica, acontece que doido tem por todo canto, o que podemos fazer. Para compensar gostaria de lhe apresentar alguns cantores evangélicos de qualidade como João Alexandre Gladir Cabral e Leonardo Gonçalves. Ah também tenho a sorte de atrair os lunáticos, doidos e deficientes, prefiro pensar que é simpatia mesmo!
Daniel,
Certamente, há muito de ignorância na conduta do cara. É provável que ele não perceba os significados segundos ou terceiros da melodia e que divulgue um estupro da música de Vandré.
Mas, acho que ele foi embalado pela tal melodia de procissão. Claro que Vandré embalava com som e letras, em um conjunto praticamente indissociável, mas o cara pelo menos escuta a música.
Claro, amenizo as coisas. Provavelmente, ele ouve só por ouvir.
Certamente, o cara não tem a mínima idéia de quem sejam e o que representem as figuras da canção. Quanto à bandeira da Palestina, tenho mais certeza ainda.
Rapaz, meus cabelos já eram. Hoje estão baixos como os de um soldado. Talvez seja a barba kkkkkkkkk
Rosa,
O que me incomoda bastante é o volume da música, que é altíssimo. Eu, embora quase totalmente surdo de um ouvido e gozando de menos de 100% do outro, incomodo-me bastante com barulho.
Concordo contigo que esse fulano não representa a comunidade evangélica.
Quanto a atrair os lunáticos, confesso-te que nunca cheguei a uma conclusão definitiva. Acho que preciso reler O idiota, de Dostoievki.
Andrei , adorei me senti em casa . Em Gravatá acontece coisa semelhante . O daqui também me cumprimenta muito feliz e eu sempre retribuo.