A constituição brasileira diz que a radio difusão de sons e de sons e imagens é um serviço público e que é prestado no regime de concessão. Ou seja, empresas de manipulação de massas, como a Rede Globo de TV, não são proprietárias senão de seus equipamentos, do ponto de vista jurídico-formal.
Esse serviço não deve ser visto sob a ótica da dicotomia entre estatal e particular e, sim entre público e privado, como adverte o professor Fábio Konder Comparato. Realmente, a abordagem errônea é proposta e estimulada pelos grupos que detém as concessões, para turvar a compreensão geral.
O serviço público é aquele que deve atender primordialmente aos interesses gerais da população e não é livre de quaisquer condicionantes a sua prestação. Suas balizas são finalísticas, portanto, e o encontro dos objetivos a serem atingidos passa pela captação da opinião dos destinatários sobre o que ele deve oferecer.
Decorre dessa natureza de serviço público que a programação de uma TV não é de livre escolha dela, como supõem quase todos. Não é porque não ocorre necessariamente uma correspondência entre os interesses do dono da estação de TV e os interesses públicos.
Os interesses dos donos das emissoras de TV giram, basicamente, em torno a dois objetivos: conquistar e fidelizar o máximo de espectadores e obter o máximo de lucro. O segundo objetivo depende do primeiro, que é o parâmetro para o custo dos espaços publicitários.
Além desses objetivos básicos, as TVs podem servir a interesses políticos, seja por fidelidade ideológica àlgum dos lados, seja por almejarem favores estatais. Nenhuma dessas três linhas de finalidades coaduna-se com o que se espera de um serviço público, que não se orienta a imbecilizar massivamente, vender qualquer coisa e apoiar partidos políticos.
Os concessionários de TV têm um enorme poder de manipulação por razões óbvias. Mantém a seu serviço especialistas em moralismo udenista que fornecem argumentos contra qualquer tentativa de dar-lhes algum caráter de serviço público.
Seu discurso – quase histérico – é que se pretendem impor restrições incabíveis à liberdade de expressão, sempre que se propõe alguma discussão sobre as finalidades das concessões. É um discurso estúpido, porque as restrições aplicáveis decorrem da própria natureza do serviço, conforme estabelecido na constituição.
Quaisquer direitos, na verdade, pressupõem restrições e não há deles absolutos. As restrições podem ser explícitas ou implícitas na própria conceituação de algum instituto. No caso das transmissões de TV, incidem as restrições clássicas da lei penal, notadamente as que sancionam delitos de calúnia, injúria e difamação.
Além dessas – que se aplicam a qualquer meio de comunicação – existem aquelas decorrentes da natureza pública do serviço, ou seja, de suas finalidades. Aqui, fica patente que a liberdade de escolha da programação oferecida pode sofrer as restrições que não se encontram, por exemplo, para jornais ou revistas, porque estes não são serviços públicos.
Não é finalidade pública incutir nas pessoas formas elementares de maniqueísmo político e reduzir o pensamento crítico a níveis baixíssimos. Não é finalidade pública fazer proselitismo político à guisa e sob pretexto de se fazer jornalismo. Não é finalidade pública estimular preconceitos de raça, classe social, região geográfica, gênero, idade e religião.
Essas ações, que não visam a finalidades públicas, são precisamente as desempenhadas pelas TVs, segundo suas próprias e únicas motivações. Atendem somente aos interesses mediatos dos proprietários das estações e não foram objeto de qualquer consulta pública.
Aqui, deve-se mencionar outro argumento falso usado pelas TVs em defesa da fixação irrestrita de suas programações. Falso e mal-intencionado é o argumento de que as opções públicas são feitas por aceitação da programação oferecida. No consumo da programação não há propriamente uma opção, apenas uma aceitação em mão-única.
A similaridade imensa das programações das TVs prova que a adesão dos espectadores não tem natureza de opção, porque as alternativas quase inexistem. Todas as programações tratam de oferecer pacotes fechados de informações simples e prontas, ou seja, na medida para retrair ao máximo o pensamento.
Deveria haver órgãos – conselhos, comitês ou qualquer nome que se queira dar – cuja composição representasse toda a sociedade, a partir de critérios sociais, econômicos, geográficos, de idade, para se estabelecerem padrões mínimos de finalidades públicas e seus reflexos nas programações televisivas.
A isso não se dá o nome de violações à liberdade de expressão, senão por pessoas mal-intencionadas ou profundamente ignorantes. O nome correto de uma atitude tal seria controle democrático finalístico de um serviço público. O mesmo, como já insisti, não se aplica a medias que não se sujeitam a concessões públicas. Nessas, pode-se dizer o que quiser, como quiser, desde que não se cometam os delitos contra a honra previstos em lei.
Outra saída seria retirar-se da constituição a norma que faz da radiodifusão um serviço público e, então, tornar plenamente legal o vale-tudo que já se pratica. Teria outro efeito desejável uma alteração legislativa dessas, porque deixando de serem concessões, o mercado estaria aberto a todos.
O que não é desejável é continuar-se uma ilegalidade flagrante, defendida por meio da habitual hipocrisia e dos argumentos rasteiros e levianos que as TVs fornecem em benefício próprio, por meio de uma concessão pública.
O objetivo do estabelecimento de controles finalísticos pode ser parcialmente atingido por outros meios. Seria o caso de ampliar-se bastante o acesso à internet no país, a preços baixos. Esse meio quase irrestrito de difusão de informações pode ensejar um aumento da análise crítica e uma diminuição da penetração das TVs.
Seria necessária uma real universalização, ao contrário da fortíssima concentração que se tem, hoje, no Brasil. Todavia, pode-se antever um efeito indesejável dessa provável queda de audiência das TVs por conta do aumento da internet: baixariam o nível intelectual de suas programações ainda mais, na busca da manutenção.
No fundo, é inevitável voltar ao tema do controle social finalístico e apontar que todos os outros serviços públicos têm parâmetros de verificação de desempenho e têm restrições claras à atuação dos concessionários.
Por exemplo, todos sabem quais são os parâmetros para se avaliar a venda de energia elétrica. As concessionárias desse serviço são avaliadas a partir de índices de disponibilidade e de interrupções do fornecimento. Por outro lado, ainda nessa linha de exemplo, sabe-se que uma concessionária de energia elétrica não pode cessar o fornecimento a um hospital segundo sua vontade, pura e simplesmente.
Ou seja, é da natureza do instituto serviço público ter parâmetros de verificação da sua prestação e sofrer restrições e limitações claras, tudo isso precisamente por serem públicas as suas finalidades. Quem queira atuar sem tais restrições, deve fazê-lo por outros meios de comunicação, onde a liberdade de iniciativa é mais ampla, dadas as suas finalidades eminentemente privadas.
Aqui, lembro-me de algo em que o engenheiro Leonel Brizola sempre esteve certo. Ele dizia que era preciso cassar a concessão de TV da Rede Globo, porque está sempre atuou contra o país. Eu retificaria apenas para dar a esta corporação mediática a possibilidade de se adequar às regras, embora não creia que seja realmente possível.
Já passou da hora da sociedade enfrentar esse debate. Os meios de comunicação, nesse priapismo midiático, são um verdadeiro atentado às instituições. Não vejo no governo, qualquer que seja, disposição para o debate. Lembre que o enfrentamento desse tema em outros países custou ao governo enfrentar todos os demônios de denuncismo, crises fabricadas e manipulação da vontade da população. Lula, que tinha capital político para tanto, não ousou. Ainda mais que o pt aposta numa total despolitização da sociedade, o que pode ser conveniente no momento, mas pode custar caro quando as crises vierem, ou quando o berlusconi tupiniquim aparecer. Penso que a saída para o enfrentamento desse assunto será pela asfixia empresarial. Reduzir aos poucos as verbas publicitárias federais, dificultar o acesso a verbas estaduais e municipais, dificultar a publicidade de cigarros, bebidas, medicamentos, etc, exercer rigoroso controle fiscal e financeiro e atuar na oferta de alternativas para a população, e aí vale internet, dvd, som, jogos eletrônicos, e-book, tv a cabo, tv pela internet, bolsa-teatro, bolsa-cinema, bolsa-esportes, bolsa-motel, bolsa boneco(a)-inflável, etc. O problema é que um bicho forte desses não se deixa matar sem luta.
Não houve, realmente, qualquer ação governamental que induzisse o debate mais sério da questão. Isso prova o quanto o assunto é fraturante e o quanto as corporações mediáticas estão dispostas a reagir.
Prova também que diante de interesses muito fortes, garantias legais não passam de papel molhado.
Lula achou que não valia a pena o enfrentamento, porque afinal ganha sem precisar desse combate.
Mas, algum dia terá que ser realizado. Como dizes muito bem, Julinho, a aposta na despolitização é arriscadíssima, porque pode aparecer um berlusconi mais articulado que Collor.
Eu não assisto tv e não sinto a menor falta desse aparato na minha vida. Percebo que tem pessoas que ficam depressivas quando não conseguem acompanhar a novela e o tele-jornalismo da rede bobo. É como se retirassem o chão debaixo dos pés delas.
Reportagem