Se o triunfo da massificação foi um projeto deliberado de poder, terá sido o mais engenhoso e pérfido já levado a cabo. Sempre houve poder, dominação, dominantes e dominados, evidentemente. Mas, os meios e as estruturas sociais para o exercício e manutenção dos poderes tornaram-se realmente diferenciados, a partir dos finais do século XIX.
A violência é o meio de domínio por excelência e pode ser praticada fisicamente ou economicamente ou ainda juridicamente. Aqui, entra em cena algo bastante sutil, a violência aparentemente contida em uma forma assumida como civilizada, padronizada, conformada consensualmente. E aqui, sobressai a extrema similitude do jurídico com o propagandístico.
A violência física e a econômica são muito concretas, facilmente tangíveis, evidentemente percebidas. A violência embalada em discurso e normas é pura confusão, todavia. O jurídico e a propaganda são as cortinas-de-fumaça mais perfeitas que há para esconderem a violência real e fazerem a vítima não perceber onde está.
Que a massificação existe é algo passível de poucas dúvidas. Pode ser enunciada de várias maneiras teóricas e também mediante imagens, metáforas. Eu diria que uma delas é aquela do teatro em que a platéia é convencida de que tanto faz estar em qualquer dos lados do teatro. O espectador é convencido de que poderia estar, indistintamente, na platéia ou no palco, que não há diferenças de posições, nem de competências.
O espectador no palco, por mais que creia ser ator – sem saber como – é apenas espectador achando que é outra coisa. Acontece que a subida do espectador ao palco destrói o espetáculo, porque ele é incapaz de ser ator. Ele acredita, porém, no que lhe disseram, ou seja, que é muito capaz e que pode e deve ser protagonista. Sente-se afagado por essa elevação de espectador a protagonista.
Claro que o espectador pode tornar-se em ator, mas deve seguir um roteiro, pois não basta crer que pode. É mesmo desejável que vise ao protagonismo, que conheça os caminhos da representação, que se disponha a segui-lo e aos esforços que ele pressupõe. Mas, subir ao palco pura e simplesmente apenas acaba o espetáculo e rebaixa os atores.
Quando todos crêem que são os protagonistas, que são os felizes destinatários de um mundo a seu serviço, embora nada tenham feito para merecerem tamanha distinção, na verdade jogam-se na vala comum da dominação mal percebida. São observados pelos donos do teatro, que mantém a sua propriedade, agora, tornando o teatro em comédia enorme e desencontrada.
Realmente, a melhor maneira de um grupo de relojoeiros manter-se exclusivo é fazer crer aos demais que eles podem produzir relógios, que é a coisa mais fácil do mundo, que não se preocupem em estudar como se fazem relógios. Claro que eles não farão relógios, mas comprarão relógios, felizes e crentes de que se trata de alguma banalidade que, se quisessem, fariam.
Uma das maiores perfídias dos últimos tempos foi a idéia de que a imprensa é um setor ocupado em dar informações imparcialmente e de que tem algum respeito pelos destinatários das informações. Esse respeito inexiste, porque o domínio não respeita as massas profundamente ignorantes. Outra, foi que o direito é um conjunto de regras que é cumprido pelos que as redigem.
A imprensa não é imparcial porque a imparcialidade não existe. Nisso, não há problema algum, desde que haja informações e desde que o destinatário das informações saiba que há lados e interesses. O problema existe se o público acredita em imparcialidade mediática, enquanto ele mesmo pratica o maniqueísmo mais rasteiro, porque afinal não é capaz de sair da dicotomia bom e ruim.
Levado a achar-se importante e julgador suficiente de tudo quanto se diga – desde a vida sexual das abelhas ao programa nuclear da Coréia do Norte – o público compõe-se de indivíduos que projetam suas díades pessoais bom e ruim em tudo quanto se lhe apareça à frente.
A grande jogada – para recorrer à terminologia vulgar e mais precisa – foi levar o público a crer que decide, que é importante, que detém competências, que é o destinatário privilegiado das mensagens do poder. Ele, o público, não é nada disso e recebe um bombardeio diário de desimportâncias várias.
O resultado é que está completamente anestesiado e incapaz de diferenciar uma nevasca de um morticínio, um jogo de futebol de uma decisão de lançar uma bomba atômica.
Assim, oferece docilmente sua adesão à própria submissão, porque não a vê. Desde que tenha como tomar dinheiro emprestado para comprar o telefone mais recente, que possa seguir uma moda, que possa emitir alguma opinião desencontrada e clamar por liberdade de expressão, tudo está muito bem. Acha-se seguro, mas a roda gira somente para ele.
Essas considerações, fi-las a propósito das reações ao vazamento de comunicações diplomáticas norte-americanas. São coisas, em sua enorme maioria, que se sabem.
Os EUA manipulam tribunais, como na Espanha, para obter julgamentos favoráveis ao seu campo de concentração de Guatánamo. Escondem do público mas falam francamente entre si do morticínio de civis no Iêmem, por conta de um bombardeio. Desdenham da Inglaterra, que se esforça para destacar sua relação fraternal com os desdenhosos.
Revelam que a realeza saudita pediu para os EUA atacarem o Iran, embora também revelem que não há qualquer ameaça tangível. Revela o desdém arrogante com vários líderes, tratados de forma aviltante e ridícula. Revela que a Sra. Clinton pretende ter espiões, mais que diplomatas a seu serviço.
Julian Assange, o mentor da Wikileaks, que fez os vazamentos dos documentos publicados pelo El Pais, The Guardian, Le Monde e Der Spiegel é um benemérito. E, por sê-lo, será perseguido infatigavelmente e provavelmente preso ou assassinado.
Mas, impressionante mesmo é a confiança dos detentores do poder na estupidificação geral. Confiança que geralmente revela-se uma boa aposta, porque o vasto público é realmente estúpido e encontra-se anestesiado. Somente essa crença explica que os EUA, por meio da Sra. Clinton, diante da revelação de suas imposturas e crimes, digam que as divulgações agridem a comunidade internacional.
Ou seja, reagem com mais impostura, hipocrisia e mentira à revelação desses móveis sempre presentes nas suas ações. E, à exceção de meia dúzia de pessoas, essa nova dose de mentira e impostura, será a reação correta, porque a mentira é o dia-a-dia do público massificado.
O grande público massificado ficará com a impostura da Sra. Clinton e com a indignidade dos líderes que foram tratados de forma aviltante. Porque o grande público massificado é impostor e indigno e não tem a menor percepção de que o dinheiro que os contratantes da Sra. Clinton lhes empresta para que se julguem suficientes pode ser dado ou retirado.
Enfim, se essa massificação foi um projeto deliberado, deve ter tido a participação do Príncipe do Mundo, que apenas pessoas não seriam capazes de tão grande obra.