O ex-general e ex-ditador da Argentina entre 1976 e 1981 deu entrevista à revista Cambio 16, espanhola. Ele encontra-se preso, atualmente, a cumprir sentença perpétua por inúmeros homicídios cometidos no exercício do poder.
Li a entrevista no blog do Emir Sader, que propõe uma citação de Shakespeare, como prévia à suas considerações e à transcrição da entrevista propriamente dita. A citação é de uma frase de Hamlet: Há lógica na loucura.
De minha parte – sem discordar de Shakespeare – digo que a loucura é a lógica levada às últimas consequências. Assim, há mesmo lógica na loucura, há demasiada. Discordo, todavia, de Emir Sader quanto a ser questão de loucura a capacidade de Videla articular o pensamento e dizer as coisas claramente.
Diz as coisas claramente, o que não afasta o dizer as coisas parcialmente e segundo um ponto de vista e um conjunto de interesses. Ele defende-se na situação do homem que aparentemente está perdido totalmente, mas é o homem que não se acredita ainda irremediavelmente perdido. Sim, porque ele defende-se na forma clássica, ele acusa quem buscou sua punição; ele age no âmbito político, que afinal é o único das ações.
Videla diz que sua situação perdeu-se com a ascensão dos Kirchner, o que é verdade e é honroso para estes. Diz que os Kirchner buscaram puni-lo – fazê-lo cumprir a sentença a prisão perpétua em um cárcere e não em casa – por revanchismo, o que é um sem-sentido.
É sem-sentido porque toda punição é um revanchismo. Videla é desonesto ou ignorante nessas suas considerações, porque finge ou desconhece um dos caracteres sempre presentes em todas as penas: a retribuição. Ele gira em torno ao princípio de identidade e, ao dizer que A=A, diz nada.
É profundamente desonesto ao reivindicar princípios e conceitos jurídicos que a ditadura argentina não prezou minimamente. Ora, o revanchismo que move o Estado argentino contra ele é o mesmo que moveu a ditadura contra milhares de cidadãos argentinos e estrangeiros, com duas diferenças nada sutis: 1 – ele não será executado por revanchismo, ao contrário do que fez; e 2 – os punidos são uma pequeníssima fração dos assassinados pela ditadura.
Videla não é louco; é patife sem controle. Em alguns momentos da entrevista é precioso, porque está em situação desfavorável e já perdeu a ocasião de dar-se a mentiras muito evidentes. Esses momentos levam a comparações com os ditadores brasileiros, que sempre mantiveram um nível de hipocrisia muito mais elevado que o argentino.
Videla diz que eles deram um Golpe de Estado na Argentina, sem meias palavras. Que eles obtiveram do Presidente Luder – interino após a queda de Eva Perón – decretos que eram mais do que pediam e eram verdadeiras licenças para matar.
Obtiveram as licenças e mataram, está claro. Mataram muitos. E, diz mais que chegaram a tal situação com forte apoio do empresariado argentino e da Igreja. Ou seja, instados a matarem mataram por vontade, dever e autorização dos que mandavam: os empresários e a Igreja.
No Brasil, os remanescentes da ditadura não dizem que deram um Golpe de Estado em 1964, não dizem que contaram com apoio da classe empresarial e da Igreja e, principalmente, não dizem que receberam dessa gente licença para matar e a utilizaram.
No tribunal, quando seu caso foi reaberto, Videla teve ocasião de dizer que todos os seus subordinados agiram por ordens suas, ou seja, assumiu pessoalmente milhares de homicídios… Claro que ele sabia-se já perdido, mas é uma honradez na perfídia que devia por a pensar muitos coronéis e delegados de polícia brasileiros.
Aqui, cultiva-se a confusão, a culpa difusa, a mentira, a falta de coragem. Assassinos e torturadores contumazes fazem papéis de covardes, a ponto de negarem os fatos.