Recentemente, voltou à evidência a discriminação que alguns brasileiros, notadamente paulistas e gaúchos, nutrem por nortistas e nordestinos, em geral. O que existia sem precisar de fermento, intensificou-se a partir de estímulos fornecidos pela recente campanha presidencial derrotada do candidato José Serra.
Os casos paulista e gaúcho são diferentes em pontos que merecem ser destacados. Existe no Rio Grande do Sul um separatismo relativamente forte e sincero. Acham-se outra coisa, embora pareça-me que não percebem que essa outra coisa e esse afã separatista os faria parte da Argentina, inevitavelmente. É algo mais sério, por um lado, e mais ridículo, por outro.
No caso de São Paulo, há uma discriminação que viceja nas classes médias contra nordestinos, algo mais ligado à superficialidade e à incultura que a qualquer outro fator, porque São Paulo não tem grande história e tradição, como o Rio Grande do Sul. Não se trata propriamente de um separatismo fundado em tradições, trata-se de uma tolice oportunista, porque querem manter o restante do país a trabalhar para eles.
Tanto antes das eleições, como depois do pleito, a exposição pública da discriminação fortaleceu-se pelo acirramento que um partido reputou estratégico. Passadas as eleições, seguidores do grupo derrotado assumiram a discriminação regional como forma de explicar a derrota.
A partir dessa visão claudicante da realidade, propuseram que as partes mais pobres do país escolheram a presidente Dilma e as partes mais ricas teriam escolhido o derrotado Serra. É falso esse corte interpretativo. A vitória de Serra nas regiões de São Paulo e do Sul foi muito mais discreta do que seus seguidores querem acreditar. Por outro lado, a vitória de Dilma nas regiões mais pobres foi realmente avassaladora.
A discriminação de nordestinos e nortistas em São Paulo é historicamente recente. Realmente, há cento e cinquenta, duzentos, trezentos, quatrocentos anos, acontecia algo diferente. Não havia propriamente uma discriminação em sentido inverso, havia absoluto desprezo por qualquer coisa que não fosse do Rio de Janeiro, de Recife ou de São Salvador da Bahia.
Paulistas ou bandeirantes, por muito tempo, eram quase sinônimos para bandidos sem limites, salteadores indisciplinados, caçadores, matadores e escravizadores de índios. Gente que deu muito trabalho à coroa e aos agentes públicos e cidadãos que gostavam de alguma ordem e de alguma vigência das leis.
É muito interessante procurar saber o que os jesuítas – com grandes pendores para cronistas – pensavam dessa gente selvagem, escória social da colónia, cuja presença era a certeza de confusões, roubos, estupros, morticínios e aprisionamento de índios. Os governadores e capitães-mores das províncias ricas não os queriam por perto e quando os contratavam como mercenários cuidavam de fazê-los voltarem o mais rápido possível para suas terras de origem, hoje o centro telúrico do mundo.
Se houve algo que se aproximou de uma nobreza – uma nobreza de espada, como dizem os franceses – na colónia, foi a aristocracia rural pernambucana, carioca e bahiana que conjugou interesses e expulsou os holandeses do nordeste do Brasil e seguiu adiante na empresa, em Angola. Essa gente carregou e seus dispersos remanescentes ainda carregam um profundo orgulho e sentimento de superioridade, decorrentes da grande e improvável vitória militar obtida.
Essa mesma gente passou a ter um profundo sentimento de injustiça com relação à coroa, que minimizou seus valores bélicos e deu-lhes apenas metade dos privilégios na administração do vice-reinado, impondo-lhes a convivência com uma pequena nobreza de robe, de origem na fidalguia urbana portuguesa. Esse sentimento está na origem de sua decadência e de sua propensão revolucionária no século XIX: 1817, Confederação do Equador, Praieira, todas em Pernambuco.
Mas, de paulistas ninguém cuidava, nem se ocupava de ter com eles algum preconceito. São Paulo é uma zona de terras férteis, cujo cultivo principiou-se a partir do Vale do Paraíba, ainda no Rio de Janeiro. Enriquece propriamente a partir do século XX, por causa do café. O Brasil era café e os dinheiros dessa cultura riquíssima puseram o país a seu reboque e levaram a industrialização também para São Paulo.
Pensando-se com toda a calma, a discriminação nutrida por alguns paulistas contra nordestinos é algo profundamente tolo. As migrações internas para São Paulo supriram a mão-de-obra que lá não havia, quando era mais necessária nos grandes impulsos da industrialização e da construção civil.
Não contaminaram com deselegância algum ambiente repleto de pessoas sofisticadas e cosmopolitas, porque São Paulo não era minimamente sofisticada ou cosmopolita, embora fosse rica. Não significaram supressão de trabalho porque foram exatamente suprir a falta de trabalhadores.
Hoje, é alarmante o nível de agressividade que certos grupos têm relativamente aos nordestinos, em São Paulo. Não é coisa desprezível e certamente é indicador de profunda ignorância e aviltamento, porque cultiva-se preponderantemente no meio de grupos de classe média, incultos e incapazes de grandes conquistas e, ademais, muito receptivos àlgumas formas de fascismo.
Eis que, depois das eleições, vieram à tona trocas de mensagens em redes sociais na internet, de conteúdo marcadamente preconceituoso. O episódio mais exemplar foi uma mensagem de uma jovem que incitava as pessoas a fazerem um bem a São Paulo, matando um nordestino afogado.
Essas condutas, sob a perspectiva estritamente legal, caracteriza dois crimes: racismo ou preconceito e incitação à pratica delituosa. Podem acarretar inclusive prisão em regime fechado de cumprimento. À vista do crime cometido, o Presidente da Seccional de Pernambuco da Ordem dos Advogados do Brasil encaminhou ao Ministério Público representação pedindo a persecução criminal da jovem paulista incitadora de assassinatos de nordestinos.
Foi uma medida auspiciosa do Presidente da Ordem porque, além de serem crimes mesmo, convém tentar estancar a fermentação dessas manifestações que logo tendem à exacerbação e à disseminação do ódio sem razões muito tangíveis, ou seja, de postura proto-fascista.
A enorme maioria das pessoas razoáveis repudiou as manifestações racistas e preconceituosas, até mesmo as pessoas que as estimularam como modo de ação eleitoral, durante a campanha. Realmente, não convém terem seus nomes vinculados a coisa tão vil, embora tenham reputado conveniente estimular a vilania quando acharam interessante.
Curiosas mesmo são algumas reações de um e outro sujeito da mesma origem daqueles que a jovem paulista queria assassinados. É algo como a solidariedade da vítima com o algoz, mas é mais profundo. Tem um quê de subserviência, de tentativa de identificação com o algoz e de diferenciação com os semelhantes e, claro, de profundo oportunismo e vontade de obter destaque pelo escândalo.
Um e outro sujeito de alma subalterna e vontade de protagonismo pelo escândalo apressou-se a minimizar os crimes cometidos pela jovem paulista por meio de redes sociais. Como se fosse coisa desprezível. Sucede que isso só pode ser desprezível pela ótica do criminoso, então o fulano que minimiza o fato identifica-se à conduta delitiva, na verdade.
Procede a partir de um julgamento equivocado, segundo o qual a questão seria mais social e econômica que cultural. Ou seja, aceita que o preconceito dá-se entre mais ricos e mais pobres e põe-se ao lado dos mais ricos. Está ao lado do preconceituoso, como a dizer que ele mesmo exerce tal preconceito relativamente aos seus conterrâneos mais pobres.
Não percebe que a questão de fundo é muito mais cultural que propriamento social e econômica. Não percebe que pode estar um dia em São Paulo, com toda a indumentária de novo-rico, relógio rolex no pulso, modos afetados, tentativa de modificar o sotaque, mas que será reconhecido, ele mesmo o solidário com o algoz, como um nordestino. Bastará que abra a boca e diga qualquer bobagem.
E provavelmente seguirá sem perceber que ele é o que fala, identifica-se pela forma com que fala, que não perderá seu sotaque nem mesmo se tentar transmudar-se em uma caricatura absoluta. Mas tentará, porque sua alma é uma caricatura, porque seus valores são um adorno da sua ambição, porque seus elementos de identificação são algo que ele quer suprimir.
Não compreendeu que o preconceito regional é um movimento pequeno-burguês exercido por pessoas exatamente iguais a ele, ou seja, sem identidade, oportunistas, superficiais, ambiciosas de servir ao chefe que tenha o rolex maior no pulso, esse o grande critério de hierarquia. Não compreendeu que sendo iguais na pusilanimidade- senão não se identificariam – são ainda desiguais no critério fundador do preconceito: ele, a vítima subserviente, não fala como o algoz, embora tente.