Neste momento em que me ponho a escrever tenho dúvidas se já não disse o mesmo, antes. Parei a pensar e não saí da dúvida, resolvi não verificar. Busquei lembrar e não consegui, talvez por ter pensado tanto nisso que pareceu-me ter escrito já.

Estive por mais de dez anos em um colégio jesuíta, em Recife. Era enorme e no bairro da Boa Vista. Tinha prédios, uma igreja a Nossa Senhora de Fátima, dois campos de futebol, três quadras para handebol, basquete e futebol de salão e vólei.

Tinha árvores: mangueiras enormes ao redor dos grandes espaços vazios, que eram os campos de futebol. Chamo-os assim porque não eram gramados, eram campos de terra. Não perderia a ocasião de chama-los relvados, assim poeticamente, se fossem.

Morava mesmo em frente ao colégio, precisamente em frente à parte mais histórica dele, o Palácio da Soledade, ou Palácio dos Bispos, ou dos Governadores. Este prédio acolhia as classes do que se chamava curso científico, os três últimos anos do ensino regular antes de alguma faculdade.

À distância de um atravessar de rua, ia muito ao colégio à tarde, embora sempre tenha tido as classes pela manhã. Íamos jogar bola, futebol, no campo grande em frente ao prédio do ginásio.

O futebol estendia-se até ao terrível momento em que já não é tarde nem noite. Nessa altura, jogávamos por insistência juvenil, porque já não se via bola nem muita outra coisa.

Viam-se as mangueiras grandes e ainda a fazerem tímidas e escuras sombras e os morcegos que voavam de uma a outra árvore. Morcegos herbívoros refestelavam-se de mangas e desviavam-se das gentes, naquele voo estranho de mamífero.

Essa hora de lusco-fusco é para mim tristíssima. A piorar havia uns auto-falantes da universidade católica, contígua, também dos jesuítas, que tocavam uma ave-Maria às seis horas. Era angustiante essa hora e essa ave-Maria.

O lusco-fusco na Boa Vista sempre foi para mim parecido, estivesse no colégio a jogar bola, estivesse na rua, em outros tempos, já depois de sair do colégio.

Não sei se no colégio era mais triste que depois, ou antes ao contrário. Imagino que a memória mais antiga e juvenil tenha fixado o que eram as realidades associadas àquela hora de transição. As mangueiras, os morcegos, o futebol interrompido pelo escurecimento, minha pouca idade.

Não me entristecem mais os lusco-fuscos, como faziam antes, mas sei o que eles são ou, melhor dizendo, sei o que eles foram e lembro-me de suas imagens, porque é difícil lembrar de sensações.

Quase trinta anos depois – e queria saber quantos anos vive uma mangueira – o lusco-fusco entristeceu-me. Não é que seja ruim, as palavras é que não são suficientemente precisas, mas era parecido com outros crepúsculos.

Sai da residencial, dirigi-me a um mercadinho perto, para comprar vinho. Resolvi antes dar uma volta à quadra, para quê não sei, talvez para ter a sensação que tive.

Passei em frente a dois colégios, mas isso não basta, como não bastam só a hora ou só os morcegos, ou só as mangueiras, que aqui não há. O lusco-fusco entristeceu-me aqui em Braga, hoje.

Durante um ano em que aqui estive não me ocorreu isso, embora soubesse que era aquela hora estranha já conhecida. Sabia de memória e de razão, mas não sentia os efeitos, que, adianto logo, não são qualquer tragédia.

Mas, a linguagem é muito limitada. Como vou dizer que era e não era o efeito do lusco-fusco de Recife, de há vinte e tantos anos? Sim, porque não era, porque não é há vinte e tais anos e não é em Recife e não há mangueiras, nem morcegos. E, no entanto, é uma percepção parecida, embora não angustiante.

E o que é? Vou pensar.