A marca pela diferença é atitude social. Ela precisa de indivíduos adultos – ou semi-adultos – reunidos em grupos. Adultos porque as crianças pré-púberes diferenciam em termos individuais absolutos, pouco induzidos por valorações sociais: aqui, está-se em nível ainda muito subjetivo. A evolução biológica e a sociabilização conduzem à marcação social.
O termo marca utiliza-se aqui com nítida significação de selo negativo, ou seja, marca-se alguém ou um grupo para evidenciar juízo de valor negativo e, se possível, de exclusão. Fica claro que é um dos vários mecanismos de obtenção e manutenção de poder em sociedade.
Não me parece que haja sociedades menos tendentes à marcação social que outras, até porque são constituídas da mesma matéria humana. Suas diferenças estruturais operam dentro do limite material que é a mesma constituição básica. Quer dizer, vários arranjos são possíveis com pessoas, mas todos eles limitados pela circunstância de sua constituição. Da mesma forma, podem-se fazer várias coisas de pedras, mas nada além dos limites da pedra.
É possível identificar, todavia, modelos estruturais sociais em suas várias etapas de desenvolvimento. Portanto, é possível perceber a mudança dos padrões de marcação social, até como uma espécie de maneira de datação de uma estrutura social. Claro que isso pressupõe a existência de modelos culturais mais ou menos uniformes, a caracterizarem que um grupo encontra-se em uma determinada linha civilizatória.
As diferenças, obviamente, dependem da proximidade com que se vêem os objetos. As formas de vida contemporâneas brasileira urbana e dinamarquesa urbana podem ser muito diferentes, observando-as de próximo. Se, todavia, afastamos a lupa e tomamos uma distância que permita colocar no campo visual a Indonésia, percebemos que as diferenças reduzem-se bastante entre os dois primeiros exemplos e tornam-se mais destacadas em relação ao terceiro.
Por isso, fala-se em civilizações, aqui sem qualquer juízo de valor, apenas como taxonomia psicológica, social, econômica, religiosa e política. Classificação a partir de raízes comuns e semelhanças e dessemelhanças, maiores ou menores. E os grupos civilizacionais podem encontrar-se em estágios diferentes de uma marcha que, se não é muito previsível, ao menos atende a certas probabilidades, devido às suas semelhanças.
Falar em estágios não significa dizer que as marcações sociais que lhes são próprias caracterizam uma evolução valorativa, senão que são diferenças, pura e simplesmente. Ou seja, o termo evolução tem aqui um sentido mais propriamente cronológico, ou histórico, embora não sejam conceitos iguais, tempo e história.
As marcações são prisões inescapáveis das maiorias. Sem fazê-las, sentem-se inseguras, impotentes, sem chão que pisarem. Como quero apontar os juízos de valor meus, deixo claro que o ser modo de agir das maiorias qualifica-lhes como um meio tacanho, na medida em que comuns e mais frequentes hábitos sociais são os que revelam menores usos das capacidades humanas. Assim é, mesmo que pareça desagradável a idéia de que a excelência implica minoria.
As maiorias marcam para identificar – a si e aos outros – para dominar, para excluir, para compreender o mundo em que vivem. Trata-se, portanto, de uma maneira de referenciação e de localização social. A partir de um ponto – de um complexo de atitudes verificadas na maioria – sabe-se identificar o ponto desviante e apontar esse desvio, convidar ao retorno à curva maioritária e, caso resulte falha a tentativa anterior, distinguir e punir socialmente com a marca da diferença.
A marca social implica que o qualificativo seja negativamente apreciado. Evidentemente, no sentido contrário, o sistema de marcação busca a todo custo evitar que os selos tornem-se inertes axiologicamente. Nesse momento, penso especificamente na marca da homossexualidade.
As pessoas em sua maioria têm avidez por compreender as outras segundo seus modelos. Não têm avidez pela compreensão, mas pela apreensão dos fatos sociais segundo as formas pré-estabelecidas de que dispõem. Querem, em outras palavras, saber em qual prateleira psico-social devem por uma pessoa e seu comportamento. Se não encontram o compartimento adequado, partem para marcar o diferente e marca-lo negativamente.
A necessidade de marcar negativamente tem uma interessante condicionante psicológica, além das previsíveis sociológicas: o ser comum, tacanho, sente-se pessoalmente ofendido por haver categorias que não caibam especificamente nas poucas prateleiras que seu cérebro tem. Algo como uma direta acusação de tacanheza, que deve ser repreendida.
No modelo civilizacional de matriz grega e monoteísta cristã, a marca da homossexualidade é negativa. Em diversos grupos inseridos nesse modelo, todavia, verifica-se que a marca persiste, embora adquira certa inércia valorativa e pareça apenas descritiva. Pode-se observar, nestes últimos, que o selo existe, embora não queira significar necessariamente a diferença negativa.
Há um elemento sutil que desponta nessa marcação e ele apresenta-se nítido em sociedades de recente transição de predomínio de cultura rural para cultura urbana, como dá-se com o Brasil. Trata-se da negatividade da marcação como homossexual, usada sem precisão e com propósito punitivo social exclusivo.
A utilização de uma marcação precisamente corresponde à sua adequação à conduta da pessoa marcada. Assim, chama-se homossexual – advirto que renuncio à utilização dos termos vulgares e à noção de que conferem verossimilhança àlgum texto – àquele que tem práticas sexuais voltadas a pessoas do mesmo sexo e, porque o termo é escasso de significado, àqueles que têm posturas homoafetivas, também.
Ou seja, na hipótese da marcação precisa, a maioria identifica o homossexual evidente para puni-lo, por diferenciação clara para com ela. Chama pelo nome uma conduta que verifica diferente, para marca-la. No limite, aceita-a criando uma prateleira cerebral para coloca-la, no lado em que são colocadas as coisas que reputa perigosas.
Essa forma, acima falada, é a pura marcação. Tacanheza que não impede a existência de outras maiores. As maiores podem fornecer o material da acusação da maior tacanheza, aquela que vem repleta de ignorância, indisfarçável.
Ocorre que o diferente nem sempre é facilmente classificável. E ocorre também que qualquer diferença é ameaçadora, até a indiferença. Logo, a indiferença a certas práticas e valores das maiorias precisa ser marcada. Aqui, volta um aspecto principalmente psicológico, ou seja, precisa ser marcado o que parece infirmar as verdades da maioria. Marca-se por reação do que se julga uma acusação.
Pouco importa, para a marcação social, que as condutas do marcado não estejam orientadas para o confronto do modelo maioritário. O confronto existe pela simples diferença, independentemente de aspectos volitivos. As maiorias sociais não punem pela vontade, mas pela simples diferença, que impede a apreensão de uma conduta por mentes comuns.
Assim, muitas vezes, a rejeição a práticas frequentes é tomada como rejeição à maioria. Esta, a maioria, precisa qualificar para si a rejeição e fá-lo a partir de critérios subjetivos e coletivos, marcando algo meio difuso com o selo que utiliza para negativar o que consegue distinguir mais precisamente.
Chego ao ponto: com preguiça de pensar e avaliar o entorno além dos miseráveis modelos que possui, a maioria qualifica imprecisamente tudo que se lhe afigura diferente. Com preguiça de pensar e tentar elaborar novas categorias negativas de marcação, a maioria usa do que dispõe.
Claro que classificando precisa ou imprecisamente a maioria está a marcar negativamente. Mas, a marcação imprecisa revela mais claramente a perversidade da padronização classificatória das maiorias: a tendência a julgar indistintamente, a julgar sumariamente, a julgar por critérios largos, ávida por punir rapidamente.