Os serviços de saúde e a oferta de educação são universais e gratuitos, nos termos da constituição brasileira de 1988. A fórmula é de abrangência que não se encontra em outros países, na medida em que universalidade e gratuidade não estão condicionados por qualquer coisa além do orçamento do Estado. Não se exigem quaisquer contraprestações, nem a nacionalidade brasileira.
Nada obstante a declaração na constituição, a realidade apresenta dois serviços ruins. É verdade que a saúde, por meio do SUS – Sistema Único de Saúde – teve melhoras na qualidade dos serviços prestados. Na educação, embora os investimentos tenham aumentado significativamente, os resultados são muito ruins: recentemente o Brasil ficou em penúltima posição numa pesquisa a envolver quarenta países.
Não se trata apenas de dinheiro, evidentemente, quando se buscam razões para as deficiências. Há desperdícios e ineficiência, mas a questão central não se encontra pontualmente. No fundo, há problemas porque os grupos detentores de poder real não estão preocupados com os problemas.
Ninguém reclama a sério dos defeitos dos serviços que não usa; no máximo faz ressonância a reclamações que se convencionou bonito repercutir, por pura conveniência de manter uma boa consciência.
Pois bem, o poder real, no Brasil, encontra-se nos estratos sociais que vão das classes média para cima. Esses grupos não se servem ou pouco servem-se de serviços públicos de saúde. Com relação à educação, esses grupos servem-se da educação de nível superior pública e, por isso mesmo, ela é superior à privada, na enorme maioria dos casos. Ainda pela mesma razão, a educação nos níveis fundamental e médio é ruim.
Aquilo que não é ofertado aos estratos médios e altos tende a funcionar mal, embora haja serviços públicos bons, como é o caso da educação superior, precisamente porque seu maior alvo são os estratos detentores do poder real.
A conclusão é inescapável e sua correção pode ser medida pela ojeriza que essa proposição desperá nas pessoas componentes das classes dominantes: para funcionarem SUS e educação fundamental e média é necessário que delas precisem as camadas média e alta da sociedade brasileira.
Ocorre que o sistema todo é conformado para evitar essa utilização de saúde e educação públicas pelas camadas média e alta, o que evita também a melhora da qualidade dos serviços.
Um Estado capturado por minorias cria mecanismos contraditórios às premissas de universalidade e gratuidade dos serviços de educação e saúde. Um desses mecanismos, que deveria ser suprimido – até por imperativo de coerência interna – são as deduções de despesas médicas e com instrução no imposto a ser pago sobre a renda.
É de uma clareza ofuscante a aberração que é deduzir do imposto pago aquilo que se despendeu com algo oferecido gratuita e incondicionalmente pelo Estado. Se algo é posto a disposição das pessoas sem custos e elas resolvem pagar por isso particularmente, não há qualquer razão para esse dispêndio por opção privada ser suportado duplamente extamente pelo Estado que já oferece o mesmo. Isso socializa os custos privados de classes privilegiadas, além de ser um contrasenso difícil de refutar.
Seriam legítimas deduções no imposto sobre a renda de despesas com serviços essenciais não oferecidos gratuitamente pelo Estado que cobra o imposto. Permitirem-se deduções com despesas em serviços ofertados gratuitamente é permitir que por decisão individual o privilegiado evada-se do pagamento de tributos, o que é disfuncional e aberrante.
Isso de a constituição prever saúde e educação públicas universais e gratuitas e ao mesmo tempo permitir que classes privilegiadas deduzam do imposto sobre a renda despesas com esses seviços é típico da hipocrisia fundante da nacionalidade. Faz-se uma bela declaração de intenções e, por vias laterais, faz-se outra norma a manter tudo como sempre esteve e a mesma sistemática de sangria de muitos em benefício de poucos, por meio do Estado.
Como sempre, percebido o esquema subjacente, hipocrisia e contradição são vertiginosos, até para nossos largos padrões brasileiros. E hipocrisia e contradição revelam-se também nas defesas do deformado sistema. Os beneficiários sempre dirão que tem que ser assim porque os serviços públicos são ruins e têm que partir para serviços privados.
Fiquemos com uma parte da objeção, desprezando a das conclusões, evidentemente, para minimizar os riscos de contaminação. Ora, se os serviços públicos são ruins, pode-se buscar sua melhora, ao invés de saquear o Estado para pagar por serviços privados. Pode-se também assumir postura mais sincera e honesta e deixar os serviços ruins para os pobres e pagar os serviços privados do próprio bolso, mas isso seria sonhar com um direitismo só direitista e não desonesto e oportunista, como é nosso comum.
O meio mais eficaz, não apenas de suprimir a contradição gritante, mas de encaminhar os serviços de saúde e aducação públicas para melhora é tornar as classes médias e altas clientes deles, deixando de ajudar esses grupos a pagarem por serviços privados, quando a constituição diz haver os mesmos serviços públicos, gratuitos e universais.