O que falta, vou dizer a conclusão logo ao princípio, é exposição pública, é assunção de riscos correspondentes à natureza da atuação deles. Falo aqui do supremo tribunal federal, aquele que julga a constitucionalidade dos atos normativos no Brasil e que ocupa um espaço mediático maior que os tribunais congêneres, nos demais países com sistema jurídico assemelhado.
Ocupa maior espaço na imprensa porque reivindica maior poder político, embora já o tenha muito. O protagonismo crescente do tribunal gera toda sorte de mal-entendido e de análises e propostas disparatadas. Esse risco, o de fomentar a incompreensão, é indesejado, ao contrário do risco político puro.
Na semana passada, o stf julgou um recurso a envolver a aplicação da lei da ficha limpa. A tal lei foi elaborada por iniciativa popular, depois da coleta de mais de um milhão de assinaturas de apoio e de forte campanha com ênfase moralista e emocional.
O fato é que se acredita, no Brasil, que os políticos são piores que as demais pessoas, em termos de honestidade. Não percebo a coisa assim. Acho que o problema, neste país, é que existem políticos em demasia, esferas políticas demais, bastando tomar-se o caso do número de prefeituras municipais para compreender-se o que falo.
No relativo, a política equivale-se em quase todas as partes, porque se trata basicamente da mesma coisa, ou seja, tomar conta do público em benefício próprio, embora sempre a nega-lo. Claro que há diferenças no custo de oportunidade da desonestidade na condução política. E aqui, novamente, a diferença quantitativa brasileira faz a diferença qualitativa.
A existência de milhares de pequenos e minúsculos municípios, todos com suas prefeituras e câmaras municipais e estruturas administrativas, todos mantidos com dinheiros do governo federal central, torna o desvio de recursos públicos um convite fácil de aceitar-se. Uma estrutura dessas é virtualmente não fiscalizável.
Bem, o caso é que a lei da ficha limpa foi proposta, aprovada e sancionada e entrou em vigor. Previa a inelegilibilidade de quantos tivessem sido condenados ao menos por um órgão colegiado, ou seja, em duas instâncias. Ela entrou em vigor antes da convenções partidárias que escolheram os candidatos ao pleito geral de 2010.
Há um artigo na constituição federal dizendo que a lei modificadora do processo eleitoral não se aplica às eleições que ocorrem até um ano da sua data de vigência. A questão chegou ao stf, que decidiu, por seis votos a cinco, que a lei não podia ser aplicada às eleições de 2010.
O problema é definir processo eleitoral. De minha parte, acho que começa com as convenções partidárias e, portanto, a lei da ficha limpa não alterou o processo eleitoral, porque ele iniciou-se já sob novas regras. Mas, não quero discutir teses jurídicas, até porque uma questão decidida por seis a cinco é daquelas que ensejam discussões intermináveis.
Os candidatos impedidos pela lei da ficha limpa foram escolhidos por conta e risco exclusivos dos seus partidos políticos, que já conheciam a regra, evidentemente. Tiveram seus registros de candidatura indeferidos e começaram o previsível caminhos das ações judiciais. Munidos de decisões precárias, por serem liminares, apresentaram-se à votação, como se tudo estivesse muito bem e definitivamente resolvido.
Durante o período imediatamente anterior ao pleito e nos momentos que se seguiram, o stf furtou-se a decidir a questão antes da posse dos eleitos. Fê-lo ao argumento – hoje evidentemente falacioso – de que a corte estava desfalcada de um juiz, estava com apenas dez de sua composição de onze. E argumentaram alguns juízes que a responsabilidade por isso seria do Presidente Lula, que não nomeara o décimo-primeiro ministro a tempo.
Um sofisma que chega a ser tolo e que foi desmascarado facilmente, embora seus propositores façam de conta que não o formularam. Primeiramente, a corte podia, sim, decidir com dez juízes, porque o presidente pode e deve votar para desempatar. Segundamente, basta considerar que um dos ministros podia estar afastado por doença, por exemplo, e ninguém em são juízo diria que a culpa era do Presidente que nomeara o doente!
Decidida a questão agora, passados três meses das posses de senadores, governadores, deputados federais e estaduais, sucede que centenas de parlamentares, que foram diplomados e empossados, perderão seus mandatos, substituídos por outros que nunca podiam ter disputado o pleito, porque inseridos nas hipóteses de ficha-suja.
Não é desejável para uma democracia representativa o entra-e-sai de agentes políticos, ao sabor de decisões judiciais múltiplas e conflitantes e tomadas – ou não tomadas – inoportunamente sob argumentos pueris. Reforça a percepção de que se trata de um jogo obscuro – não falo de obscuridade mafiosa, mas de complicação mesmo – em que o voto é um detalhe, as regras são detalhes, de que ocorre uma luta de vale-tudo entre especialistas, algo de que o público, enfim, não tem a menor noção, nem participação.
Interessante é notar que essa insegurança patrocinada pelo judiciário, mais notadamente pelo stf, pretende-se baseada apenas na interpretação de normas técnicas, ou seja, fora das possibilidades de crítica de quantos não são os especialistas da corporação jurídica. Na verdade, não é isso que acontece.
O jurídico, qualquer que seja o fenômeno jurídico, está impregnado de política, pois trata-se de tirar algo de um para dar a outro. Ora, essa atividade não se faz sem escolhas que não sejam mais complexas que as escolhas prévias que a lei contem. O direito puro, mecânico, alheio a escolhas políticas é uma falácia.
Que assim seja, é natural. Não é natural que assim seja, mas pretenda-se de outra forma, a querer-se disfarçar em ciência pura o que é disputa minimamente organizada. Há balizas mais e menos gerais que contém a disputa, que a põem em termos mais ou menos previsíveis, que apontam alguns limites do absurdo.
Por conta das indignações emocionadas e previsíveis do público, volta e meia surgem idéias de reformas judiciais que, no fundo, nada mudariam ou mudariam para pior. Estas reações são, na verdade, as desejadas pela corporação, que reforça sua incomunicabilidade, seu hermetismo defendido ao argumento da especialidade própria e inatingível. Livra-se da discussão e do fogo aberto próprios da esfera política.
Somente poderiam reivindicar essa impossibilidade de crítica se estivessem no jogo como conceitualmente prevê-se que estejam: sóbrios, discretos, afastados, atentos à lei, sem antecipar decisões, sem manifestar-se sobre tudo, até o que não lhes diz respeito. Se assim procedesse, o judiciário – o stf – poderia reclamar o privilégio de não se submeter ao julgamento público amplo.
Mas, não. Joga como jogam os meninos que são os donos da bola, contra quem nada se pode dizer, embora queiram jogar. Fazem política, emitem opiniões sobre o que julgarão, julgam por voluntarismo mais que por legalidade e para isso não buscam legitimidade.
Há pessoas que vêm na forma de escolha dos ministros do stf um sistema errado. Isso é uma bobagem, o modelo é o único harmonizável com a forma de estado que a constituição desenhou. Um tribunal político não pode ser formado senão politicamente, pois, do contrário, não pode tomar decisões políticas. E as decisões de constitucionalidade são eminentemente políticas, o que não quer dizer que sejam aleatórias, evidentemente.
O tribunal constitucional não pode ser tecnocrático, ou seja, acessível apenas para os quadros de uma corporação estatal, porque esses quadros não têm legitimidade popular, não receberam um mísero voto, e a constituição diz – bem ou mal – que todo poder emana do povo. Nem uma leitura enviesada de Habermas dá suporte à idéia de um tal tribunal constitucional formado por burocratas escolhidos por concursos públicos.
No formato atual, os juízes são indicados pelo Presidente da República – a pessoa com mais votos no país, evidentemente – e são sabatinados pelo Senado da República, uma casa parlamentar de representação paritária dos Estados Federados. Depois, se aprovados na sabatina, são nomeados pelo Presidente para o cargo vitalício.
A vitaliciedade é um equívoco e os juízes do stf deveriam cumprir mandatos determinados, precisamente por ocuparem uma posição política. Muita coisa fala-se a respeito da duração dos mandatos políticos, em um sistema que se quer democrático. E fala-se entusiasticamente que eles devem ser limitados, porque a falta de limites seria contrária à democracia.
Pois bem, assim sendo, impõe-se que os juízes do stf cumpram mandatos fixos, porque este tribunal encarna um dos poderes da república que se diz democrática. Um poder que diz o que é ou não constitucional é mais legislativo que judiciário, na verdade. Faz escolhas em nível mais elevado que as do dia-a-dia do parlamento, porque trata de normas mais elevadas.
Em meio à confusão que se segue à indignação, as idéias mais absurdas e diversionistas podem frutificar. Eis que se propõe, agora, como reforma do funcionamento judicial, a supressão dos recursos extraordinários, ou seja, daqueles que vão além dos tribunais regionais. Essa limitação de acesso à jurisdição quer-se a bem de reduzir a morosidade.
Ora, os recursos não são os responsáveis pela morosidade judicial. Os responsáveis por essa imensa litigiosidade que se observa no Brasil são coisas de que ninguém quer falar. Suprimir recursos, reduzir prazos, mudar número de artigos de lei, é algo que deve interessar somente às editoras de manuais jurídicos.
O isolamento dos tribunais superiores, decorrente dessas idéias de os tornarem inacessíveis por meio de recursos, é a busca de concentração de poder. A busca do aprofundamento de sua natureza legislativa, que fica evidente nas decisões vinculativas e de aplicação geral.
A busca de poder, notadamente de poder equivalente ao legislativo, deve passar por discussões mais lúcidas, amplas e aprofundadas que essas que se lançam no calor de uma polêmica pública. Isso não é trivial, nem exclusivo de uma classe de iniciados, nem desimportante para o público.
Seria interessantíssima uma consulta pública sobre o judiciário que o Brasil quer ter. Seria interessante que se apontassem algumas das causas do entupimento dos tribunais de processos. Por exemplo, devemos milhões de processos ao voluntarismo aleatório-selenítico do ex-Presidente Fernando Collor.
Uma atividade governativa e legislativa inspirada na avalanche de um discurso de modernidade de fancaria, implicou na mais intensa supressão de direitos patrimoniais que já se viu neste país. Desde o confisco puro e simples do dinheiro das pessoas, as demissões arbitrárias de funcionários públicos, à supressão mágica de índices de inflação, além de outras coisas do gênero. Isso gerou um passivo judicial imenso, evidentemente.
Ao invés de se pedir a supressão de recursos judiciais, os senhores togados deviam pedir ao governo que reconhecesse suas dívidas e as pagasse, extinguindo as demandas. E que não voltasse a andar de braços dados com a loucura de medidas emergenciais com bases jurídicas que devem ter sido forjadas por primeiro anistas ou pândegos a divertirem-se com os problemas que estavam criando para o futuro.
Ao invés de deixar de julgar alegando impossibilidade pela falta de um ministro e de pôr a culpa disso no Presidente, deviam julgar com quantos se encontrassem, porque isso é possível.