Um episódio vulgar: a equipe do Santa Cruz, de Recife, ganha o campeonato estadual de futebol, superando, nas finais, a equipe do Sport. Na verdade, um episódio vulgaríssimo, comuníssimo, principalmente considerando-se que não estão em jogo questões de nacionalidade ou de antagonismo regional, porque as duas equipes são da mesma cidade.

Mas, o futebol é das áreas mais férteis para a percepção das dinâmicas sociais. A formação de grupos de adeptos dessa ou daquela equipe atende a certas condições identificáveis, nas suas origens. Depois, a coisa marcha com inércia própria e distancia-se um pouco das condições iniciais. No caso dessas duas agremiações, sabe-se que a primeira teve origens modestas, nas camadas mais baixas da sociedade do Recife. E que a segunda forjou-se nas classes médias baixas.

Hoje, esse corte sócio-econômico não tem quase sentido, porque os números de adeptos são muito grandes e a permeabilidade social também. Convém a qualquer equipe ter o maior número possível de seguidores – preferencialmente cegos – e todas as classes sociais tornam-se alvos, consequentemente. Além disso, as direções das equipes nada têm a ver com as composições de suas torcidas.

A identificação ou a devoção de uma pessoa a uma equipe de futebol é algo estranhíssimo, se virmos a coisa em termos abstratos. Assim, parece-se com a diferença entre o gostar-se do azul ou do amarelo. Convém ressaltar o que está no primeiro parágrafo, para colocar o caso da representação de nacionalidade ou regionalismo em campo diverso.

O Barcelona, por exemplo, é o caso evidente de uma identificação que transcende o futebol, pois é o símbolo maior de uma nacionalidade. Aqui, a coisa deve ser percebida por outro ponto de vista e faz mais sentido ou, pelo menos, é mais perceptível.

Nos casos de devoções a equipes que significam apenas uma reunião em torno a um símbolo teoricamente igual a outros, a inclinação deve ser decomposta em vários fatores. Há os condicionantes iniciais, ou seja, uma ligação de solidariedade inicial que, todavia, passado o tempo e aumentado o grupo, passa a ter relevância discreta.

Há o êxito, fator importantíssimo. Uma equipe de muitos êxitos tende a reunir número maior de adeptos. Aqui, entra em cena algo demasiado humano, o querer ter êxito por seguir um êxito alheio. É previsível querer participar de uma idéia de vitória, que é uma idéia de superioridade, evidentemente. Isso é próprio dos esportes coletivos, pois a equipe permite a extensão da noção de equipe aos seguidores.

As identidades futebolísticas tendem ao fanatismo em forma pura, quer dizer, ao antagonismo baseado em indiferenças reais. Sim, porque não se antagonizam idéias sobre a beleza do desempenho do esporte, mas somente diferenças entre preferir o verde ao vermelho.

Alguns séquitos de adeptos distinguem-se de outros pela intensidade da cegueira de suas devoções. Parece-me algo aparentado ao farisaísmo, que reúne a reivindicação da pureza, a mania de perseguição, a certeza da superioridade e a incapacidade de ver as coisas claramente e segundo as proporções existentes. Tais inclinações conduzem o seguidor a conflitos com o desenrolar dos fatos e levam-no a uma necessidade de simulação constante.

O caso específico dos torcedores do Sport de Recife é de estudar-se. Não se limita a fanatismo; essa é uma palavra insuficiente para apreender o comportamento, embora seja uma das chaves. Trata-se de uma crença quase religiosa que leva o crente a não aceitar uma realidade e a precisar justificar-se justificando algo que não depende dele.

Se esta equipe perde um jogo, será necessário encontrar motivos para tanto, excludentes da mais provável hipótese, que é a falta de competência técnica em um dado momento. Engraçado é que o adepto precisa justificar aquilo que ele não fez, porque ele acha-se presente naquilo em que não participa, embora creia que sim.

A psicologia do adepto de tal equipe revela que ele acredita no símbolo de uma superioridade, que só pode ser afastada por conspirações tão improváveis como intrincadas. Assim, o juiz terá roubado, outras equipes terão trocado subornos cuja lógica é enigmática, o tempo terá conspirado contra, as radiações gama terão atingido os futebolistas e outras coisas desse gênero. Nunca terá sido apenas um caso de futebol!

O mais dramático que deriva dessa postura é a incapacidade de ver a equipe perder. Entra em cena uma coisa fantástica, então: a simulação da indiferença e do bom humor que se dá ares de superioridade complacente, embora roa-se internamente de incompreensão e fúria assassina. O adepto em questão quer reservar-se o campo da piada autoconcedida, aquela que ele julga cabível para si, aquela auto-complacente.