A Igreja de Roma não tem a morte de Saramago como assunto que lhe imponha fazer algum comentário. Fê-los quando ele era vivo e isso bastou. Mas voltou a fazê-lo, agora que ele está morto, assumindo uma presunçosa atitude de superioridade. Aquela presunção velha conhecida na fórmula do perdão ao desviado.
Isso é oportunismo e pouco respeito por si e pelo morto. Deveria, a Igreja de Roma, dizer agora o que sempre disse. Agindo como age tenta apropriar-se de quem falou mal dela sempre, quase a santificá-lo. A estratégia é inteligente, mas é pusilânime.
Não quero traçar um paralelo, até porque são situações bastante distintas. Mas, no que toca à conduta, há traços de identificação com o que se faz hoje relativamente ao Padre Cícero. Atualmente, dizem que o Padre pode ser reabilitado – ele que foi suspenso de ordens e excomungado – sem, todavia, que isso represente um reconhecimento pelo erro na excomunhão.
Ora, não há como reabilitar o Padre e continuar a dizer que sua excomunhão foi correta, exceto se se reconhecer que ele foi santo! Por outro lado, não há como ignorar a utilidade da figura do Padre na tentativa de travar o crescimento das denominações reformadas neo-pentecostais.
O assassino do árabe no Estrangeiro, Meursault, ainda teve sua última ocasião com o padre, na cela em que esperava a execução de sua pena. Teve asco do sacerdote e afastou-se dele instintivamente, em uma cena literária de uma beleza cortante. Esse padre, contudo, é uma grande figura. Ele fez seu papel e procurou Meursault vivo e esse vivo era uma pessoa comum.
O conjunto dos padres procura Saramago morto para oferecer-lhe uma compreensão que ele não pediu, vivo. E Saramago não foi uma pessoa comum ou desconhecida. Por que o procuram? Porque afetam com o morto a grandeza que não tiveram com o vivo?