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Eu sugiro aos entreguistas brasileiros, até porque está em linguagem bastante direta e assim não lhes doem os miolos, como acontece quando deparam-se com alguma sutileza maior ou com poesia.
“A mim parece-me bem. Privatize-se Machu Picchu. (…) privatize-se a Capela Sistina, privatize-se o Partenon (…) privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei (…). E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. (…) E já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.”
(José Saramago, in “Cadernos de Lanzarote – Diário III”, págs. 147/8)
José Saramago, já velho.
Um homem sóbrio. Morre sobriamente, em casa, aos 87 anos.
Há vinte anos, deparei-me com dois livros dele, na casa de minha avó. Eram O evangelho segundo Jesus Cristo e A história do cerco de Lisboa. Não me produziram uma imensa sensação de descoberta literária. Alguma surpresa com a forma, alguma satisfação com a abordagem.
Pus-me a ler tudo quanto encontrasse de Saramago há pouco tempo. E gostava de iniciar a leitura de um depois de terminar a de outro livro. Sempre fica a parecer que o estilo cria alguma familiaridade e que os livros todos são um. E acredito que sejam.
Não consigo dizer de outra maneira, embora vá soar ingênuo. O homem parece que não se vendeu. É isso, não se vendeu; dizer que era coerente é simples, pouco.
Acho que seduzi-me pelos livros do Saramago pelos por quê. E não acho que sejam por quê existenciais, mas mais ao rés-do-chão.
Há um ano, mais ou menos, descíamos, Olívia e eu, da Lapa a São Bento. Podíamos tomar o metro, mas resolvemos caminhar. Boa decisão, pois breve voltaríamos e o pequeno deleite de caminhar tornaria a ser interditado. Chegamos aos Aliados e lá estava a Feira do Livro do Porto.
Andamos a ver uns livros e, pelas tantas, Olívia ouviu anunciar que às cinco e meia José Saramago estaria lá e autografaria livros. Ficou entusiasmada e eu disse que era melhor averiguar, que podia ter escutado mal. Quem escuta mal, como eu, sempre cogita essa possibilidade. Mas, tinha ouvido bem, Saramago estaria ali mesmo.
Formou-se uma fila que logo estaria imensa. Olívia comprou dois livros e ofereceu-me um: Manual de Pintura e Caligrafia. Agora mesmo fui apanhá-lo na estante e vi a data precisa, escrita por ele, assim: 2.VI.2009
À nossa frente havia uns jovens eufóricos. Eram estudantes e alguns eram brasileiros. Fosse o Saramago ou a Madonna quem eles iam ver em breve, acho que dava no mesmo. O velho escrevedor perceberia esse entusiasmo que não era de letras, mas de gente conhecida. Percebeu melhor ainda porque um dos rapazes fez alguma pergunta que não se referia a livros. Olívia deve lembrar que pergunta foi, mas eu não lembro, não escutei.
Lembro que Saramago reteve o rapaz e, com um ar de muito cansado, perguntou-lhe se já tinha lido algum livro seu! Pergunta gentil, cansada e sem precisar de resposta.
Chegou minha hora de entregar-lhe o livro para autografar. Um aperto de mãos, boa tarde, boa tarde, obrigado.
Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei. A tentativa falhou, e não há melhor prova dessa derrota, ou falhanço, ou impossibilidade, do que a folha de papel em que começo a escrever: até um dia, cedo ou tarde, andarei do primeiro quadro para o segundo e depois virei a esta escrita, ou saltarei a etapa intermédia, ou interromperei uma palavra para ir pôs uma pincelada na tela do retrato que S. encomendou, ou naquele outro, paralelo, que S. não verá.