A característica mais evidente das classes médias brasileiras é o oportunismo. Percebeu que as migalhas dos repastos do 01% são suas. Recebem-nas avidamente e agradecem timidamente, macaqueando o que acham ser o comportamento do 01%.
Timidamente e a macaquear, sim, porque é incapaz de gratidão verdadeira, apenas de mimese e subserviência, que são coisas distintas. A gratidão verdadeira é incompatível com uma simulação a que se entrega como auto-justificação, a crença em ter méritos.
O 01% dispõe seus espaços, corporativos e estatais, de forma a aquinhoar os que vivem de suas migalhas. E deixa claro que tais espaços não são propriamente liberais, por um lado, nem propriamente uma burocracia profissional pública, por outro. São apenas arranjos para os 20% acomodarem-se e defenderem o 01%.
Quem apostar naquela lógica de enriqueça meu patrão para que o lixo dele seja mais calórico, está em bom caminho, a despeito da vulgaridade da formulação.
Pois bem, uma das coisas que esse grupo acha necessário emular é o preconceito de classe do 01% e, como todo imitador subserviente, é mais feroz que o imitado.
Em certas circunstâncias, contudo, a subserviência mostra-se às claras e inibe até o oportunismo. É o sujeito contra ele mesmo, a provar que nunca compreendeu bem que ele mesmo não existe independentemente de sua condição de recebedor de migalhas.
Agora, sondagens mostram que a maioria das classes médias votam no Serra, embora o Serra nada tenha a oferecer-lhes, notadamente à grande parcela que se encontra acomodada nos serviços públicos, independentemente de terem acedido a ele por exames técnicos ou por nomeações, que isso, no fundo, é diferença pouca.
Essa adesão é para demonstrar solidariedade ao preconceito de classe que o Serra representa, ele mesmo um ascendido que precisa mostrar-se mais elitista que as elites.
Acontece que o Serra não dará mais migalhas aos 20%, como provavelmente buscará retirar as migalhas das migalhas do 79%, para cumprir fielmente o pacto com o 01%.
Aumentar os preços do trabalho dos serviçais pode impedir que os 20% tenham-nos em casa a limpar seus banheiros. Garantir rendimentos mínimos a quem nada tem pode surtir os mesmos efeitos. Têm medo disso e votam contra isso.
Todavia, ainda que se mantenham as remunerações dos serviçais baixas, ou que se as reduzam, que seria o supremo gozo dos 20%, se as próprias migalhas reduzirem-se os efeitos são os mesmos! E as pressões continuam a subir.
O primeiro-ministro da Suécia arruma sua própria casa, ou paga caríssimo para alguém fazê-lo. A senhorinha de classe média brasileira tem uma escrava que recebe um arremedo de salário para fazer isso. Acha-se muito bem consigo mesma por, vez e outra, derramar sua grandeza cristã perguntando à escrava como vão aquelas quatro criaturas que ela pôs no mundo e que dormem no chão. Pronto, alma reconfortada.
A senhorinha terá acessos de fúria se a escrava algum dia surrupiar 14 ml daquele perfume francês que ela pediu àlgum parente para trazer do lugar exterior com que sonha, o free shop do aeroporto. O esquema de segurança e coação que trabalha para a senhorinha, que atende pelo nome de polícia, vai deter a escrava e dar-lhe uma surra até que confesse o delito apto a por as bases da sociedade em risco profundo.
A senhorinha, em seus momentos de reflexão íntima, vai ter reforçada sua incompreensão de porque aquela escrava tão bem tratada entregou-se ao crime, à incompreensão das invencíveis diferenças de classe e à ingratidão.
A escrava, depois da surra, ou mesmo antes dela, pode um dia aclarar na sua mente as razões da sedução por aquele líquido enjoado com nome francês. Ela pode, um dia, arrumar os pensamentos e perceber que, tanto ela, quanto a senhorinha, não têm a mais mínima idéia do qualquer coisa além da novela que ambas vêm.