Há pouco tempo, resolvi-me a sair, ir até ao centro e comprar o Le Monde Diplomatique desta quinzena. Há três bancas de jornais e revistas, relativamente boas, ali na Praça da Bandeira. Esse é um espaço democrático, onde muitos deixam-se estar, conversando trivialidades, geralmente políticas.
Invariavelmente, encontram-se pessoas dispostas a porem para fora suas opiniões – digeridas a partir das rações dos jornais – e a demandarem a aprovação ou desaprovação do interlocutor para o que disseram.
Não é esse propriamente o tipo de contato que me apraz, em um domingo pela manhã. De tão chato e antisocial que sou, prefiro chegar calado e sair calado, com minha revista ou jornal. Bom dia, por favor e obrigado, ditos para a pessoa que os vende, bastam-me de comunicações nessas ocasiões.
Claro que tudo pode mudar se se encontrarem pessoas realmente amigas, com quem se conversa por prazer, mas isso é mais raro. Comuns são os casos comuns.
Pois bem, entrei na banca de revistas e percebi que lá estava um fulano detestável, uma pessoa daquelas que falam aos gritos, que insinuam proximidades inexistentes, que não têm noção de inconveniências, um bufão que, sendo ridículo, espera de todos que aceitem também sê-lo. O problema da miséria humana que se expõe despudoradamente é querer dos outros o mesmo.
Entrei na banca e a senhora, a dona, logo que me viu sacou a CartaCapital, a revista que sempre compro lá. Acontece que tinha adquirido essa revista ontem, na mesma banca e tive que dizer-lhe não, já comprei ontem, queria o Monde Diplomatique. Tive que dizer, embora quisesse ficar calado a olhar as outras revistas, porque a figura do parágrafo acima estava junto ao balcão folheando uma revista Veja. Eu desejava evitar o inevitável, ou seja, alguma pergunta estúpida.
Logo que me ouviu falar, o senhor fulano virou-se e disse, para o mundo todo escutar, é claro: olá, doutor, o senhor lê isso?
O desagradável dessas coisas, para mim, gira em torno da obrigação de insinceridade que significa. Sim, porque seria estúpido responder sinceramente, como se faz com pessoas que merecem a sinceridade. Seria estúpido responder que é claro que leio aquilo, senão não estaria a comprá-lo; que aquilo é muito melhor que o lixo em formato de revista que o fulano tinha em mãos.
Seria trágico porque os miseráveis gostam de serem objetados, que isso dá-lhes ocasião de exporem sua miséria, que no fundo a reconhecem. Dá-lhes ocasião de miseravelmente colocarem-se em papel subalterno, de miseravelmente porem-se na suposta posição de aprendizes frente a professores. Querem mortificar-se, expor-se, enfim. Sua aparente subserviência é o convite ao rebaixamento do interlocutor.
À pergunta desconcertante, respondi com uma cara de tolo, de obviedade, de recusa ao contato. Melhor teria feito se dissesse que comprava o Monde pela primeira vez, ou pelas fotos que ele não tem dentro, ou qualquer mentira das mais absurdas, que são as melhores de se aceitarem. Mas não, fiquei calado e ensejei outra pergunta!
O senhor fulano pôs-me a vinte centímetros dos olhos a Veja que ele folheava, apontou a fotografia de uma senhora e disparou: é a mãe de Dilma, a velha não é mais bonita que ela? Disse com ar de ironia e malignidade de quem no fundo queria dizer que Dilma está gorda, ou tem os cabelos assim ou assado ou que se veste fora de moda, ou qualquer outra indelicadeza desprezível e estúpida deste tipo.
Disse-o como quem repete acriticamente o acervo de idéias intolerantes e indelicadas que TVs, jornais e revistas põem à disposição das classes médias proto-fascistas brasileiras. Repete acriticamente mas gosta disso, ou seja, cultiva de coração a intoleranciazinha mesquinha e a idelicadeza próprias de sua classe. Projeta em tudo sua mentalidade pequena, vulgar, misógina.
Desta vez, subi um degrau na escala da sinceridade – supremo risco, é verdade – e disse secamente: não trato desses assuntos. Em réplica, a tolice em tom solene: ah, o doutor não fala da presidente! Rancor de quem desejava ir além e insinuar que o doutor não trata dessas pequenezas, não repara no corte de cabelo, não faz comentários motivados pela inveja de viúva velha.
Não há hipóteses seguras de replicar alguma coisa desse tipo com sensatez. Com a explicação objetiva de que tudo isso pode ser feito, mas que se fazem comentários triviais com amigos, em circunstâncias privadas, por alguma descontração. Não adiante dizer que a reserva não é uma acusação, que é apenas reserva!
A intolerância – estimulada até aos limites pela imprensa, como se fosse preciso regar ervas daninhas – transborda, põe-se para fora com os dentes arreganhados, aos sorrisos impudicos do compartilhamento de misérias. Ela é praticada até por quem supostamente teria enormes interesses no cultivo da tolerância.
Esse indivíduo detestável de quem falei tem algo que para mim é totalmente indiferente, algo como ter a pele clara ou escura, os olhos claros ou escuros, uma circunstância biológica como qualquer outra, uma não-opção, enfim. O fulano, ao que tudo indica, é muito mais que misógino e espero que isso baste para compreender-se o que digo.
Sabe, portanto, muito bem o que são preconceitos arraigados, fundados em superficialidades. Pode não o saber de maneira sistemática e racionalizada, mas certamente sabe-o bem de viver, que já viveu mais de meio século, circunstância não desprezível. Vive a representar, aprisionado nessa obrigação terrível que as circunstâncias impõe-lhe.
E leva a representação e a irracionalidade a tal ponto que, ele mesmo experimentador diário da intolerância, exerce-a com indisfarçável prazer! O prazer, talvez, de diluir a intolerância no amesquinhamento generalizado. Um prazer miserável de perseguir-se a si próprio.