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Tag: Religiosidades

Façam as pazes com o irracional!

Ontem, tive uma conversa que me deixou impaciente, um pouquinho desconcertado e com medo de estar a tornar-me um estilita. Meu interlocutor anunciou ter crenças espiritistas e pôs-se a falar nas tais crenças, que não são novidades para mim. Até aí, tudo está muito bem, que me interesso profundamente por todos os assuntos de religiosidades.

O problema é basicamente o de sempre: o proselitismo. Desta vez, acrescido de uma irritante cegueira e perda afirmativa da grandeza, da poesia que as promessas mais extraordinárias trazem consigo.

Tudo quanto é religiosidade por aqui confunde-se bastante com os intervalos comerciais d´alguma emissão televisiva. Não se conversa sobre o assunto, parte-se para cima do interlocutor, a tentar convencê-lo de toda uma série de axiomas improváveis, que invariavelmente trarão benefícios palpáveis ao aceitante. Ora, isso é economia religiosa!

Muito contraditoriamente, os manejadores e propagandeadores de axiomas pretendem estar a lidar com as coisas mais lógicas do mundo, pretendem-se fortes em cientificidade e moralismo, afinal todo ele axiomático! Todavia, o axioma é um campo para que moralismos, lógicas e ciências não foram chamados; eles simplesmente não precisam disso.

No caso específico, meu interlocutor bombardeava-me com moralismo pitagórico elementar, ou seja espiritismo, como se fosse a maior descoberta, a mais racional proposição que uma pessoa pudesse fazer. Meia dúzia de conclusões silogísticas feitas a partir de premissas absolutamente arbitrárias. Essas premissas, claro, eram as vontades do Deus, descobertas sabe-se lá como.

Que se suponha conhecer os desígnios d´algum Deus – de um todo-poderoso – não é problema, embora seja uma evidente profanação. Que se ponham os descobridores a jactar-se da posse dessa informação, a extrair conclusões ajudados por Aristóteles, vulgarmente, e a tentar impor isso aos outros já fica bastante cansativo e agressivo.

Toda essa gente reduz os Deuses a si próprios, humanizando-os sem compreenderem que o estão a fazer. Melhor fariam se seguissem os belos exemplos do paganismo helênico e pusessem seus Deuses entre si, em contato próximo com as pessoas,  com as águas e as terras, com vontades, raivas, invejas, vinganças, assim mesmo, indisfarçadamente.

Mas, não. Seus Deuses, de quem conhecem as mais íntimas vontades, são únicos, absolutos, imortais, ubiquos, plenipotentes, eternos, tudo isso que uma mente mais calma percebe ser totalmente incompatível com o conhecimento dos mesmos.

Já renunciaram à mais difícil tarefa de tentar aproximar-se de seus Deuses por meio de mitologias belas e repletas de simbolismos que, no fundo, são um imenso reconhecimento da natureza impenetrável da divindade. Já não constroem para seus Deuses histórias cheias de idas e vindas, de mitos de criação, de fertilidade, de alternância da fartura e da falta. Já não se acredita a sério nem mesmo no Príncipe do Mundo!

Os mascates das religiosidades trazem seus bauzinhos de vulgaridades que chamam de leis divinas, mas que Deuses se ocupariam dessa trivial atividade legislativa? Que Deuses seriam assim tão humanos e simplórios? Que Deuses tão vulgares seriam esses que produzem axiomas para serem bases de silogismos tão formalmente certos?

Pois o meu interlocutor, com a maior naturalidade e auto-confiança do mundo, dizia-me que o pacote que me tentava vender não era uma religiosidade, era uma coisa científica e filosófica! Meu Deus, uma coisa científica? Sim, uma coisa científica, certa, lógica, moral, retributiva por meio de sucessivas depurações.

Eu procuro não agredir as pessoas voluntariamente, desde que perceba que elas não agem deliberadamente para agredir-me. Esse é um esforço que me parece bem tentar sempre. Digo isso para explicar porque não perguntei ao meu interlocutor porque ele tinha feito do seu Deus um objeto de investigação e não um Deus.

E também contive-me para não perguntar-lhe porque têm tanta vergonha de chamar uma religiosidade pelo nome correto, ou seja, porque precisam chamá-la de ciência, melhora algo? Estão assim tão presos àquela anacrônica mitologia científico-positivista do século XIX?

E, como, embora não seja religioso, tenha lido um pouco as escrituras judáicas e cristãs, tentei ser simpático e desviar um pouco a conversa dessa ciência anti-científica. Sem resultados, todavia. Meu interlocutor acusou esses trechos de mitos infantis! Sim, mas ele e sua ciência moral estão totalmente amparados nesses mitos. Ele propriamente é que não poderia postular a inutilidade e puerilidade dessas passagens simbólicas.

Essa gente quer apreender a mortalidade ou a imortalidade com lógica! Quer transforma-las em teorias simples de custo-e-benefício, em justificações morais! Supremos e desesperados loucos. Vaidosos fautores de leis divinas e morais do dia-a-dia. Essa gente acredita mesmo é no Código de Processo Civil e fala em Deus.

Um heresiarca em cada esquina.

Por todos os lados encontram-se os templos das denominações cristãs neo-pentecostais. Além dos nomes inscritos nas fachadas, distinguem-nos uma certa arquitetura e, nos momentos de celebração, a grande quantidade de pessoas e o barulho de cânticos ou de exorcismos mais ou menos frequentes.

Filiam-se ao deus de Moisés tão diretamente quanto aqueles esfomeados do deserto, que o queriam seduzir e solicitar com ouro, em busca de mais ouro. A diferença é não trazerem veladas as caras para falar com ele. Mas, as heresias não estão em querer ouro, mas em solicitá-lo insistentemente como um advogado faz a um juiz.

Não estão tanto nos cânticos, mas em achar que podem agradar ou desagradar àlguma deidade, que por suposto não é homem. Em julgar possível avaliar seus gostos, como se tivessem compartido com ele das intimidades de sua infância. Em considerar razoável que a ele apeteça mais essa palavra que aquela, como se prefere peixe a carne.

Pedir e louvar, eis o binômio herético, que caracteriza os monoteísmos em seus ápices. Nesses momentos culminantes, uma religiosidade atinge o máximo de seu materialismo, o mínimo de sua ritualística formal, o máximo de sua celebração de um deus moldado à imagem de seus cultores.

São assim as religiosidades no auge de sua juventude. São diferentes elas nas infâncias e nas senectudes, momentos de profunda indefinição do cultuado e, portanto, de pouquíssimo materialismo.  Muito novas ou muito velhas, elas prendem-se primeiramente a um deus ainda não criado e, depois, a um deus já esquecido. No início é comunhão e no final liturgia.

No meio, quando é mais forte, é a lógica da disputa jurídica alçada a religiosidade. Ou seja, solicitação e adulação sem considerações maiores pelos códices e pressupostos que se dizem seguir. Nessa fase o deus é avidamente definido e estabelecem-se seus atributos, essa suprema insensatez, que abre as portas para a incoerência.

Os monoteísmos de raízes greco-judáicas enveredaram por essa trilha e acharam de arriscar-se a fazer do seu um deus todo-poderoso. Alguns teóricos mais bem-humorados acrescentaram ao total poder uma outra característica, que ressaltou a incoerência da figura que desenhavam; disseram que a vontade desse todo-poderoso era insondável. Essa última característica é bastante razoável, enquanto a primeira, essa é mais que inútil.

Ora, homenagear a um ser todo-poderoso é impossível e pedir a um ser insondável é tarefa para Sísifo, exceto se, no fundo, os postulantes e homenageadores não acreditem nos caracteres que descobriram no seu deus. Exceto se o creiam afinal uma criatura deles mesmos, sujeita às mesmas inclinações e caprichos.

Um ser plenamente inserido no comércio dos favores da vida humana perceberia muito bem que lhe adulassem e pedissem dinheiro e curas. Mas, um ser insondável perceberia alguma coisa disso?