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A OTAN empurra a Rússia para o oriente.

Há quem não saiba, quem sabendo não aprenda e quem simplesmente prefira agir irresponsavelmente, sabendo de história ou não. É difícil precisar as inclinações específicas dos líderes da OTAN, dentre estas da tipologia anteriormente afirmada.

A Rússia, em duas ocasiões muito conhecidas, pressionada fechou-se e voltou-se para oriente: quando de Napoleão e quando de Hitler. Não hesitaram em fazer terra arrasada, entregar Moscou em chamas e recuar. Esse recuo mostrou-se fortalecedor, porque eslavizou as ricas estepes.

Independentemente de fetiches financeiros e discursos permeados de terminologia economicista, a Rússia nunca está suficientemente quebrada para ser francamente vulnerável a uma tomada ou a uma integral submissão.

A terceira Roma, a herdeira do império Bizantino, a nação que invoca o estandarte da águia bicéfala, não será reduzida assim simplesmente, principalmente hoje que detém arsenal nuclear. E a OTAN sabe disso!

É um pouco assustadora a irresponsabilidade da manobra que se serviu da Arábia Saudita para forçar uma baixa drástica dos preços do petróleo, com as finalidades de estrangular financeiramente a Rússia, a Venezuela e o Irã. Primeiramente, comprova a qualidade de estado vassalo dos EUA e de Israel que ostenta a Arábia Saudita.

Os sauditas foram comandados a aumentar a produção dos poços antigos por meio da injeção de água salgada altamente pressurizada. Isso é irreversível, porque se o processo estancar o restante do poço fica permanentemente contaminado.

Sempre se soube que o país mais rico em óleo é dos menos aquinhoados com know how do processo de extração e refino do petróleo, pelo que depende totalmente do conhecimento técnico dos estrangeiros. Assim, ficou fácil induzir os sauditas à injeção de água salgada pressurizada nos poços mais antigos para aumentar sua produtividade.

Por outro lado, os EUA reduziram drasticamente sua dependência de hidrocarbonetos importados, em decorrência dos avanços na extração de gás e óleo por meio de fratura hidráulica. Claro que essa mágica cobrará custos imensos em termos ambientais e sanitários, mas isso será problema dos mais pobres, que ficarão na terra arrasada.

Ocorre que esta queda de 40% nos preços, em poucos meses, é absolutamente artificial e não se compreende numa perspectiva de processo lento e contínuo de aumento da produtividade de poços antigos e na abertura de novos. É algo nitidamente especulativo, portanto.

Assim, cuidando-se de movimento estratégico baseado em especulação, as tendências podem inverter-se rapidamente, antes que se atinja o desejado efeito de quebrar a Rússia financeiramente. Aliás, antes disso, podem ocorrer as quebras dos países árabes e a desestabilização integral do médio oriente, algo sempre desejado por Israel.

Convém lembrar que são coisas diferentes um país em que o setor petrolífero é forte e outro em que o setor petrolífero é a única coisa que existe. Uma redução drástica dos preços do óleo quebra um país como o segundo, mas não chega para tanto num dos primeiros.

A Rússia volta-se mais e mais para o oriente, notadamente para a China e para a Índia. E isto, presentemente, envolve alianças estratégicas relativas a vendas maciças de armamentos de alta tecnologia. Além do comércio de alto volume, essas transferências solidificam relações.

Não é de todo improvável que o comércio trilateral entre Rússia, Índia e China abandone a intermediação do dólar norte-americano na liquidação das transações comerciais. É dificílimo prever se e quando isto ocorrerá, mas os indícios são fortíssimos para serem desprezados.

Vistas as coisas por este lado e lembrando que estes três países são grandes credores líquidos dos EUA, percebe-se o quão arriscada é a manobra da finança mundial – que tem a OTAN a soldo – contra a Rússia. Os credores podem, com relativa facilidade, induzir desvalorização ou valorização do dólar abruptamente e com efeitos devastadores, em qualquer sentido que vá o movimento.

 Caso vendam suas promissórias norte americanas maciçamente, o dólar cairá subitamente, causando um empobrecimento drástico num já pobre EUA, com efeitos sociais terríveis e provavelmente com grandes agitações de massas. No sentido inverso, caso entesourem mais, a valorização do dólar tornará o mais deficitário país do mundo ainda mais comprador…

Ou seja, esta investida contra a Rússia é de tal irresponsabilidade que somente pode provir de mentes apostadores no quanto pior melhor, na guerra nuclear localizada e controlada, no extermínio de 1/3 da população mundial e coisas deste jaez.

Escalada do maniqueísmo superficial, sem poética nem mística.

Inicialmente, é preciso enunciar uma premissa básica: não existe imparcialidade jornalística. Contudo, não significa a impossibilidade de se comporem narrativas que não cheguem a serem puros editoriais. Também não deve implicar na confecção de discursos muito primários, em suas estruturas lógicas e no desprezo pelos fatos.

Contar fatos não é algo isento, embora os fatos em si o sejam. Eles não têm valor algum, positivo ou negativo, mas sua narrativa inevitavelmente tem. É comum o contador deixar-se levar por si e por seus tutores e por ênfase diferenciada aqui e acolá. Assim, a descrição já carrega alguma axiologia.

Diferentemente acontece com o sujeito que já chega com as conclusões pré-estabelecidas e as superpõe aos fatos, mesmo que o quadro resulte muito distorcido e as margens dos dois planos não se encontrem ajustadas. Esses descompassos muito gritantes chamam atenção.

Maniqueísmo rasteiro é ingrediente básico na construção dessas narrativas muito simplórias e reveladoras do desajuste entre os planos material e formal. Um maniqueísmo que já vem despido de qualquer elemento poético ou místico, que eventualmente podem dar-lhe alguma grandeza imoral.

Fato é que duas notícias – à falta de termo melhor, tive que ficar com este – retiveram minha atenção, nestes últimos dias. O jornal The Guardian informou que a Rússia promove escalada de militarização próximo às fronteiras com a Ucrânia e confirma com fotos aéreas e dá conotação nitidamente negativa. A notícia não é notícia, é um alarme e uma denúncia de má-ação dos russos.

Ora, qualquer pessoa raciocinante percebe logo à primeira que as movimentações são em território russo e que, portanto, não há qualquer coisa demais nisso. Em segundo lugar, muito mais alarmantes e agressivas são as movimentações da OTAN no Báltico, na Polônia e na Turquia.

Todo mundo sabe que a OTAN é um grêmio de sócios menores dos EUA em matéria bélica. Ela permite diluir as constantes provocações e por a serviço desta atividade de violar espaço aéreo e forçar prontidão das defesas anti-aéreas várias nações europeias.

A Rússia está cercada militarmente por todos os lados, há bastante tempo. Por isso mesmo, teve de desenvolver os melhores sistemas anti-aéreos que há, porque seria muito mais caro tentar uma força baseada em vasto número de aviões de caça. Ao contrário dos EUA, que dispõem da Dinamarca, da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Holanda, da Suécia, da Espanha, da Áustria, da Bélgica, da Noruega, da Finlândia para promoverem vôos nas fronteiras, o império eslavo é ele só.

Vistas assim as coisas, o alarme do Guardian soa como é: ridículo, excessivo e rasteiramente maniqueísta. É quase a reivindicação da vassalagem voluntária e a denúncia da pretensão a defender-se. É de um cinismo adolescente supor que haveria qualquer outra coisa depois da OTAN promover um golpe de estado na Ucrânia e instalar algumas dezenas de nazistas semi-alfabetizados no poder.

A puerilidade encontra-se nisto de querer o direito a ignorar as consequências e, ao mesmo tempo, não poder ser chamado de estúpido. 

Depois destas parvoíces do Guardian, vejo outra notícia no El Pais, provavelmente mais infantil que a primeira e certamente mais desonesta intelectualmente. A chamada limitava-se a dizer que Putin ameaça fechar a torneira do gás à Ucrânia. Ou seja, Putin é aquele sujeito malvado que brinca de chantagear com o gás, como se se tratasse de algum capricho de um lunático autoritário.

A Gazprom realmente cogita cessar o fornecimento de gás à Ucrânia, mas não é por algum capricho, vingança, loucura ou coisas do tipo. É porque a Ucrânia não paga! E os novos suseranos da Ucrânia mostram-se incapazes de algum gesto de grandeza, daqueles que se esperam de gentes tão boas, democráticas, apegadas a normas jurídicas.

Na verdade, acredito na hora decisiva a Alemanha abrirá a carteira e pagará a conta, porque sai mais barato que ficar sem energia. Mas, embora esse desfecho previsível o seja para todos quantos pensam no assunto, há que se encenar entreatos de comédia e dar de comer à fome de maniqueísmo barato dos media.

A guerra humanitária.

Resultado de uma ação humanitária da OTAN na Bósnia.

Resultado de uma ação humanitária da OTAN na Bósnia.


Adianto que, para mim, o termo guerra humanitária é uma contradição em termos. Todavia, a julgar pela frequência com que essa motivação tem sido invocada para agressões, destruição e morticínio, estou em posição minoritária.

A promoção dos direitos humanos – ou fundamentais, em palavras mais precisas – impositivamente, sem considerações mais amplas sobre sua compreensão, tem levado países a justificarem guerras. E tem levado intelectuais a justificarem algumas formas de imperialismo cultural como a promoção de valores que seriam universais e desejáveis por todos.

Para que se chegue nesta noção de direitos fundamentais universais, dois requisitos são necessários. Primeiro, a aceitação de um padrão moral básico que se assemelha a uma verdadeira religiosidade panteísta. Segundo, que o conteúdo dos direitos fundamentais seja reduzido ao mínimo possível, porque ao mínimo de conteúdo pode corresponder o máximo de universalidade.

Trata-se de uma concepção liberal individualista muito própria de um liberalismo nascido nos finais do século XVIII. Essa forma de pensar os direitos fundamentais os reduz às liberdades negativas, o que implica uma esfera individual livre de pressões externas, quer venham do Estado, quer de outros indivíduos.

A crítica a essa visão teórica é relativamente fácil de fazer-se a partir da historicidade dos direitos. Ora, os catálogos de direitos fundamentais seguem uma marcha de ampliações, que já deixaram o paradigma do individualismo e das liberdades negativas para trás há muito. Com efeito, os direitos fundamentais coletivos e de liberdades positivas encontram-se consagrados em várias declarações e cartas de direitos fundamentais, mais e menos recentes.

De fato, como diz Bobbio, o postulado do jusnaturalismo e do racionalismo ético não tem fundamentação teórica. Tem existência positiva e postula efetividade, mas, no fundo, os direitos fundamentais são construções históricas, o que significa que dependem de conquistas e de consensos que não são mais que contingências.

Com relação à guerra por motivos humanitários, ou seja, àquela que se pretende justificada para a defesa de direitos fundamentais – na sua formatação mais restritiva de liberdades negativas – consiste em imensa contradição, mesmo que seja analisada a partir dos seus próprios postulados justificadores.

O exemplo recente da guerra na Bósnia-Herzegovina, na segunda metade da década de 1990, é muito eloquente. A guerra fez-se para estancar violações a direitos humanos. Para esse desiderato, violaram-se outros tantos direitos humanos, do mesmo nível daqueles que se queriam declaradamente proteger.

Violou-se o direito a vida e à integridade física em geral, de forma massiva. Violou-se o direito à propriedade – tão caro aos liberais individualistas – por meio pura e simplesmente da destruição dessa propriedade. E violaram-se vários outros direitos fundamentais de segunda e posteriores gerações, que os violadores, todavia, não se inclinam a reconhecer.

Violou-se o direito a um meio ambiente equilibrado e o direito à saúde, porque as forças da OTAN bombardearam os terrenos com artefactos de urânio empobrecido e de fósforo e com bombas de fragmentação – todos vedados em convenções da ONU. Os efeitos desses crimes de guerra serão sentidos no longo prazo, com a contaminação de terrenos e de cursos d´água.

Violaram-se os direitos ao patrimônio cultural, pois a destruição física atingiu indistintamente objetivos aparentemente militares e prédios de valor histórico. Também porque populações foram arbitrariamente deslocadas e isoladas, pondo em risco a continuidade de costumes e do uso das línguas.

Esses crimes foram cometidos a bem de levar uma liberdade cuja extensão é claramente reduzida. Trata-se de uma liberdade – caso exista em algum sentido – de viver na destruição, de perder raízes culturais, de perder parentes e outros próximos, de viver sob o terror e a tutela da OTAN e dos empréstimos de bancos alemães.

Há uma encruzilhada teórica que, para quem não sofreu os efeitos concretos da destruição, chega a ser engraçada. A guerra fez-se a bem de garantir as liberdades negativas, noção que implica a existência de deveres de não intrusão na esfera individual. Ora, as pessoas que tomaram bombas na cabeça poderiam invocar sua liberdade negativa contra os lançadores de bombas?

É terrível perceber a fragilidade, ou mesmo a falsidade, das motivações invocadas para alguma ação, utilizando o próprio suporte teórico dessas mesmas motivações. Resulta que se está diante, ou de uma tremenda dose de má-fé com impostura, ou de uma imensa dose de ignorância, ou de tudo reunido em alguma proporção.

A impostura pode ser revelada em vários casos a partir de um estudo cuidadoso dos fatores materiais subjacentes. Assim, no caso da invasão do Iraque, por exemplo, trata-se de pilhar a terceira maior reserva comprovada de petróleo do mundo e de sugar os recursos de vários Estados para grandes corporações sob contratos de reconstrução ou de fornecimento de mercenários.

A deficiência teórica, todavia, pode ser mais nociva e projetar seus efeitos mais demoradamente. Claro que se pode objetar que a tese serve à impostura, ou seja, ao disfarce de um saque. Pode, é verdade, e ususalmente desempenha esse papel. Acontece, porém, que as teses, as criações mentais sistêmicas, tendem a assumir uma realidade própria e vão a tornar-se em crenças, ou algumas formas de idolatria e fundamentalismo.

Assim, há quem pratique o imperialismo cultural sem ter de forma muito clara outro intuito além desse mesmo imperialismo. Quer dizer, passa-se a acreditar na missão redentora, independentemente de junto a ela haver ou não o roubo e a impostura. É o espírito de cruzada, enfim, onde misturam-se fanatismo disfarçado em teoria e instinto de rapina.