Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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O homem-massa não pensa, projeta-se.

Inicialmente, a advertência sempre necessária: o homem-massa ocorre tanto entre os pobres, quanto entre os ricos. Ele não é causado, nem é causa da luta de classes. Esta última sempre houve; o primeiro é assustadoramente novo.

Tocqueville traçou-lhe o esboço, surpreso que as palavras despotismo e tirania não servissem à perfeita caracterização deste tipo ameaçador da democracia, na América do Norte. Isto foi nos anos da década de 1830, mais ou menos.

Em Nietzsche, no último quarto dos 1800, não há esforço sistemático na definição de tipos psico-sociais. Nem há, contrariamente ao convencionalmente aceito, o panegírico da transvaloração ou do super-homem. Há, sim, profecia. O super-homem aconteceu, é o homem absoluto, algo possível quando os valores absolutos estão todos ultrapassados e o homem-massa torna-se absoluto e simulacro de relativos.

O niilismo e a ignorância histórica são as bases do homem-massa, suas condições iniciais e necessárias. Sepultados os valores absolutos – e aqui não se cuida de valores morais – o homem assume a posição dos absolutos e conforma-se em um ambiente de vários absolutos reunidos, o que somente poderia ser uma reunião de deuses ou um simulacro. A sociedade torna-se em simples convívio de inúmeros absolutos.

O absoluto a que me refiro talvez fosse melhor nominado categoria. O belo, o verdadeiro, o feio, o falso, como categorias, não são axiologias apropriáveis intelectualmente, por esforços do espírito. A partir do momento em que se lhes retira toda a objetividade, tornam-se projeções subjetivas e assim podem ser qualquer coisa, desde que se lhes dê qualquer capa de ciência de almanaque.

Ortega y Gasset desenhou o homem-massa, que estava triunfante já. Escandalizou-se que o tipo fosse prenúncio do extermínio de uma forma de convívio que lhe tinha permitido o surgimento: a democracia liberal. E antecipou o fascismo que viria e não seria exterminado pela vitória russa e dos aliados na guerra de 39 a 45.

A arte seria superior às teorizações, mesmo que aparentemente não seja prospectiva. Albert Camus põe na boca de dois médicos a percepção da volta do mal inominado. Os ratos morriam em Orã e não eram brincadeiras de crianças. Era o que não devia, não podia haver, pois estava extinto há séculos, mesmo que o bacilo fique guardado na poeira, à espera da ocasião para mandar os ratos à morte…

A tal democracia liberal, esta coisa inventada na Ática como reação aristocrática, é tão necessitada de prestar serviços ao processo de acumulação que estimula suas próprias crises ou, pelo menos, faz tudo para que elas sejam mais constantes e próximas.

O fascismo é a crise por excelência da democracia recente. Fazer de conta que a vitória militar em 1945 extinguiu o fascismo foi das coisas mais geniais que se viram nos últimos tempos. É algo semelhante à quase proibição da palavra problema pelos norte-americanos, substituída pela moralista desafio.

Foi interditado dizer fascismo, como foi dizer peste. A forma sócio-política teria de ser de impossível retorno, assim como a infecção pelo bacilo gentilmente passado adiante pelos ratos. Nenhum dos dois está banido, nenhum dos dois impossibilitado de retorno, todavia. Na verdade, o fascismo retornou onde seria supostamente improvável, nos Estados Unidos da América e nos seus satélites, regionais ou não.

O triunfo do homem-massa, tipo social dominante, deu solo fértil para retorno dos fascismos. Seguro de si, esta figura não pensa nem desconfia do que afirma. Sensibilíssimo, por gestado na abundância material que crê estado natural – um ponto divergente do homem-massa fascista de 36 – reage a tudo que seja discreto regresso material com fúria. É capaz de ódio por não ter podido acrescentar um alfinete à sua vasta coleção de alfinetes todos inúteis.

A sua linguagem é a do corpo. Portanto, sua última razão é a violência, o ponto final a que a linguagem corporal pode conduzir.

À máxima intumescência deste quisto sucede o esvaziamento aliviado. Mas, até que o tumor exploda, muitos pereceram. O roteiro do fascismo é semelhante mesmo ao da peste e, num, como noutro, há quem ganhe. A peste é um enorme ganho para os que a sobrevivem. O fascismo é enorme ganho para os esquemas financeiro e bélico.

Ambos são ruins para os que morrem sem o terem querido, porém…

As redes sociais e os comportamentos nem tanto assim.

Um grande fenômeno de nossos tempos são as denominadas redes sociais. No Brasil, começou com Orkut e tempos depois chegamos ao Facebook, Twitter, WhatsApp, pra citar algumas das mais conhecidas… Caso é que serviam, a principio, para reencontrar amigos e ver como estão, coisa que antes se fazia com um reencontro de “X anos” de colégio, faculdade, ou o que seja. Logo se tornou local de discussão, quando se descobria que aquele seu amigão de outrora pensava completamente diferente de você, e logo também se tornou algo mais elaborado, a partir do episódio da “primavera árabe“, algo como uma “ágora” do século 21.

Com a evolução, também começaram a haver distinções entre tais redes, em algumas você é meio que obrigado a convivência com os pares a partir do momento que os aceita (como o Facebook), em outras você escolhe as pessoas de sua convivência (como o Twitter), e em outras ainda, você é obrigado a conviver, sem escolhas (como o WhatsApp). Bom, digo isso porque no WhatsApp uma pessoa qualquer pode te jogar dentro de um grupo, e você fica ali, talvez pensando, sair é um bocado deselegante, então tá, deixa ai.

Pessoalmente eu gosto de todas, e acho todas legais, não somente essas três, mas todas as outras que vocês puderem imaginar, inclusive a melhor que é a LastFM, que contabiliza as músicas que você escuta, mas isso é outra história…

Caso é que com a disseminação do WhatsApp no Brasil, pipocaram grupos de discussão de todas as amizades que eu angariei ao longo da vida, inclusive formaram-se algumas nos próprios “grupos”. E no Brasil aconteceu um fenômeno político interessante de “bipartidismo” em âmbito federal, e isso gerou discussões acaloradas, que se intensificaram a priori por dois motivos: o primeiro, parte da imprensa que claramente é reacionária; e o segundo, as eleições.

Mesmo estando fora do país, pela experiência em tais grupos, dava pra perceber que não era uma boa hora para estar lá. Não pelas discussões em si, mais porque boa parte delas se baseia nas mesmas manchetes da imprensa, e acaba tornando-se enfadonho rebater sempre os mesmos argumentos, e ser invariavelmente taxado de seguir algum dos partidos, por qualquer motivo.

Pois bem, acontece que nas discussões, como eu estou um pouco mais distante do país no momento, procurava sempre ter um pouco de leveza e paciência, que não era notável nos interlocutores, fossem quem fossem… Fato claramente gerado pelo clima de animosidade que tocava a todos que estavam no olho do furacão.

Mas, o mais interessante aconteceu com um argumento “tu quoque” usado mais de uma vez, contra o que quer que fosse que eu defendesse, justamente por estar longe: “-Você não está aqui no país, portanto, não deveria opinar sobre o que não conhece!”; “-Você está longe, por isso defende isso!”; “-Sua realidade é outra!”. Todos enfim dizem basicamente o mesmo, que não estar presente invalida toda minha linha argumentativa. Ora, há argumentos tu quoque elaborados, que podem mesmo chegar a confundir. Esse eu classificaria no máximo, como infantil. E se o argumento era esse, ato continuo, eu deixava de discutir e/ou argumentar qualquer coisa que fosse com a pessoa que o proferiu, porque afinal.. Não valia a pena.

Porém as eleições acabaram, e com elas, eu esperava que acabassem as animosidades, coisa que de fato aconteceu na grande maioria dos grupos, e quando, aqui e acolá, aparece alguma, basta não falar e deixar morrer… Mas um caso interessante aconteceu ontem, eu já não comento sobre política em nenhum grupo, há não ser uma piada ou outra que ache engraçada, porque notei que mesmo sem eleições, o clima continua tenso.

Mas, em um de meus grupos, começaram a falar mal do Brasil, que brasileiro era mal educado, enfim, uma série de preconceitos, baseados ou não em fatos, onde todos tinham um objetivo comum, denegrir o país, ou a imagem do país, claro, isentando-se individualmente ao mesmo tempo, de forma que comentários como “Brasileiro não paga metrô (ou ônibus) no exterior, isso é uma vergonha, má educação” acompanhado de “Eu sempre paguei” eram um lugar comum, cito esse, porque foi a minha gota d’água… Mas estavam todos a exprimir-se sobre tudo, desde “jeitinho brasileiro” à “malandragem”.

Como eu estou fora já há algum tempo, e sei que aqui os comportamentos são iguais ou muitas vezes piores, passei a antagonizar algumas das assertivas… Sobre educação, pode-se perguntar a um Holandês sobre a educação dos ingleses, que vão a Holanda destroçar o país, por causa de algumas leis demasiado “permissivas” na opinião dos primeiros… Sobre andar sem pagar, pode-se perguntar a qualquer italiano o significado da expressão “Fare il portoghese“, que vai ai por entrar sem pagar, desde o metrô, até qualquer outro lugar onde você possa entrar sem pagar, mas que seja “obrigado” a pagar. Sobre a fama das brasileiras serem putas, é um problema e existe, mas não é especialmente nosso, veja-se as Russas por exemplo, ou faça-se uma busca rápida no google com os termos, “inglesas”, “festa”, “Ibiza”.

Em suma, todos os comportamentos descritos como sendo de “brasileiros” os há em todas as nacionalidades, claro, observamos os nossos problemas, por conhece-los mais de perto, e sempre nos incomodará mais, um brasileiro estúpido, que alguém de outra nacionalidade ainda que este seja um pouquinho mais estúpido que o brasileiro.

No entanto, o mais interessante veio a seguir, entre a discussão sobre viralatisse brasileira, e política ali nos entremeios, alguém perguntou o que eu fazia para manter-me. Oras, o que eu faço ou deixo de fazer absolutamente não influi na minha linha argumentativa, obviamente a pessoa buscava um argumento “tu quoque” para usá-lo contra mim mesmo, e isto estava implícito no discurso.

Ante a minha resposta jocosa, veio a insistência e era notável que a intenção era a mesma, do “você não está no país, não deveria falar”, só que nesse caso o caminho era mais ou menos “você tem bolsa do governo, por isso o defende”, ou “você não paga imposto, não devia falar de quem paga”, e por ai vai… O motivo da curiosidade era a ajuda a uma terceira pessoa, e/ou falar das dificuldades encontradas por gente que tentou sair do país, e encontrou demasiados obstáculos. O que claramente denotou-se falso a partir do uso da expressão “filhinho de papai”.

Agora, em nenhum momento eu disse o que fazia para me manter, porque nada do que eu faça para me manter invalida qualquer argumento meu, assim como estar fora do país tampouco invalida que eu fale algo sobre o país. E aqui chegamos ao ponto máximo do post, no grupo, eu não sou o único que mora fora do país, há outras pessoas que vivem (no plural) fora do país. No grupo, efetivamente há pessoas (no plural) que são mantidas pelos pais, seja por motivos quaisquer. Não obstante essas pessoas nunca tiveram argumentos rechaçados por viver fora, ou por qualquer outro motivo. Por uma causa muito simples, eles pensam igual ao restante.

Então a conclusão óbvia, mais uma vez, é que se você pensa igual, se é manada, se é massa, tudo bem, pode-se destilar o preconceito que for, o comportamento que for, ou a bobagem do momento, que você será bem aceito no grupo, o pensar diferente será rechaçado, ainda que com bons argumentos, por qualquer razão que se tenha em mente e esteja a mão, sempre que falte um argumento razoável para que continue ou se evolua em qualquer discussão.

Não é a toa que Rachel Sheherazade seja tão popular, mas ainda bem, que as coisas que ela diz só tenham o respaldo que têm no Estado onde ela nasceu, e aqui eu estou sendo tão preconceituoso ao falar mal do Estado, quanto todos foram ao falar mal do Brasil, mas essa não é a realidade da maioria do país, e aqui eu não divido o país em cores, ou partidos, ela não é maioria, ponto final.

Antes do nada era qualquer outra coisa…

Há vários interlocutores condicionados por sistemas axiomáticos de matriz judáico-cristã com que tenho algum contato. Vez e outra, convidam-me ou insinuam o entabulamento de alguma conversa que será conduzida inexoravelmente para alguma coisa do velho texto da bíblia hebráica.

Uns dominam a axiomática derivada desses textos e alguma coisa de Aristóteles, além de terem sinceros propósitos conversadores, mesmo que cheios do final, ou seja, cheios previamente de verdades. Eles gostam essencialmente da conversa e devem achar bom o feed-back de lógica formal que não me é muito difícil dar-lhes.

Com esse primeiro tipo, converso de bom grado, evito os axiomas em si e fico pela laterais a saborear uma e outra operaçãozinha silogística em que conclusões fecham bonitinhas porque as premissas foram bem colocadas. Não ponho em causa as premissas, nem digo que afinal outras dariam conclusões também perfeitas.

Essas pessoas percebem mal que giram na regressão infinita ou, melhor dizendo, que evitam a regressão infinita como se fosse possível parar o infinito em apenas um dos lados.

Dia desses, meu interlocutor queria conversar sobre criacionismo e dizer que era absurdo o modelo do big bang – e tenho certeza que ele e eu ignoramos o Big-Bang na mesma e profunda medida – porque esta criação retrocederia ao nada.

Ainda pensei dizer-lhe que esse nada inicial era a mesma coisa que a Deidade inicial, estaríamos sempre e ainda com o modelinho causual aristotélico. Fôssemos com criação divina, fôssemos com Big-Bang, iríamos sempre tentar travar a regressão infinita num termo ou causa inicial. No fundo, era o mesmo, mas dizê-lo, assim sem mais, era apostatar e escandalizar o interlocutor contra que nada tenho.

Meu conversador indagava o que haveria antes do Big-Bang e isso não era armadilha intelectual, nem triunfalismo prévio do sujeito a gozar o esmagamento do outro por uma verdade pesada; era o dizer sincero de um homem preocupado com isso e disposto a encontrar alguém disposto à conversa e munido de algumas habilidades para o joguinho de causas, efeitos, exclusões.

Assim, ele fixava a criação divina, algo que não me escandaliza, nem me parece mais nem menos plausível que qualquer outra coisa. Mas, não digo isso, pelo menos a quem acho merecedor de respeito. E também não o digo a quem não acho merecedor de respeito, mas por razões diferentes, é claro.

O problema da criação é tão complicado que para mim é melhor posto como um não problema. Qualquer que seja a fórmula, ela é objetável pela evidente insinuação da regressão infinita, porque uma linha – e tempo pode ser precariamente visto assim – infinita não o é apenas num sentido, senão não seria infinita.

Se o sujeito tem fixação fetichista com começo, pouco importa onde o situe, mas importa logicamente que aceite um fim também. Como o fim não é aceite – nem na axiomática que crê numa parusia, posto que ela é fim num plano mas não no todo – o início tampouco é concebível: não há infinito só para um lado.

É claro que pôr um Deus ou o Big-Bang no início permite, para ambos, que se pergunte o que havia antes. Não é um Deus inicial que inibe a regressão, porque virá inexoravelmente a questão do que ensejou este Deus. Assim, no fundo, as duas proposições serão quase as mesmas, com diferenças de graus poéticos e públicos visados. Dá no mesmo, porque Deus ou Big-Bang, ambos podem ter ou não antecedentes.

Há, porém, outro tipo de sujeito conduzido pela axiomática religiosa, assim como outros conduzidos pelas variantes da religiosidade científica. Interessa-me o tipo conduzido pela axiomática judaíco-cristã que, ao invés de diretamente querer falar da criação a partir dos velhos textos genéticos quer transbordar seus valores vulgares a partir de frases feitas, de lugares-comuns, enfim.

Esse segundo tipo tem especial predileção por frases de efeito e especial aversão pelo pensamento um grau mais livre que a média do vulgo. É, basicamente, para não ficar a teorizar nem a colecionar exemplos muitos, o sujeito que gosta de dizer que política e religião não se discutem, que gostos não se discutem, que todo sujeito com mais de trinta anos torna-se conservador se não for burro, que um revolucionário acaba-se aos trinta anos e outras vulgaridades, tão comuns e aceites quanto tolas.

O colecionador de frases é o sujeito crente que as pessoas tendem a tornar-se ele e seus modelos e cheio de júbilo ao perceber um e outro caso que seriam gloriosas conversões próximas à mediocridade reinante e indicadora da normalidade a ser atingida.

Realmente, daria quilômetros de texto o estudo da satisfação do vulgo com o que ele acha oportunidades próximas de converter mais gente à vulgaridade. É a satisfação de quem antevê a conversão do que não compreende para o vocabulário escasso que adota, para o manejo de quatro ou cinco categorias imutáveis de moralidade de escravo, para a tendência ao linchamento e ao julgamento sumário.

O segundo tipo dessa gente caracteriza-se pela falta de autenticidade. São prosélitos da mediocridade, do conservadorismo que se quer disfarçar, da tendência à homogeneização pelo mais baixo, da inutilidade da liberdade de pensamento, do vale-tudo quando se tratar de manter-se a situação social.

Esta falta de autenticidade será revestida de uma mansidão de voz baixa e pausada que não revela conhecimento, mas cálculo frio de dissimulação da coleção de perfídias e baixezas que lhe suportam.

A tolice da frase feita deste tipo é não apenas tolice, mas um deleite de vingança. Os medíocres de todos os tempos e lugares vingam-se, e seu meio preferencial é vaticinar a estupidificação do que não aceitam não ser totalmente vulgar. É a raiva de tudo e todos não serem espelhos de si mesmos.

O homem excelente não se sente atingido por haver o vulgo: ele, talvez, lamente a vulgaridade, mas não a crê contra ele, nem quer ser prosélito do que é, para converter o vulgo. O vulgo, este quer e precisa que vulgares sejam todos.

Voltei, neste escrever, a Ortega y Gasset, como muitas vezes, sem achar que prodigalizo nesse retorno. O homem, referido aos valores, será nobre ou vulgar. Referido a si mesmo, será autêntico ou não autêntico.  

O segundo tipo que desenhei, em traços rápidos, é vulgar e inautêntico. Ele fala de valores moralizantes, o que equivale a falar de nada ou, no máximo, do que acha serem valores, a confundir subjetividades moralizantes e vontade mal disfarçada de homogeneização com valores.

O tipo não tem valores, tem apenas balizas e preconceitos de sobrevivência, recebidos de fora e assimilados sem pensar. Valores são categorias ontológicas e não são axiomas de matriz religiosa e tampouco anti-históricos.

O tipo está em desconformidade consigo próprio, é essencialmente inautêntico, porque insincero ao propor frases feitas e lugares-comuns. Ele não quer que essas tolices sejam modelos do homem excelente, ele quer que todos sejam ele, sem o dizer claramente. Ele proclama a tolerância sem acreditar em milímetro de tolerância e sem nunca ter pensado no que consiste isto.

Ele proclama que não há parâmetros e que gosto não se discute, o que é perto da máxima imbecilidade proponível e ao mesmo tempo não acredita nisso.

O segundo tipo, o axiomático inautêntico, nada discute, não tem gostos, tem raiva profunda e desejo de vingança profundo e fala mansamente. Ele é o tipo apto a vencer…

A discrepância de opiniões não invalida coisa alguma. Um pouco de Ortega y Gasset.

A discrepância de resultados obtidos a partir de um mesmo método invalida uma conclusão ou tese científica especial, em física, por exemplo. Todavia, isso não ocorre em filosofia e, por isso mesmo, o problema central do capticismo – a possibilidade do conhecimento – é um problema mal colocado.

A unanimidade absoluta ocorrerá com a mais intensa tolice que se enuncie, porque unanimidade e tolice em torno à qual ela se forma crescem na razão direta, a primeira na da segunda.

Atraiu-me ao assunto a constante curiosidade que tenho a respeito e pontualmente a leitura do Prólogo à História da Filosofia de Karl Vorländer, escrito por José Ortega y Gasset e publicado na edição da Revista de Occidente da obra orteguiana História como sistema.

Ortega aponta que a barbárie do especialismo, conceito tratado a fundo em um dos artigos da Rebelião das Massas, foi possível devido à perda de toda noção clara, na Europa, de filosofia, a partir de 1850. Nessa época, triunfaram os especialistas, médicos, engenheiros, advogados, físicos, muito sabedores de uma coisa e incapazes de reconhecer seu profundo desconhecimento das demais.

O indivíduo assim formado projeta seu sentimento dominador, baseado na especialidade que domina, para os temas que ignora. Assim, arrogantemente nega os outros temas e ciências.

Na raiz dessa projeção de violência e desprezo para todos os conhecimentos que não seja os do especialista e o orgulho de sua classe, está o fetiche da não dissonância. Ortega vai ao ponto preciso, ao dizer que: Uno de los partos de tal insciencia colectiva fué la afirmación completamente caprichosa de que en disciplina alguna habían discrepado tanto las opiniones como en la filosofia.

Segue afirmando que ver na discrepância doutrinal uma razão para cepticismo é indiferença tão velha como plebéia e pouco meditada. Realmente, essa objeção que se faz à filosofia, a da impossibilidade do conhecimento, baseia-se no antiquíssimo argumento da dissonância das idéias.

Em primeiro lugar, essa dissonância é aparente, porque filosofia é uma forma de conhecimento histórico e essa não discrepa, senão que acontece continuamente. Não se trata, tampouco de ver as coisas aqui sob a dialética romântica de Hegel, que era uma estranha dialética, ela mesma triunfante e termo final da história e consequentemente dela mesma dialética.

Trata-se de observar que as discrepâncias, além de serem muito menos agudas do que possam à primeira vista parecer, são mais cronológicas que conceituais, o que não poderia ser diferente porque isso tudo existe porque existem pessoas. O que há são filosofias e seus homens e seus tempos.

O fato é que elevou-se no senso comum a concordância – e, no limite, a unanimidade – a sintoma da verdade, ignorando-se que pode dar-se concordância e, novamente, até unanimidade, em torno ao erro, também.

Dois erros aqui estão bem evidentes. O primeiro é confundir o resultado obtido a partir de um método ou experiência – técnica de ciências como a física – com resultado derivado de alguma concordância. Ora, a concordância que pode haver em torno à lei da gravitação universal não lhe confere validade alguma, apenas é uma evidente aceitação de uma regra física.

O segundo erro é não perceber que a concordância – e a eventual unanimidade, repetirei exaustivamente – é método da política, que não é ciência ou forma de apreensão de realidade. Filosofia e política são coisas diferentes e a primeira não busca validade na ausência de discrepância.

Por falta de concordância, a ser obtida mediante sufrágio, pode alguma empresa política perder legitimidade, mas não pode a filosofia perder validade por falta desses elementos. É tolo o cepticismo que se fundamente nas variedade imensa de opiniões e teorias, ou seja, na discrepância delas.

Da mesma maneira, é tolo o atéismo por improbabilidade. Ora, isso não é física e não se discute nesses termos. O ateísmo só tem sentido por negação pura e simples, ou seja, por outro teísmo que se lhe superpõe. Tanto é assim, que o teísta que constrói seu Deus com Aristóteles, com causas e necessidades, recebe a objeção nos mesmos termos e métodos Em sentido contrário, imagine alguém objetar Teresa D´Ávila!

Lembro-me bastante que uma vez conversava sobre algo discretamente filosófico com alguém. Não me lembro do assunto, que depois do que ouvi a título de objeção, o assunto tornou-se uma insignificância a ser esquecida. Lá pelas tantas, meu interlocutor disse-me, com ares triunfantes, que só eu pensava daquela maneira!

Ora, meu interlocutor, fetichista da unanimidade, pensava em termos políticos e não percebia que estávamos em outro território, em que a concordância ou discordância, maior ou menor, não era critério de validade.