Falei com meu pai ao telefone e ele disse-me: tua avó está mais surda que tu, vai ser uma conversa complicada. Mostrei a ela aquela crônica sobre o acordo ortográfico e ela riu. Ela disse ele chamou o acordo ortográfico de merda… e riu.
A conversa foi porque ontem minha avó paterna completou 90 anos. Não pude ir a Recife vê-la e meu pai telefonou-me e contou-me da reação dela a esta crônica. A idade avançada faz mais mal que bem, mas algum bem faz. Ela, uma senhora velha, pode relevar o nome feio e achar graça no texto. A idade permite desprezar nomes feios.
O texto é o seguinte:
Impressões luso brasileiras. O acordo ortográfico é uma merda.
Antes que seja acusado de alguma coisa pela palavra mais vulgar do título, quero defender-me com dois argumentos. O primeiro é de bagatela, pois há muito mais vulgaridade escrita por aí, tanto nas formas, como nos conteúdos. O segundo é a autoria da assertiva. Foi Millôr Fernandes quem disse isso, em resposta a um jornalista do Diário de Notícias. Portanto, invoco a proteção devida aos que citam de fonte certa. Não fui eu, mas concordo.
Pretendia escrever sobre outras coisas, mais precisamente a respeito de viagens por estradinhas secundárias, estreitas, daquelas que passam em aldeias e vilas, que serpenteiam nas encostas dos montes, que não têm viadutos enormes. Estradas boas, mas cheias de curvas, que reclamam atenção redobrada e velocidades baixas. Em troca, recompensam com vistas magníficas do interior desta região minhota.
As auto-estradas com pagamentos são mais rápidas, talvez mais seguras, seguramente muito mais caras, e menos propícias a equívocos no trajeto. Se há pouco tempo e há dinheiro, são a melhor escolha. Todavia, se o tempo não é problema, é melhor seguir pelas estradas secundárias. A impressão é de estar-se mais em contacto com o mundo real, passando rente às casas, aos riachos, às matas.
Para todos os destinos há estradas públicas e para quase todos há auto-estradas pagas. Bastante diferente das idéias de concessão que vicejam no Brasil, em que os defensores das estradas pagas nunca se preocuparam em que essas fossem uma alternativa. Já me cansei de ouvir os propagadores das maravilhas da via paga defenderem a concessão de estradas existentes. Curiosa visão essa. Por que raios não concedem a construção de algo novo?
Mas, embora fosse falar destas viagens, acontece que tenho o hábito de comprar jornais, todos os sábados e domingos. E esse hábito é menos danoso aqui que no Brasil, pois os jornais são menos ruins. Os jornalistas são menos atrevidos nas suposições, editorial é editorial, reportagem é reportagem, crítica de cinema ou de livro é isso mesmo e por aí vai. E dei-me com uma matéria de página inteira sobre Millôr, com meia dúzia de perguntinhas, respondidas com o habitual bom-humor.
Sobre o acordo, a resposta foi a frase que titula esta crônica, seguida de outra: A Academia é uma excrescência de velhos tempos. O entrevistador tinha perguntado se o acordo ia colar e se tinha sido uma imposição da Academia de Letras. Parece que Millôr acha mesmo que foi invenção da academia e que acha os dois, a invenção e o inventor, a mesma coisa, que não precisa mais ser repetida.
O autor entrevistado tem já seus oitenta e seis anos e não precisa ficar aos volteios em explicações de obviedades, ou pedindo desculpas ao responder a perguntas de respostas previsíveis. Na verdade, nunca foi dado a isso, nem quando era mais novo, e o assunto é uma grande bobagem, no final das contas, seja-se a favor ou seja-se contra. Talvez Millôr tenha dado uma grande resposta pelo que deixou de falar, pois não disse se ia colar, ou não.
A mim, parece-me que governo português algum, de direita, centro ou esquerda, vai perder tempo e popularidade a tentar impor uma mudança que as pessoas não querem, que não muda coisa alguma nas suas vidas e que não as impede de ler livros em potuguês brasileiro ou africano. E que essa estória toda tende a ser simplesmete um desassunto, à medida que o tempo passa e as coisas mantém-se como sempre. Visto por outro lado, pelo lado brasileiro, fica mais claro ainda que se trata de preciosismo de acadêmico a serviço de editoras.
Nós devíamos fazer um acordo nacional para afalbetizar as pessoas, em português pré ou pós acordo, para além de ensiná-las a desenhar seus nomes. E não sucumbir a argumentos de que essa alfabetização seria mais fácil com uma ortografia purgada de meia dúzia de acentos, hífenes e consoantes. O difícil da estória é a sintaxe e essa muda muito lentamente e independentemente da ortografia.
Mas, é realmente curioso colher as opiniões de escritores sobre isso. Há pouco tempo, esteve aqui em Braga Mia Couto, o fabuloso autor moçambicano. Lançava o livro Jesusalém da maneira como lhe apraz, ou seja, em contato próximo com as pessoas. Chegou à livraria Centésima Págima e conversou com os presentes nos belos jardins. Estava cheio de gente e todos faziam-lhe perguntas, à vontade.
Lá pelas tantas, a pergunta inevitável sobre o tal acordo. A platéia certamente era maioritariamente contra, porque predominavam os portugueses. O autor fez cara de cansado, mas respondeu, e respondeu genialmente. Parou, tomou um pouco de ar e fez um discurso, daqueles pré fabricados, contra o acordo. Quando terminou o discursozinho, a platéia aplaudiu entusiasmada. Ele esperou terminarem os aplusos e entoou um discursozinho, daqueles pré fabricados, a favor do acordo, quase do mesmo tamanho e com os argumentos inversos.
A platéia deu uma incomum demonstração de inteligência, aplaudindo o segundo discurso também. Deve ter percebido a piada e o enfado do escritor em ter que responder a uma bobagem daquelas. Um escritor escreve, com acordo ou sem acordo. A economia de dinheiro das editoras é outro assunto.