O ouro a serviço da feiúra.
Não me lembro se é n´A rebelião dos anjos ou em Os deuses têm sede que Anatole France faz um personagem dizer que a burrice é pior que a má-fé, porque a primeira é incansável e dorme nunca, enquanto a segunda pára para descansar, eventualmente. Trata-se de uma fala de um diálogo, mas pode bem ser tomado por um aforismo, até porque a proposição não é inversível sem perda de sentido.
A comparação de atitudes – muito carregada de valoração, evidentemente – pode ser transposta para outras díades. Claro que se pode perceber aqui a oposição entre involuntário e voluntário e dissolver muito o sentido da proposição, na medida em que se perde o aspecto valorativo. Todavia, é de comparação de termos que andam próximos que se trata.
O caso é que pretendo dizer da feiúra que é pior que o ridículo, porque a primeira afirma-se incansavelmente, enquanto a segunda é produzida mais esporadicamente por fatores variados – incluindo-se a feiúra – e percebida a partir de um juízo não somente estético. O ridículo é cambiante segundo o tempo, o lugar e outros fatores.
É curioso que essa relatividade do ridículo seja proposta para a feiúra, o que revela a maior gravidade da segunda acusação, de que todos querem fugir. De certa forma, tenta-se aproximar muito coisas diversas, porque uma delas é mais temida que a outra. É preciso transformar tudo que se teme: absolutos em relativos e vice-versa.
O novo-riquismo é repleto, tanto de feiúra, quanto de ridículo. A primeira ele esquece, como se não existisse. A segunda ele dilui no relativismo próprio da percepção forjada de dentro para dentro. Porém, ambas estão lá, eloquentes, nos grandes símbolos em que se afirma o novo-riquismo.
O âmbito mais propício às afirmações de feiúra e ridículo do novo-riquismo é a arquitetura e sua filha menor a decoração de ambientes. Os prédios de apartamentos da classe média ascendente brasileira agridem tanto quanto convidam a pensar no que afirmam. São idéias em tijolos, concreto, aço e vidro; idéias impossíveis de se esconderem.
Um desses templos de celebração aberta de si mesmo está muito em evidência, aqui na cidade onde moro. É um imenso prédio de apartamentos para a classe média alta que se passeia nos Land Rovers que invadiram o país inteiro. É um ambiente com a ambição de ser auto-suficiente e permitir ao grupo que o habita isolar-se de tudo ao redor. Ou seja, o sonho do condomínio suburbano de casas – no modelo norte-americano – agora na forma vertical.
Prédios assim têm piscinas, academias de fazer ginástica, quadras poliesportivas, áreas destinadas às brincadeiras infantis, áreas para fazer churrasco e encher-se de cerveja, arremedos de bosques e, o principal, salões para festas.
O prédio mais em moda aqui tem um imenso salão para festas, o que é vulgar, certamente. Invulgar é que esse espaço quadrilátero sem qualquer atrativo especial tem, no centro e sem função estrutural alguma, uma coluna revestida a ouro! Sim, uma coluna, ou pilar se assim se preferir dizer, revestida de escamas áureas.
A coisa, para além de desconcertante e escandalosa, é de uma feiúra que desafia o observador a olhar atentamente a deformidade, sem tirar os olhos com medo ou repugnância. E isso precisamente é o que não pode ser dito. A coluna e seus donos aceitarão, de mau humor, é certo, a objeção do ridículo, que rebaterão com a sincera afirmação da perfeita moralidade da ostentação.
Mas, não é de ostentação que se cuida; não é de moralismo que se cuida. Da mesma forma que alguns decímetros cúbicos de Nardo perderam-se na lavagem dos pés do Galileu, alguns gramas de ouro podem perder-se no bezerro totêmico da classe média alta brasileira. Não há escândalo em pintar paredes a ouro ou mesmo em comê-lo, que isso volta ao pó.
A feiúra, todavia, não volta ao pó, porque dele não proveio. Sua origem é demasiado humana e por isso precisa não ser. É preciso sempre, para os forjadores do bezerro áureo, que seu totem seja visto por um prisma de moralidade, porque de juízo estético correm com as pernas a baterem nas costas.
O novo-riquismo aceita-se como produtor de qualquer coisa, porque acredita-se capaz de estabelecer as próprias balizas de sua interpretação. Certo que aprisionou as possíveis percepções de si e de suas criações, fica à vontade com as aparentes variações e, por isso, não teme o ridículo. As variações estão previamente dadas no âmbito quantitativo e, ao fim e ao cabo, significam nada.
O feio não é parametrizado por essa gente tão moral; ele não se aprisiona por critérios de mais ou menos auto-indulgência: é estranho a essa forma de pensar e, portanto, inapreensível. Evidentemente, o mesmo dá-se com o belo.
Um e outro espécime da fauna novo-rica percebe uma rota de fuga, embora não a consiga trilhar completamente, porque não pode seguir uma rota que conduza para fora, totalmente. Não há fora! Fora, é o perigo. A rota de fuga percebida serve-se da antinomia entre espontaneidade e simulação. Assim, a espontaneidade seria critério de análise do belo.
Acontece que o espontâneo não é o à vontade da falta de graça afirmativa. Ele é, antes, o passear nas possibilidades ou liberdade, se assim se preferir dizer, o que não existe no novo-riquismo, essa forma de ser e estar diametralmente oposta à liberdade. Mas, é preciso confundir a grosseria que se sente à vontade com espontaneidade e liberdade.
Não havia opções anteriores à edificação da coluna de ouro, porque tudo era auto-celebrar-se. Tudo estava pré-condicionado, como em uma espécie de jansenismo social em que todas as manifestações externas são uma só afirmação de meia dúzia de postulados morais de auto-piedade.
O novo-riquismo pede desculpas pelo que é, mas recusa-se a pedi-las pelo que faz. A coluna de ouro é auto-celebração e também um grito por piedade, já que o grupo não se festeja sem algumas culpas. Por serem demasiadas as culpas, não suportam a de fazerem o feio…