Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A grandeza de Lula e a fábrica de remédios em Moçambique.

A postura diplomática brasileira sob os governos do Presidente Lula desagradou profundamente aos grupos liderados por Fernando Henrique Cardoso que, é conveniente lembrar, é co-autor da teoria da dependência.

Em tempos fernandinos, a diplomacia brasileira era agressiva e votava desprezo aos vizinhos sul-americanos e africanos. Era dócil e toda voltada para os Estados Unidos da América e para a Europa. Voltada para os mais ricos de forma subserviente que, em algumas situações, beirou o ridículo e a indignidade.

É conhecido o episódio em que o Ministro das Relações Exteriores, há dez anos, o vaidoso Celso Lafer – vaidoso em terras brasileiras – tirou os sapatos em um aeroporto norte-americano para ser submetido a inspeções de segurança! Desde então, as normas de segurança continuam as mesmas, todavia o atual Ministro Celso Amorim nunca submeteu-se a um procedimento que não se aplica a diplomatas, nas várias oportunidades em que foi aos EUA.

A imprensa cuidou de atacar as iniciativas brasileiras com países africanos e sul-americanos como coisas inúteis, coisas de pobre para pobre. Essa imprensa deve achar exemplar a subserviência e o tirar de sapatos de um diplomata brasileiro nos EUA. Essa imprensa e aquele governo que houve há mais de oito anos devem achar corretos a submissão a uns e a arrogância com outros.

Assumidas essas premissas, eles têm realmente motivos para ficarem com raiva de Lula. Sob o Presidente inculto, o Brasil adotou as clássicas regras de diplomacia entre países soberanos e voltou sua atenção, tanto aos vizinhos próximos do continente, quanto aos separados por um oceano, na África. Notadamente aos africanos de língua portuguesa.

Lula chega a Maputo hoje, levando a Presidente Eleita Dilma Roussef. Ministrará uma aula magna na Universidade Pedagógica de Moçambique, que é integrante da Universidade Aberta do Brasil. Visitará as instalações de uma fábrica de medicamentos antirretrovirais que se está construindo com fundos e treinamento técnico brasileiros. A fábrica – de alta tecnologia – implica investimentos totais de U$ 31 miliões, dos quais U$ 13 miliões foram enviados em equipamentos desde o Brasil.

A Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, estatal – desenvolve em Moçambique um projeto ambicioso, o ProSavana. Trata-se de desenvolver a capacidade agrícola da savana moçambicana, programa que pode, se for exitoso, servir de modelo para muitos países africanos.

Moçambique é hoje o país que mais recebe cooperação técnica do Brasil, sendo certo que isso pode avançar muito mais nesse cenário de crescimento econômico e de integração.

São posturas que devem dar alergias naqueles senhores que tiravam os sapatos para visitarem o chefe.

O may be man, por Mia Couto.

Existe o “Yes man”. Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar.

O May be man vive do “talvez”. Em português, dever-se-ia chamar de “talvezeiro”. Devia tomar decisões. Não toma. Sim­plesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um “talvez” não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

A diferença entre o Yes man e o May be man não está apenas no “yes”. É que o “may be” é, ao mesmo tempo, um “may be not”. Enquanto o Yes man aposta na bajulação de um chefe, o May be man não aposta em nada nem em ninguém. Enquanto o primeiro suja a língua numa bota, o outro engraxa tudo que seja bota superior.

Sem chegar a ser chave para nada, o May be man ocupa lugares chave no Estado. Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniên­cia. Mas o May be man não é exactamente do partido no Poder. O seu partido é o Poder. Assim, ele veste e despe cores políticas conforme as marés. Porque o que ele é não vem da alma. Vem da aparência. A mesma mão que hoje levanta uma bandeira, levantará outra amanhã. E venderá as duas bandeiras, depois de amanhã. Afinal, a sua ideolo­gia tem um só nome: o negócio. Como não tem muito para negociar, como já se vendeu terra e ar, ele vende-se a si mesmo. E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se “comissão”. Há quem lhe chame de “luvas”. Os mais pequenos chamam-lhe de “gasosa”. Vivemos uma na­ção muito gaseificada.

Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be Man, uma oportunidade de negócios. De “business”, como convém hoje, dizer. Curiosamente, o “talvezeiro” é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enqua­dra-se no combate contra a pobreza.

Mas a corrupção, em Moçambique, tem uma dificuldade: o corrup­tor não sabe exactamente a quem subornar. Devia haver um manual, com organograma orientador. Ou como se diz em workshopês: os guidelines. Para evitar que o suborno seja improdutivo. Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opi­nião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

O May be man entendeu mal a máxima cristã de “amar o próximo”. Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao portu­guês, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o “próximo”. É por isso que, para a lógica do “talvezeiro” é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recen­te: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrup­to: em nome da lei, assalta o cidadão.

Eis a sua filosofia: a melhor maneira de fazer política é estar fora da política. Melhor ainda: é ser político sem política nenhuma. Nessa fluidez se afirma a sua competência: ele e sai dos princípios, esquece o que disse ontem, rasga o juramento do passado. E a lei e o plano servem, quando confirmam os seus interesses. E os do chefe. E, à cau­tela, os do chefe do chefe.

O May be man aprendeu a prudência de não dizer nada, não pensar nada e, sobretudo, não contrariar os poderosos. Agradar ao dirigen­te: esse é o principal currículo. Afinal, o May be man não tem ideia sobre nada: ele pensa com a cabeça do chefe, fala por via do discurso do chefe. E assim o nosso amigo se acha apto para tudo. Podem no­meá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. Podíamos falar de uma elevada densidade humana. Na realidade, porém, essa densidade não existe. Porque dentro do May be man não há ninguém. O que significa que estamos pagando salários a fantasmas. Uma for­tuna bem real paga mensalmente a fantasmas. Nenhum país, mesmo rico, deitaria assim tanto dinheiro para o vazio.

O May be Man é utilíssimo no país do talvez e na economia do faz-de-conta. Para um país a sério não serve.

Maputo e os limites da propaganda.

Por que esses bárbaros acham tudo ruim?

Por que esses bárbaros acham tudo ruim?

Um indicativo seguro de algum assunto importante, ou mesmo de alguma verdade, é a insistência com que se lhe negam atualidade e realidade. De vinte anos para cá, o mantra direitista é que não há luta de classes, discurso repetido por pessoas que se pretendem inovadoras, que teriam percebido uma etapa da história que seria a própria negação dela.

Curiosamente, as mesmas pessoas que insistem na inexistência da luta de classes concebem a vida em sociedade como uma competição e abstraem despudoradamente que as condições iniciais dessa competição desconfiguram-na totalmente. Eles admitem uma competição individual e negam, ao mesmo tempo, que indivíduos com pontos em comum formam grupos. Consequentemente, a negação da luta de classes decorre de outra negação, que é essencialmente incoerente.

Claro que os níveis da propaganda variam, conforme o nível dos destinatários. O mais elementar é dizer que a luta de classes não existe porque não se materializa em conflitos visíveis e palpáveis. Ocorre que a realidade ocasionalmente infirma até a propaganda mais elementar.

Há dias que Maputo vive dias de conflitos mais e menos abertos, com saldo de vários mortos e feridos, depredações, fogueiras de pneus e outros combustíveis por toda parte. Significativamente, os conflitos são mais intensos nas zonas mais pobres da capital e de outras cidades do país. Os media usam a terminologia vandalismo, que faz supor agitações sem suporte racional, sem motivações e finalidades.

Não é disso que se trata, contudo. A revolta popular começou com os aumentos de 25% no preço do pão, o que não me parece falta de razão ou de motivação. A solução – qualquer que seja o sentido dessa expressão – foi mais violência, desta feita policial. Ou seja, fica estabelecido que as reclamações são atitudes bárbaras e sem sentido e põe-se a polícia para baixar o porrete nos insatisfeitos.

Segundo as informações do CIA World Factbook, Moçambique tem uma população à volta de 21 milhões, com idade média de 17,5 anos e expectativa média de vida de 41,18 anos! Ou seja, muita gente, muito jovem e destinada a viver pouco. A taxa de mortalidade infantil é de 105,8 mortes por mil nascidos com vida, a sétima pior do mundo.

O PIB per capita de Moçambique é de escandalosos U$ 900,00, já em critério de paridade do poder de compra. Esse indicador, para ter-se uma idéia comparativa, é onze vezes menor que o brasileiro, que ainda é muito baixo.Acresce que 70% da população encontra-se abaixo da linha de pobreza.

Ou seja, trata-se de um país extremamente pobre, extremamente desigual na apropriação das riquezas e com péssimas condições de vida. Nessas circunstâncias as pessoas deveriam estar satisfeitas, calmas e ordeiras?

De uns tempos para cá, a mesma atuação propagandística que divulga a inexistência da luta de classes, insiste também na ocorrência de um milagre econômico na África Subsaariana. Se algo extraordinário economicamente sucede nessas paragens é o aumento da exploração de recursos naturais, notadamente de petróleo e gás.

Essa exploração maximizada de recursos naturais não reverte em qualquer melhora na vida da maioria das pessoas, pois é apropriada pelas corporações que a praticam e alguns corretores delas nos países detentores dos recursos. Ou seja, na verdade, é uma espécie de saque mantenedor das mesmas estruturas concentradoras de rendas.

Ainda que se tratasse de um verdadeiro milagre econômico, com alguma alteração das estruturas produtivas internas, provavelmente seria realizado dentro da lógica concentradora e seus efeitos seriam sentidos pelos beneficiados de sempre, apenas em números absolutos maiores.

Isso é uma bomba de efeito retardado e pode-se tentar retardar mais e mais sua explosão, mas um dia acontece. As detonações preliminares podem ser contidas pelo sistema repressor do Estado, mas cada vez isso torna-se mais difícil e estimulante de maiores reações. Não é falso, absolutamente, que violência é algo que se auto-estimula.

O estranho é achar estranho que o sujeito imerso numa vida de pobreza, precariedades e horrores revolte-se contra a situação. Não é apenas arrogante intelectualmente, como é mesmo burro não perceber a insatisfação. Ela tem parâmetros exatamente nos que a chamam de estranha e bárbara. Ou seja, os dominadores são capazes de explosões muito maiores por motivos muito menores, eles mesmos são o exemplo da luta de classes, no sentido de cima para baixo!

A estratégia da negativa não é intelectualmente sofisticada, nem honesta. Mas, do ponto de vista da propaganda e da ideologia, é a única possível. Há que se convencer o dominado de que a situação dele é vontade divina – ou qualquer outro determinismo – imutável e, assim, é algo que não pode ser questionado racionalmente. Dessa forma, sendo tudo como deve ser, falar em luta de classes é anátema. O doutor Pangloss ficaria satisfeito com seu profundo êxito presente.

O problema vêm à tona quando a realidade desmente a propaganda e os propagandistas ficam, desta vez muito coerentemente, sem compreender o que acontece. E acham que o remédio é mais propaganda e mais pancada. Eles deixam de compreender porque acabam por agir como o traficante de heroína que vicia-se no produto que vende. A repetição da estupidez finda por fazer o repetidor acreditar nela.