O campo das postulações religiosas travestidas em inodora e inerte ciência assemelha-se a essa praga contaminante que são as posições apolíticas. Estas últimas são mais fáceis de se perceberem, porque realmente estão por toda parte e seus disfarces são deveras precários.

A postulação salvífica tecnológica é, digamos assim, mais sutil. Demora mais a percebermos que ela é essencialmente religiosa, embora envergonhada de assim apresentar-se. A vergonha, leva os postulantes a frontais agressões à lógica, a contradições realmente grandes.

Miguel Nicolelis é um neurocientista brasileiro de fama internacional. Ele trabalha com interfaces entre cérebro e máquina, para o estabelecimento de comunicações diretas, não intermediadas pelo corpo, nem pela linguagem. É uma proposta diabólica, realmente.

O cientista gosta de enfatizar o lado mais abstrato das suas investigações, escamoteando um pouco as aplicações possíveis da suas descobertas, nos campos médico e bélico, para ficarmos em duas áreas exemplares.

O discurso é de verniz messiânico e propagandístico, na medida em que não admite uma real contradita científica lógica. Ele encontra-se em campo da analogia, ou seja, da ausência de lógica; não gira propriamente em torno às investigações em si, mas aos supostos efeitos a se produzires; efeitos que, no discurso, necessariamente têm que se admitir desejados.

A propósito desse discurso messiânico, Wilson Roberto Vieira Ferreira escreveu um muito bom artigo, no seu blogue Cinegnose. Ele chama a isso de tecnognose e esmiúça o discurso em suas componentes de proposta de salvação por meio da neuroengenharia.

Adiante transcrevo um trecho, um parágrafo claro, em que se enuncia a falácia da redenção tecnológica, com mestria:

O elemento transcendentalista é evidente na retórica do delírio digital: se Deus puniu o homem com a pluralidade de idiomas (como narra o episódio bíblico da Torre de Babel) para condená-lo à prisão do espírito na incomunicabilidade da linguagem, agora a neuroengenharia vai trazer a solução através do atalho tecnocientífico. Exterminando corpo e linguagem, o potencial do espírito (a Vontade) se libertará.

A proposta da redenção digital de uma punição divina – é necessário assumir esse pressuposto – tem que se servir da analogia, ou seja, da falta de lógica.

Lógico seria o postulado: se Deus puniu o homem com a incomunicabilidade da linguagem, só Ele pode suspender a punição.

O que é claro fica anuviado pela analogia, que viola os termos da proposição e postula uma fuga. Ora, se há Deus no postulado, nada há fora Dele. Não será o punido, o homem, a superar a punição, extinguindo a própria pena – a linguagem.

Por outro lado, a enunciação da redenção tecnológica serve-se da confusão. Ora, a saída da prisão dar-se-ia pela superação da intermediação pela linguagem e uma consequente libertação da vontade – o potencial do espírito – por meio da neuroengenharia.

Sim, mas a neuroengenharia é uma linguagem!