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Medicina: e a vítima ainda precisa compadecer-se do algoz!

Esse vermelho pode ser lavado…

Dói onde?

 

Convém dizê-lo muito claramente: os serviços médicos, no Brasil, são muito ruins para os que não os podem pagar aos bons profissionais, que não mantém qualquer relação com o Estado.

Os restantes, públicos, semi-públicos ou prestados por meio de seguros e planos de saúde são ruins e caros. A parte evidente do problema é falta de dinheiro e de rigor, embora nossa forma distorcida de ver insista em bobagens laterais como defeitos de gestão e outras coisas mais subjetivas.

O custo elevado explica-se, basicamente, por duas coisas: 1 – equipamentos e procedimentos caros, muitas vezes desnecessários, que precisam ser remunerados; e 2 – escassez de médicos, ou seja, pouca oferta de profissionais em relação à demanda pelos serviços.

O preço de um serviço não escapa da lei básica de procura e oferta. Há poucos médicos e profundamente mal distribuídos no território do país, ao tempo em que há muitos doentes. Assim, podem cobrar caro pelo trabalho; é compreensível que assim seja.

Condicionar a prestação de um serviço essencial a remunerações altas ou muito altas é uma chantagem que se pode fazer e não há no termo chantagem um conteúdo moral ou axiológico, é apenas o nome da postura. Já se faz e tem grande êxito para um dos lados, o dos prestadores do serviço.

Os usuários dos serviços público e semi-público nunca estiveram bem, sempre foram mal atendidos e sempre viram claramente que a pobreza não pune duplamente, senão infinitamente. O que têm a perder é pouco, porque só se perde o que já se teve.

Acontece que ao absurdo costumam-se ajuntar mais absurdidades, porque nada está tão ruim que não possa piorar. À situação objetiva de mau atendimento a preços elevados, acrescenta-se um discurso piedoso dos médicos, que pedem à doente sociedade não apenas que lhes pague bem, mas que compre seu discurso, que se apiede dessa classe de filantropos, de abnegados.

A lógica da justificação moral faz dessas obras, ela não se contenta com subjugar objetivamente, ela pretende que a servidão seja voluntária, de corpo e alma, sincera, bovinamente mansa. O sujeito que vê um filho morrer em um hospital público tem que antes chorar algumas lágrimas para o coitado do médico que, infeliz, tem que ter três empregos para poder custear as prestações de um Range Rover de R$ 400.000,00.

A vítima tem que se apiedar do algoz, antes de pensar em si mesma. Ou seja, ela tem que imbecilizar-se a ponto de abstrair-se e mergulhar na servidão ampla, aquela que entrega tudo, o corpo, a força de trabalho, a capacidade crítica, a percepção da realidade, a percepção de si. Não basta sucumbir, tem que sucumbir dizendo que assim quis.

Essa lógica da justificação percebe-se, por exemplo, na imprensa, que não pode deixar de tratar do assunto da má prestação de serviços de saúde, pública e semi-pública. Ao invés de tratar do assunto com objetividade e considerando o interesse público e dos usuários, trilha o caminho das névoas.

O cerne de quase todas as matérias jornalísticas não está no serviço, está nos interesses dos prestadores dele, seja dos administradores públicos, seja dos médicos. Faz-se uma confusão dramática, escandalosa, meio histérica, mas o viés não é de abordar-se a coisa objetivamente.

Leio um jornal que dedicou três páginas ao assunto, muitas delas repletas de lamentos de médicos, que têm que ter muitos empregos para viverem. Se fosse jornalismo sério, diria para viverem de que maneira os médicos trabalham em mais de um serviço e de que maneira vive a população que recorre a tais serviços. Jornalismo é comparação, também.

Se fosse jornalismo sério, dir-se-ia que ter muitos empregos, em larga margem dos casos, é simplesmente ilegal, porque os horários formais são incompatíveis. Só são materialmente compatíveis porque os médicos não cumprem os horários formalmente contratados.

Se fosse jornalismo sério diria que muitos médicos professores de instituições federais de ensino aderiram ao regime da dedicação exclusiva, voluntariamente, porque este regime é facultativo e paga mais. E que o optante pela docência exclusiva não pode desenvolver qualquer outra atividade, embora isso seja solenemente ignorado e conte com a ampla complacência.

Mas, praticamente não há jornalismo sério, porque ele atende aos interesses dominantes, é claro.

 

 

Abram-se faculdades de medicina em cada esquina!

Pode ser bom escrever com raiva, desde que se saiba bem estar possuído por tal inclinação. Saber-se disso já é deixar a raiva escoar. E, escrever nesse momento mantém a incisividade que o passar do tempo pode retirar.

A escassez de médicos e outros profissionais do tratamento de saúde cobra um preço enorme da sociedade. E gera boas remunerações para os que aí estão, mas não é disso que se trata, não se trata de ganharem bem ou mal, que entrar nessa discussão é cair voluntariamente em armadilha.

O problema é do outro lado, ou seja, do lado dos destinatário dos serviços. Esses pagam – ou o governo paga por eles, embora haja médicos que recebam dos dois – e recebem um serviço ruim! Recebem um serviço pouco, qualitativa e quantitativamente e demorado e arrogante e que se supõe impossível de ser de outra forma.

Abram-se faculdades de medicina em cada esquina, pois. Aumente-se o número de médicos, para que o serviço melhore, ao menos quantitativamente e que tenha reduzido seu componente de arrogância, derivado direto da escassez.

O argumento elitista e sofístico contra essa ampliação gira em torno a qualidade ou, melhor dizendo, a uma possível queda da qualidade dos profissionais. Esse argumento é, ele próprio, imensamente arrogante, pois baseia-se na suposição de que a qualidade de todos os profissionais é grande.

O que é grande, na medicina brasileira, são os investimentos materiais, em equipamentos, em clínicas com assinatura de arquitetos que se poderiam chamar decoradores do mau-gôsto dominante de cada ciclo de dez anos. Ontem, mais doirados, hoje mais painéis escuros, amanhã qualquer bobagem visual que a moda dite.

Só piora o que é bom, deve-se ter isso em mente, bem fixadinho, para evitar os raciocínios de inverdades óbvias. E a saúde, serviço público ou privado de resolução e criação de estados mórbidos não vai bem, neste país. É difícil fazê-la pior do que está.

Os grandes médicos são poucos, como em qualquer outra profissão. E isso faz sentido, porque os grandes problemas clínicos também são poucos. E os grandes médicos são precisamente aqueles que não se ocupam de fazer o discurso contra o aumento do número de cursos e de profissionais, porque sabem que isso é uma questão estatística.

A enorme maioria dos problemas é trivial, algo que um profissional que saiba ler e escrever e tenha boa-fé resolve. O grande problema, enfim, é de disponibilidade e de não se entregar à estupidez absoluta. Havendo uma e não havendo a outra, estará tudo bem.

Mas, os preocupados com a manutenção da reserva de mercado discursarão bravamente, eles mesmos que não fazem mais que atender em escala industrial, utilizando 10% de alguma ciência médica que tenham decorado na faculdade e tenham-se apressado em esquecer, ao depois de receber a carteira do CRM. É natural, quem faz reclama de quem fará o mesmo.

Mas, o triunfo do discurso pela qualidade – pelos que não trabalham com ela – implica na manutenção das esperas de três ou quatro horas por alguma bobagem, implica nas mortes de pobres em hospitais públicos, implica nas cobranças duplicadas ao governo e aos pacientes.

A questão é saber-se se o país, um conjunto discretamente maior que o número dos médicos, quer isso.