Devo dizer infra-humano e intranscendente, para evitar dubiedades e previsíveis abordagens oriundas de platonismo das massas.  Não se trata de afirmar o humano como bom ou mau, não se trata de qualquer coisa a partir desse moralismo derivado da lei de um legislador ausente.

Trata-se do infra-humano por aquém da potência, por aquém da nobreza, por aquém da auto-percepção, por humano, enfim, pois que o mais carrega o menos em si. Só assim percebendo-se a questão, escapa-se das armadilhas da bipolaridade que resulta da moral de escravos.

A moral da justificação, como se a vida se justificasse, ou por convenções sociais, ou por recurso ao externo, é precisamente a mantenedora do infra-humano. Do que é apenas quantitattivamente diferente do humano, porque qualitativamente são idênticos, um está no outro.

Também não queria fazer o mais tênue recurso à noção de utilidade, para não gerar confusões, a lembrar de utilitarismo como corrente filosófica. Todavia, é necessário dizer-se que o infra-humano vê-se também no inútil, naquilo que é inútil para fazer atuar a potência do Humano.

Escrevo essas linhas mal conectadas a propósito de algo que me repugna: pessoas adultas a maltratarem animais. Falo em adultos, porque as crianças são outras pessoas, maltratam bichos, outras crianças, objetos, tudo, em maior ou menor proporção, a variar de uma para outra. Não falo de gente a maltratar gente, porque isso é outro assunto, que também tem a ver com o infra-humano, mas é outro assunto.

Foi bom ter mencionado a utilidade, para não precisar alongar-me sobre os bichos que matamos para os comermos. Sim, porque eles os bichos fazem a mesma coisa e ficamos, portanto, bem explicadinhos, todos nós, os que pensamos pensar e os que pensam sem se pensarem.

Nunca apreciei os jogos de caça, fossem de raposas, de aves ou de peixes. É um jogo de morte que as pessoas deviam jogar entre si, ao invés de fazerem simulacros com as caças sempre perdedoras. Um combate de morte entre gladiadores é muito mais nobre que uma caça à raposa, que é decadentismo puro.

Mas, os jogos de caça, em geral, têm ao menos uma vantagem: a vítima é abatida instantaneamente. Os maus tratos que atingem gatos, cachorros, jumentos, cavalos, bois, pássaros, são torturas precendentes a uma morte agoniada.

Uma mulher bate com um pau em um cachorro ou em um gatinho até que a cabeça dele estoure, perca a consciência, agonize com movimentos involuntários de patas já não comandadas por um cérebro morto. São imagens que não saem da vista e ficam a repetir-se em níveis diferentes e mais depurados de escândalo e asco.

Asco pelo infra-humano, que é plenamente capaz do mesmo com qualquer ser ou coisa superior a si mesmo, como contra o humano ou contra os bichos, ambos superiores ao infra-humano. O infra-humano reconhece no animal, sobretudo nos mamíferos, a nobreza que ele não tem, a nobreza de ser só o que é e conhecer sua precisa dimensão, a extensão de suas vontades. A inveja, que o infra-humano tem em doses imensas, fa-lo agir, portanto.

É assustador perceber que as pessoas fazem exatamente o que aceitarão que se faça a elas. O contrário dessa afirmação é o lugar-comum repetido, mas não é verdade. Elas estão no jogo, no mesmo. Elas, no fundo, aceitam muito bem as regras do jogo, por elas mesmas feitas e consagradas na prática.

O escravo bate e mata com avidez e gozo porque baterão nele e o matarão os outros escravos e os escravos com rendimentos financeiros de senhores. Ele faz o que julga ser uma questão de oportunidade, ou seja, põe para fora toda a sordidez e violência porque seu mundo é sordidez e violência. Os bons exemplos não valem coisa alguma – só frutificam em terra apta – os maus têm enorme força, são o normal…

Frederico-Guilherme Nietzsche caiu doente irremediavelmente – louco, diz-se – precisamente no dia em que agarrou-se a um cavalo que o cocheiro açoitava, em Turim, em janeiro de 1889. É óbvio que a loucura – essa que não há palavra mais precisa a denominar – já se instalava há tempos. Mas, é muito significativo perceber qual foi o evento capital a desencadear a instalação definitiva da compreensão profunda.