Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A recompensa da tolice.

Recentemente, em Salvador da Bahia, um grupo de quatro pessoas jovens foi a um restaurante aparentemente sofisticado, para almoçar. Consta das notícias sobre o banal acontecimento que os convivas pediram vinho branco.

O vinho branco em questão, duas garrafas pedidas sucessivamente, foi um nobre produto da Adega Cartuxa, da Fundação Eugénio de Almeida, sediada no Alentejo.

Duas garrafas de Pêra Manca branco, pedidas banalmente…

Os convivas pediram a conta e ficaram, aparentemente, muito surpresos com o preço de cada garrafa, que foi de 1.650 reais, que eles disserem ter visto e entendido como sendo de 165 reais. Ou seja, um engano de um zero. É certo ir a restaurantes caros com a alma leve e desatenta para zeros.

Esta parte da surpresa e indignação com a conta foi filmada e lançada na plataforma de compartilhamento TikTok. Não vi o tal vídeo, somente li uma notícia sobre o acontecido.

A hipótese do engano, com a leitura errada do preço, é muito plausível, dado que se tornou elogiável ser desatento, superficial e despreocupado com o que quer que seja. O sujeito olha a carta e diz ao garçom: traz um desse.

O engano é muito mais plausível que a encenação planejada desde o início. Os convivas evidentemente não tinham qualquer idéia do que é uma Pêra Manca. Se tivessem, saberiam que custa caro.

A partir desta constatação, é tentador dizer que se tratava de quatro tolos superficiais desfrutando de suas superficialidades. E não deixa de ser isso precisamente, mas há mais coisas.

Se ainda vivêssemos por régua mais cartesiana, um episódio destes, em que as pessoas pedem coisas que não conhecem, seria mais um banal daqueles em que a ignorância gera o prejuízo financeiro.

Porém, dois amigos lembraram-me algo. Esse prejuízo deve ter sido indenizado pela plataforma TikTok, tamanho o número de visualizações que esta banalidade gerou. E, de fato, é bem provável que tenham sido de alguma forma recompensados pela tolice.

Aí está a insinuação do novo. Que as massas sempre cobram um direito à irresponsabilidade, ficou bem descrito estabelecido teoricamente desde o grande livro de Ortega y Gasset, na década de 1920 do século passado.

Nunca será ocioso esclarecer que massa, aqui, não é algo que se defina por classe social. Antes, é um tipo humano, uma forma de estar no mundo.

Cobram direitos sem obrigações correspondentes, acham que a abundancia material vem do nada, que as posições sociais são eternamente estáveis, sentem-se seguras, enfim. Veem piada na guerra, quando afinal conseguem vê-la aproximar-se, mesmo que ela se anunciasse aos gritos há anos.

Mas, o risco da tolice não era coberto por este estado mental. Esse risco ainda havia e meio como jogo. A tolice era um pouco como a vigarice. Se o embuste desse certo, ótimo, mas se desse errado que se suportassem consequências.

Não que tolice ou vigarice fossem desestimulados, que nunca foram. A tolice é um meio de controle social eficiente e a vigarice uma grande liberação de energia humana. Mas funcionavam num modelo causal mais ou menos previsível e não ensejavam recompensas quando vinham à tona.

Recompensar a tolice é tática genial na engenharia social de massas totalmente incapazes de pensamento crítico, autônomo e histórico e de ponderar riscos e a necessidade de esforços. Isto insere-se na lógica de cassino, ou seja, tudo pode vir a dar certo, a depender a sorte e da sagacidade do jogador.

Sagacidade é o termo certo, a afastar esforço e estudo. Ou seja, com sorte e a conjunção astral adequada, a tolice pode gerar recompensas.

A questão é que tipo de sociedade pode ser gerada quando estas crenças instalam-se…

A perda do senso trágico, a crença no remédio, ou sem passado e sem futuro.

Mansidão não é delicadeza, rebelião difusa não é coragem. Covardia não é sábio cálculo. Afagos gratuitos não são estima de iguais, direitos não são antíteses de obrigações. Ignorar o passado não é aceitar condição para que haja presente e futuro. Tudo isso são sintomas de algo fartamente abordado por Ortega y Gasset, a que sempre retorno.

Muitos viram a cara às constatações orteguianas, talvez porque a clareza dele agrida os superficiais que gostam de barroquismos e sentem ojeriza pelas abordagens aristocráticas e históricas. Menor número ainda é dos que leram e perceberam constatações similares em Unamuno, ainda que vertidas em termos quase obscuros e aparentemente místicos.

Ainda menor é o número dos que perceberam a advertência na arte narrativa ficcional, seja porque leem romances em busca de entretenimento, seja porque acham que romances são formas puras, duas formas de alienação próprias de todos os tempos, não somente do atual.

Agustina Bessa-Luis percebeu muito bem o que é a perda do senso trágico, que conduz ao viver o presente contínuo, isento de riscos, possibilidades, pleno de remédios sempre cinicamente negados mas sempre acreditados. Presente de discussões compartimentadas em escaninhos acadêmicos, científicos.

Mas, no que tange ao romance e à romancista também, sempre predominará numericamente o ver obra, ou como ficção totalmente abstrata, ou como relato fiel de acontecimentos com nomes de personagens trocados. As obras do romancista bom, como Agustina, não são, nunca, uma dessas coisas somente. Aliás, um romance a merecer este nome nunca é criação do nada ou reprodução de fatos.

Claro que ele não é, num autor bom, livro de recomendações ou de previsões, ou de recriminação ou de julgamento moral de um tempo e de suas pessoas. Ele, o romance, é antes de tudo história, por mais aparentemente atemporal que seja, por mais aparentemente abstrato e desumanizado que seja. Incluso, cabe aqui lembrar a riquíssima observação de Ortega de que as abstrações artísticas do início do século XX eram reação aristocrática meio pueril.

O tempo de hoje – que não sei precisar se começou há setenta ou cem anos, ou ainda mais – é um profundamente seguro de si, como a acreditar em progresso material e civilizacional imparável, a permitir ganhos de acumulação material e de direitos sem regressos.

Tempo de certezas amparadas em ciências ou pseudo-ciências, certezas absolutas quanto às afirmações e aos seus contrários, porque há ciência para todos os lados, porque ciência tem lado ou veio a ter, tamanha a incerteza certa a que dá suporte.

Parente próxima dessa certeza no progresso favorável é a crença em remédios para tudo, ou seja, em que as coisas, todas elas, têm solução. Chega a ser fetichista esta crença, porque chegou-se a ponto de reputar todas as coisas passíveis de remediação, o que reflete a adoção de juízo moralizante para tudo.

Acredita-se em remédio até para o que não se pode abordar em termos de conserto, porque não se cuida de acertos ou de desacertos, mas de coisas ou de opções ou de falta de opções. Aqui, percebe-se que a crença nos remédios é parente também da vontade de mandar nas outras pessoas, impondo-lhes os comportamentos estandardizados aceites quase unanimemente.

Esse estado de coisas, com este tipo de gente dominante, leva à incomunicabilidade. O sujeito que supostamente tem alguma inteligência e talvez alguma cultura formal, fala para ouvir o eco do discurso pré-fabricado que fez. Ele não fala para ouvir alguma coisa, fala para receber a confirmação da matéria de revista que também foi lida pelo suposto interlocutor.

Perguntas não são perguntas; são chances dadas ao interlocutor de deixar claro ter bebido na mesma fonte de padronização do perguntador. Os conversadores são duas paredes ou talvez dois espelhos a se refletirem e amplificarem. Esse ressoar de ecos tem o efeito de amplificar o que há de pior e de filtrar, deixando passar as partículas maiores e concentrar o discurso no seu núcleo.

O núcleo purificado de um discurso pequeno burguês neo fascista é aquilo que resulta da purga de tudo que fosse tolerância meio espontânea. Resta o escândalo padronizado, as sentenças moralizantes que devem tudo à liberdade perdida voluntariamente, porque de resto servia pouco ou nada…

Pós escrito breve: a menção a Agustina Bessa-Luís deve-se a ser escritora excepcional, que não se envergonha de apreciar história, não se envergonha de ser aristocrata e não se envergonha de escrever a explicar o que reputa passível de explicação. Mais um volume de Agustina alcançou-me, de surpresa, vindo pelos correios, fruto da imensa gentileza de um amigo inteligente que pouco fala.

Massas e retrocesso.

Não citarei Ortega y Gasset, Tarde, Debord e outros mais que me vêm à cabeça agora e a propósito dessa puerilidade que é a crença na impossibilidade de retrocessos. O que os autores disseram, evidentemente, é citado implicitamente; sempre é assim quando se escreve: citações se fazem a todo tempo.

As massas perdem-se no aprofundamento de suas massificações, o que não tem a ver, imediatamente, com suas situações financeiras, mas que terá sim, mais tarde ou cedo, implicações deste tipo. Quero fazer a advertência nunca demasiada de que massa não é sinônimo de pobre; é algo que tem com espírito de manada e com negação da história e da vida pública, basicamente.

Há também banqueiros, para recorrer ao exemplo máximo do pertencente ao máximo grupo dominante, que são massa, porque acreditam no que fazem, ou seja, no seu contributo à massificação, e não acreditam, por outro lado, que possam ser tragados nos processos enlouquecidos que sempre culminam com catarses de violência e desgregação.

O senso comum acha que o mundo é dado, que ele, como está aí, foi dado, surgido de um nada ou, no máximo, que é resultado da gestão de meia dúzia de fatores arranjados e rearranjados por alguns vistuosos que têm total controle da gestão. Acha e vive conforme acha, e grita aqui e acolá contra alguma bobagem o grito que lhe foi ensinado ou permitido.

Acreditar que tudo aí está porque assim deve ser é negar a história e, de certa forma, pensar a partir de um minúsculo sistema causal de curto alcance. Sisteminha que considera algumas combinações possíveis e serve-se de dados embaralhados e nebulosos de pouco tempo. É, diria, um quase não-pensar, pelo tanto de negativa de potencialidades que implica. Nem resulta em criatividade, por um lado, nem é uma postura mental ao menos conservadora.

O retrocesso sempre foi discutido. E, para que se o discuta, é preciso ter em mente alguma noção de avanço ou, pelo menos, aceitá-la. Porque, se avanços não existem, se é uma idéia inválida, a discussão perde todo o sentido. Paradoxalmente, a idéia de avanço é vastamente aceita e difundida ao tempo em que o retrocesso, ou é negado, ou simplesmente não cogitado.

Ora, se se aceita que a história avança nos seus aspectos sensíveis – melhora da qualidade de vida, aumento da disponibilidade de bens, aumento de paz social, redução de atritos sociais, redução de violências – é necessário admitir que o retrocesso é possível, e mais que está sempre à espreita. O avanço pressupõe qualquer base comparativa e as comparações podem evidenciar reduções qualitativas e quantitativas de algum dos termos comparados.

Admitir o avanço e o retrocesso significa reconhecer que a vida faz-se de atos sucessivos, encadeados não necessariamente segundo alguma norma de causalidade, mas encadeados e sucessivos. A vida coletiva, pelo menos, pode ser percebida assim, embora a vida pessoal, de si para si, puramente subjetiva, se essa dissociação absoluta for possível, atenda a outra lógica.

Ora, se os fatos da vida coletiva encadeiam-se e sucedem-se está claro que o processo pode andar em qualquer direção, mesmo que não ande para trás, evidentemente, no sentido de se desfazer e voltar no tempo. Não há retorno no tempo, por sedutora que a idéia possa ser, mas há retrocesso no estágio de união social dos grupos humanos, por perda de vitalidade e de referências históricas.

Hoje, especificamente, vive-se uma crise financeira na Europa que é um retrocesso evidente no processo de construção de sociedades ricas e relativamente pacíficas. Ele é percebido materialmente nos endividamentos, no aumento da criminalidade, na diminuição das liberdades, no terror de Estado, mas os sentidos captam os sintomas ao mesmo tempo em que a desrazão não percebe o fluxo do rio. A desrazão está boiando na superfície do rio, sem saber mesmo se é rio ou mar e se sopra vento…

Um dos aspectos mais evidentes da massificação é a negação do espaço público, ou seja, a negação da política. Tenho para mim que esse ponto específico foi objeto de ações deliberadas de certos grupos dominantes, que perceberam a boa acolhida que a idéia teria nas massas. Coaduna-se a negação da política com a crença no mundo dado e com a negação do retrocesso. A política tornou-se algo inútil e reservada aos mesmos profissionais de sempre porque, afinal, tudo é e será conforme tenha que ser.

Aliás, as coisas são e serão conforme uma classe de especialistas – iniciados seria possível, também – dispuser, em atenção a métodos de gestão previamente dados e condicionados. Ou seja, o pensamento massificado é dócil à noção de falta de opções, porque já aceitou a de inutilidade do âmbito político propriamente dito, aquele que age no espaço ideológico e histórico.

Assim, o retrocesso bate nas portas de a, b e c, que o sentem nitidamente mas não no percebem como coisa histórica porque foram apagados de qualquer possibilidade de pensar que há uma história. São pontos que não se relacionam senão para formar um pequeno plano. E sempre se relacionam os poucos pontos para formar vários pequenos planos, entrelaçados como em uma novela cujo enredo vai do nascer do dia ao pôs do sol.

O pensamento massificado não consegue, nem dissociar os pequenos planos superpostos do drama cotidiano, nem associar todos os pontos que sugerem um enorme plano. Fica-se pela metade, no rancor de conversa de café e no alívio de poder gritar um pouco e ver a novela à noite. O espetáculo da realidade leva o homem-massa espectador a saber-se platéia somente e a aspirar ao impossível protagonismo a partir de um grito desde a platéia.

É situação como se houvesse um consenso sobre a existência de um consenso. Uma imagem refletida em dois espelhos perfeitamente alinhados, em que qualquer desvio é impossível e um plano superpõe-se a outro. Está ruim porque está ruim… e pronto.

Penso, nesses termos, em algo do Brasil: a discussão da evidente invalidade da lei de auto-anistia passada pelo regime ditatorial, em 1979. Tecnicamente, a lei é de impossível coexistência com a constituição passada em 1988, mas os disfarces mantém-se. Historicamente e politicamente, porém, a coisa é mais dramática que juridicamente.

Nos âmbitos hitórico e político, a questão é quase totalmente obstada pelo pensamento massificado. Ele não somente levou o senso comum a perguntar-se para quê história – que ainda seria uma pergunta, embora já respondida – como o fez não pensar em história, nem mesmo sob qualquer ótica utilitarista de superfície. Ou seja, o mais comum é nem cogitar de história e o mais sofisticado que há é a cogitação a partir de superficialíssimo utilitarismo: para quê?

Aqui age a lógica do desassunto, a coisa simplesmente não se conhece. Não é que seja algo remoto e brumoso, é que não existe para a maioria. Essa mesma maioria, quando apresentada à questão e a alguns fatos, alterna surpresa e abordagem padronizada pela sua massificação. É quase totalmente impermeável o senso comum, que não se deixa seduzir por qualquer curiosidade.

Nesse caso, operam os elevados níveis de pobreza e de ignorância formal do Brasil. Quem viveu certa época, provavelmente fê-lo em luta diária para sobreviver e desprovido de quaisquer instrumentos de pensamento e de informações. Esse esquema é o do conservantismo baseado na escravidão tão profunda que nem se entrevê nalgum momento de distenção. Aqui, o mundo não passou na janela, a janela era um espelho e o mundo passou-se de dentro para dentro.

Acontece que se anuncia uma suave descompressão, que as maiorias tornam-se um pouco menos pobres e que se vive uma aparente democracia. Mas, isso vive-se com pessoas que há muito pouco eram mais insignificantes do que são hoje. Terão memória de alguma inferioridade material passada e só. Não há articulação dessa breve memória de um menos material recente com outros menos que a ela se relacionam.

O ambiente não é propício ao avanço que consiste precisamente em saber que o retrocesso é possível. E a que se vejam claramente os referenciais históricos a permitirem saber-se quando há avanço ou retrocesso. Não faz muito sentido para as massas que convenha conhecer a história e que convenha punir delitos para que eles não tornem a acontecer porque afinal vale a pena.

Tão ridículo que chega a ser engraçado.

Não busco, nem afirmo limites para a tolice, porque não existem. Tampouco me assusto com a desimportância tratada como assunto sério, mas certos casos desse triunfo massificador realmente chamam a atenção.

Lê-se no portal de internet iG o seguinte: Vinho e cinema: veja qual vinho combina com seu filme predileto ao Oscar 2011.

Não vi o negócio do vinho, até porque nunca vi Oscar, como nunca vi premiação alguma para os maiores vendedores de algum setor comercial. E, por outro lado, não preciso de desculpas para tomar vinho, ia-me quase esquecendo de apontar, e acho que vinho combina ou não com comida.

Isso que fizeram com vinho e filme predileto, fazem-no com tudo, oferecendo receitas e sugerindo relações entre coisas, que de tão tênues e superficiais parecem com o espírito público de algum político.

E o público gosta e consome essas receitas, sente-se homenageado com o zelo de algum especialista que cuidou de pensar em algo destinado a ele, público. Ele que provavelmente acha chique falar em vinhos e em filmes de Oscar – imagine-se, então a relação dessas duas coisas – mas provavelmente não tem das duas qualquer idéia própria ou mais profunda.

Alguém parará a meditar que a relação entre um vinho e um filme de que gosta está precisamente no gostar de ambos e só? E que, sendo assim, a receita mágica dessa associação não pode vir de fora?

É interessante que isso funciona porque as massas são profundamente infantilizadas, têm que ser guiadas e cuidadas por oferecedores de gostos e opções pré-ordenados, têm que ser instruídas sobre como fazer isso e aquilo, sobre o que deve ser considerado chique. É a mesma infantilização que leva a que se creia ter um catálogo de direitos sem correspondentes obrigações.

Que leva a crer nas possibilidades infinitas de sempre se desculpar dizendo que algo foi sem querer-se. Que leva a crer que os limites nunca foram atingidos e quando forem não haverá consequências.

A mesma lógica, enfim, que encontrou o melhor protótipo no senhorzinho satisfeito, a figura que precisa de uma recomendação de vinho adequado a filme e que se revela capaz de qualquer violência ou absurdo e posteriormente invoca a própria ignorância em defesa.

O vinho que combina com seu filme predileto!