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Uma conversa com Machado. Por Alcides Moreira da Gama.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

O amigo e mestre Andrei solicitou-me escrever algo sobre Machado de Assis. Nos tratamos mutuamente assim: mestre. Mas o discípulo sou eu. É um desafio e tanto. E, sinceramente, não sei se sou capaz. Mas, mesmo cônscio disso, vá lá, aceitei o desafio.

O que dizer sobre Machado? O Brasil, apesar de tudo, é um país em que, de quando em quando, surgem agradáveis surpresas. Muitos cidadãos desprovidos de condições mínimas para galgar uma vida digna conseguem vencer barreiras dificílimas para chegarem a um patamar social razoável.

Apenas para citar dois exemplos: todos conhecem a história de Lula, criança saída dos confins do agreste pernambucano, torneiro mecânico, semialfabetizado, como pejorativamente dizem, chegou a ser Presidente da República, deixando o cargo com uma popularidade excepcional; meu pai, sem a mínima condição social quando criança, sendo em algumas ocasiões rejeitado em ambientes públicos por conta de sua paupérrima indumentária, estudava em bancos de praça, pois não havia energia em casa, chegou a passar em vários concursos públicos, alguns na primeira colocação, logrando êxito também no vestibular para Letras, tendo abandonado o curso.

Por que cito esses exemplos? Machado foi desses sujeitos. Mulato, nascido em sociedade ainda escravagista, gago, epilético, fez o que fez. Verdadeiras obras primas da literatura brasileira, elegantemente bem escritas. Ele, agora do outro lado, assim com Brás Cubas, deve rir-se de nós, por tentar querer desvendar sua vida depois de morto.

Permita-me, Machado, indagar-lhe o porquê de tanta ironia nas suas obras. Parece-me que ninguém escapa de suas tintas. Percebo que é homem letrado e muito bem informado dos fatos políticos de sua época, mas não consigo captar se você – permita-me tratar-lhe assim – é republicano ou monarquista, se defende a abolição ou não.

É conhecedor das Escrituras, mas não se mostra se é ateu ou não. Talvez você me responda que são apenas obras de arte e que não retratam realmente a sua vida particular. Mas, eu na minha insignificância, insisto em dizer que os autores das obras de arte sempre querem transmitir algo. E você continuará rindo, afirmando que quis dizer sim algo. Na verdade, muitas coisas.

O nosso problema, Machado, é que nós, que não somos gênio, queremos adentrar na mente de um, ainda mais quando ele está morto. Queremos chegar aos seus pensamentos, suas ideias, por meio de suas obras. E aí alguns chegaram a várias conclusões sobre sua vida particular. E você responderia que se é particular não era para ser descoberta. Mais uma ironia de sua parte.

Por que não teve filhos, Machado? Você responderia que sua vida com Carolina foi a melhor vivida. Os críticos literários chegaram-lhe a diagnosticar infertilidade, e você continuará rindo de nós, indagando-nos se isso faria diferença. Afinal, revista de fuxico é do tempo de vocês e não da minha época.

Mas, Machado, falando nisso, se você estivesse entre nós hoje, o que faria? Você responderia que não faria nada, pois suas obras foram completas e continuam atuais.

Machado, isso não seria uma ponta de orgulho de sua parte, assim como ocorreu com Lalau? E você responderia que o orgulho de Lalau sou eu quem o afirma. De mais a mais, aqui do outro lado não existe orgulho. Aprendi isso com Brás Cubas.

A propósito, diria-me ele, curioso leitor Alcides, lembro-lhe a dedicatória de Brás: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Machado, a curiosidade que você nos aguça em Dom Casmurro é imensa. Bentinho foi traído ou não por Capitu? Responder-me-ia: todos os homens têm medo de serem traídos, mais que as mulheres. Mas não lhe responderei a pergunta, leia mais o livro.

E, por fim, arremato: Machado, por que tenho a sensação de pessimismo em suas obras? Porque na sociedade em que vivemos tudo parece tão belo e perfeito. E ele, como resposta, mostrar-me-ia trecho do último capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

 

Machado de Assis, a crítica e o fetiche biográfico.

Autor e obra são coisas diversas e, exceto por quem gosta mais de fuxicos que de arte, o segundo é importante e o primeiro quase o não é. Talvez a contundência dessa afirmação deva-se ao paroxismo a que chegou o interesse por descobrir detalhes biográficos dos autores, numa atividade de investigação obstinada e fetichista em busca provavelmente de nada.

A biografia do autor é algo fundamental como referência histórica e isso vale até para artes que se pretendem abstratas.

Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro e, particularmente, concordo com a opinião. Assim, é frequente a busca de um Machado que se revelaria fugazmente nas suas obras, numa espécie de jogo ambíguo do fino esteta que, dizem, era muito reservado com relação a detalhes de sua vida. Parte da crítica abandonou a crítica e passou a buscar a reconstrução de uma personagem a partir de várias.

Buscar conhecer as circunstâncias sociais e históricas de um autor é interessante, porque, afinal, sociologia e história são interessantes. Fazê-lo como investigação de causas e efeitos é, por seu turno, exercício de ficção ruim em segundo grau.

O fetiche está em crer que a obra é um jogo de chaves semi-ocultas para o próprio autor, mesmo que ela obra esteja lá, bela, imensa, válida por ela mesma e totalmente distante de ser um místerio de chaves subjetivas. Se as obras fossem sempre essas hagiologias de si mesmo, enigmas que conduzem ao psicológico do autor, seriam religiões iniciáticas e não peças de arte.

Por outro lado, é claro que as circunstâncias do autor descobrem-se nas obras, porque ele não é atemporal e porque o conhecimento imediato não é imediato, posto que ainda mediado por linguagem. O autor fala da única forma que pode, ou seja, a partir do que lhe fizeram seu tempo, sua classe social, sua educação, seu lugar.

Há pouco li um livrinho de Machado interessantíssimo: Casa Velha. A obra não foi publicada em forma de livro em vida de Machado. Ela surgiu em fascículos semanais ou quinzenais que saiam em períodicos, como se deu com outras obras dele. Todavia, somente foi editada em livro na década de 1940, trinta e tantos anos depois da morte de Machado.

Inicialmente, a crítica fez o que mais gosta: debruçar-se sobre uma lateralidade. A controvérsia era se Casa Velha era romanca pequeno ou conto grande. Pouco importa o rótulo, Casa Velha é obra valiosíssima e não tem qualquer coisa de autobiográfica, que foi a seguinte suposição da crítica.

Tem nada de autobiográfico, mas tem precisamente o que só poderia perceber quem viveu situação muito próxima aquela que se desenha no livrinho. A figura dos agregados a famílias ricas e muito ricas, não é suficientemente compreendida senão por quem a viveu.

O agregado é o ponto de contato entre a inflexibilidade social e a solidariedade no pequeno grupo. Ele entra num sistema de solidariedade e de intimidade familiar sem que as fronteiras invioláveis do pertencimento de classe sejam banidas. Talvez seja o elemento a explicar não ter havido desagregação social maior numa sociedade profundamente desigual e quase estamental, como era o Brasil no século XIX.

É pouco menos que óbvio que o primor do desenho de Casa Velha advenha de Machado ter ele mesmo sido de uma família agregada a uma grande casa senhorial no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Não há artificialidades na casa senhorial – a Casa Velha – e nas relações que há nesse subsistema social.

O livro diz – é audacioso e até temerário dizê-lo, mas o livro diz mesmo – que a violação das fronteiras de classe por nascimento é o delito mais grave e portanto o que mais esforços deve implicar para ser evitado. E di-lo deliciosamente ao mesmo tempo em que expõe laços de solidariedade e intimidade  cultivados com imensa força.

O paradoxo é fascinante. A agregada é afilhada da senhora, é acarinhada por ela, é por ela educada, é a quase-filha, é dotada pela senhora, mas resta-lhe uma única inviolável fronteira. Ela não se pode casar com o filho da senhora.

 Ela é da Casa, mas não é da classe. Para evitar a união, a senhora é capaz de lançar mão do maior tabu social e sexual existente: o incesto. A mentira, a sugestão do incesto, a desonra que haveria por trás dessa suposição se verdadeira, tudo isso vale para fechar a última fronteira. Fica clara a hierarquia de valores instalados na cabeça da senhora, de todas as senhoras e senhores.

A imperatriz da Casa Velha é capaz de inventar que a agregada é filha de uma aventura extraconjugal de seu falecido marido – ex-ministro do Império – com toda a vergonha para si e agressão à memória do extinto que isso implica, para estancar um namoro que na verdade não violaria regras contra o incesto, violaria regras de imutabilidade social.

Machado percebeu muito bem a escala de valores dominantes e que o valor supremo permite uso e recurso às maiores mentiras e ao maior dos tabus, neste caso o incesto não ocorrido, mas sugerido como meio de separação.

O autor fala de situações que ele conheceu e compreendeu os mecanismos subjacentes à dinâmica social do tempo. Não se cuida de narrativa do que se passou com ele próprio, nem de fornecimento de chaves dissimuladas para a compreensão de algum enigma que tenha sido a vida dele autor. Essas duas última inclinações da crítica decorrem de impulso irrefreável para a superficialidade, para o culto do subjetivismo do autor e para o fetiche biográfico.

O Memorial de Aires, última obra machadiana, publicada no ano mesmo de sua morte, rende ainda mais ensejos à visão de enigmas e chaves autobiográficas. Aqui, creio que Machado fez de caso pensado, sabedor ele desse fetichismo e superficialidade que fazem a crítica e parte dos leitores tomarem a obra como objeto de curiosidade relativamente ao autor.

O Memorial – talvez mais que em outras – é culto à beleza da língua como raro ocorreu na literatura brasileira. O esteta inteligentíssimo dá-se a formas narrativas pouco habituais, relativamente livres e escreve numa concisão de coluna dórica. Essas bobagens de realista ou parnasiano, ou mistura dos dois, são prisões que conduzem o crítico e o leitor a nada, tratando-se desta obra. As memórias são do diplomata Aires, não do escritor Machado.

Aqui, a crítica vê as suas sempre presentes chaves autobiográficas no casal sem filhos e em que a esposa é cultuada. Machado e Carolina não tiveram filhos e a admiração séria dele por ela é conhecida e foi reforçada pelo soneto A Carolina, composto logo após a morte dela.

É claro que ele pode compor um casal harmônico no companheirismo e cumplicidade profundos e sem filhos porque deve ter vivido conjugalmente assim e sem filhos. Mas, daí a fazer desse casal o que ele compunha com Carolina vai imensa distância. Machado era, segundo todos dizem, profundamente reservado e até distante no que se referia à sua vida pessoal. Seria estranho que quisesse, assim impudica e superficialmente, expor no derradeiro livro ela e ele, postos a nu, a claro, às vistas de todos.

Por outro lado, nada leva necessariamente a crer que Machado e Carolina tivessem a ausência de filhos como alguma ferida, como dá-se com as personagens Aguiar do Memorial. Novamente, pode haver aqui a inteligente piada e talvez a pista falsa deixada para os intérpretes que funcionam a partir das categorias sentimentais pré-ordenadas. Sagacidade e ironia para fazê-lo ele tinha a sobrar.

De qualquer forma que seja, essas duas obras são as que revelam mais precisamente o que Machado viveu, quais as circunstâncias sociais em que viveu. Todavia, isto vai longe de serem as pistas para a percepção do que foi um personagem a ser biografado em termos psicológicos, ele que tão psicólogo social não faria o que sabia impossível e, ademais, redutor.

É profudamente redutor supor que Machado não soubesse da enormidade de sua obra em termos artísticos e quisesse, assim, propor os enigmas que conduziriam à sua hagiografia de falsas sutilezas por professores críticos profissionais. Também é bastante improvável que os mesmos críticos tenham percebido isto, presos que são ao que são.