Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A canção de amor de J. Alfred Prufrock.


“E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola.”

T. S. Eliot.

White Cup and Saucer, 1864, Henri Fantin-Latour oil on canvas, 19 x 28 cm.

Então no último dia de janeiro de um hoje longínquo 2015 eu publiquei no Facebook o trecho do poema de T. S. Eliot, e a pintura de Henri Fantin-Latour.
Hoje eu não consigo pensar num lugar pior para ter feito a publicação. Mas também não deixo de achar bom que ele, o Facebook, me recorde as postagens antigas.

“Home” por Warsan Shire.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

Laith Majid chora de alegria e alívio ao terminar são e salvo com seus filhos a travessia pelo mar até a Europa. Fotografia por Daniet Etter/New York Times/Redux /eyevine.

 

HOME

no one leaves home unless
home is the mouth of a shark
you only run for the border
when you see the whole city running as well

your neighbors running faster than you
breath bloody in their throats
the boy you went to school with
who kissed you dizzy behind the old tin factory
is holding a gun bigger than his body
you only leave home
when home won’t let you stay.

no one leaves home unless home chases you
fire under feet
hot blood in your belly
it’s not something you ever thought of doing
until the blade burnt threats into
your neck
and even then you carried the anthem under
your breath
only tearing up your passport in an airport toilets
sobbing as each mouthful of paper
made it clear that you wouldn’t be going back.

you have to understand,
that no one puts their children in a boat
unless the water is safer than the land
no one burns their palms
under trains
beneath carriages
no one spends days and nights in the stomach of a truck
feeding on newspaper unless the miles travelled
means something more than journey.
no one crawls under fences
no one wants to be beaten
pitied

no one chooses refugee camps
or strip searches where your
body is left aching
or prison,
because prison is safer
than a city of fire
and one prison guard
in the night
is better than a truckload
of men who look like your father
no one could take it
no one could stomach it
no one skin would be tough enough

the
go home blacks
refugees
dirty immigrants
asylum seekers
sucking our country dry
niggers with their hands out
they smell strange
savage
messed up their country and now they want
to mess ours up
how do the words
the dirty looks
roll off your backs
maybe because the blow is softer
than a limb torn off

or the words are more tender
than fourteen men between
your legs
or the insults are easier
to swallow
than rubble
than bone
than your child body
in pieces.
i want to go home,
but home is the mouth of a shark
home is the barrel of the gun
and no one would leave home
unless home chased you to the shore
unless home told you
to quicken your legs
leave your clothes behind
crawl through the desert
wade through the oceans
drown
save
be hunger
beg
forget pride
your survival is more important

no one leaves home until home is a sweaty voice in your ear
saying-
leave,
run away from me now
i dont know what i’ve become
but i know that anywhere
is safer than here

Warsan Shire é poeta, escritora e educadora. Descendente de refugiados Somalis, nascida em 1988 no Kenya, cujos pais depois imigraram para a Inglaterra, hoje vive em Londres.

 

PS: Os grifos no poema são meus.

Uma conversa com Machado. Por Alcides Moreira da Gama.

Um texto de Alcides Moreira da Gama

O amigo e mestre Andrei solicitou-me escrever algo sobre Machado de Assis. Nos tratamos mutuamente assim: mestre. Mas o discípulo sou eu. É um desafio e tanto. E, sinceramente, não sei se sou capaz. Mas, mesmo cônscio disso, vá lá, aceitei o desafio.

O que dizer sobre Machado? O Brasil, apesar de tudo, é um país em que, de quando em quando, surgem agradáveis surpresas. Muitos cidadãos desprovidos de condições mínimas para galgar uma vida digna conseguem vencer barreiras dificílimas para chegarem a um patamar social razoável.

Apenas para citar dois exemplos: todos conhecem a história de Lula, criança saída dos confins do agreste pernambucano, torneiro mecânico, semialfabetizado, como pejorativamente dizem, chegou a ser Presidente da República, deixando o cargo com uma popularidade excepcional; meu pai, sem a mínima condição social quando criança, sendo em algumas ocasiões rejeitado em ambientes públicos por conta de sua paupérrima indumentária, estudava em bancos de praça, pois não havia energia em casa, chegou a passar em vários concursos públicos, alguns na primeira colocação, logrando êxito também no vestibular para Letras, tendo abandonado o curso.

Por que cito esses exemplos? Machado foi desses sujeitos. Mulato, nascido em sociedade ainda escravagista, gago, epilético, fez o que fez. Verdadeiras obras primas da literatura brasileira, elegantemente bem escritas. Ele, agora do outro lado, assim com Brás Cubas, deve rir-se de nós, por tentar querer desvendar sua vida depois de morto.

Permita-me, Machado, indagar-lhe o porquê de tanta ironia nas suas obras. Parece-me que ninguém escapa de suas tintas. Percebo que é homem letrado e muito bem informado dos fatos políticos de sua época, mas não consigo captar se você – permita-me tratar-lhe assim – é republicano ou monarquista, se defende a abolição ou não.

É conhecedor das Escrituras, mas não se mostra se é ateu ou não. Talvez você me responda que são apenas obras de arte e que não retratam realmente a sua vida particular. Mas, eu na minha insignificância, insisto em dizer que os autores das obras de arte sempre querem transmitir algo. E você continuará rindo, afirmando que quis dizer sim algo. Na verdade, muitas coisas.

O nosso problema, Machado, é que nós, que não somos gênio, queremos adentrar na mente de um, ainda mais quando ele está morto. Queremos chegar aos seus pensamentos, suas ideias, por meio de suas obras. E aí alguns chegaram a várias conclusões sobre sua vida particular. E você responderia que se é particular não era para ser descoberta. Mais uma ironia de sua parte.

Por que não teve filhos, Machado? Você responderia que sua vida com Carolina foi a melhor vivida. Os críticos literários chegaram-lhe a diagnosticar infertilidade, e você continuará rindo de nós, indagando-nos se isso faria diferença. Afinal, revista de fuxico é do tempo de vocês e não da minha época.

Mas, Machado, falando nisso, se você estivesse entre nós hoje, o que faria? Você responderia que não faria nada, pois suas obras foram completas e continuam atuais.

Machado, isso não seria uma ponta de orgulho de sua parte, assim como ocorreu com Lalau? E você responderia que o orgulho de Lalau sou eu quem o afirma. De mais a mais, aqui do outro lado não existe orgulho. Aprendi isso com Brás Cubas.

A propósito, diria-me ele, curioso leitor Alcides, lembro-lhe a dedicatória de Brás: “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Machado, a curiosidade que você nos aguça em Dom Casmurro é imensa. Bentinho foi traído ou não por Capitu? Responder-me-ia: todos os homens têm medo de serem traídos, mais que as mulheres. Mas não lhe responderei a pergunta, leia mais o livro.

E, por fim, arremato: Machado, por que tenho a sensação de pessimismo em suas obras? Porque na sociedade em que vivemos tudo parece tão belo e perfeito. E ele, como resposta, mostrar-me-ia trecho do último capítulo de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

 

Mia Couto em João Pessoa.

Olívia disse-me, hoje pela manhã, que Mia Couto estaria em João Pessoa, no Espaço Ciência, às três da tarde. Lamentavelmente, ela não poderia ir, devido a essa prisão que é o trabalho. Eu, depois de verificar que não havia urgências, assumi o risco de acumular o trabalho para fazê-lo na segunda feira, ou mesmo no final de semana.

Convidei Severiano para lá irmos escutar Mia Couto e ele aceitou. Curiosamente, estávamos Olívia, eu, Severiano e Miguel, há dois anos, escutando Mia Couto em Braga. Hoje, vencemos os 130 quilômetros até João Pessoa e chegamos ao tal Espaço Ciência. É um local belíssimo, projetado por Oscar Niemayer, com vistas para o mar.

Breve colocaremos umas fotografias desse sítio bonito e bem organizado, onde há exposições permanentes sobre ciência e um  auditório que acolhe músicos, teatro e outras manifestações. O edifício principal é uma jóia arquitetónica, algo que parece um disco-voador a pairar sobre o solo.

Esperamos um bocadinho, comprei dois livros do autor, e sentamos-nos a esperar sua chegada.  Com pouco, chegou Izabella, vinda de Recife. Organizou-se algo como uma conversa entre Mia Couto e a audiência. Uma conversa meio pautada por duas senhoras professoras de letras, que tentaram conduzir os assuntos academicamente.

Ele é um homem profundamente sensato e firme e delicado. Escapou às investidas – gentis, é verdade – de apreensão acadêmica de si mesmo contando histórias, como se as teses e perguntas não tivessem sido propostas. Não sei se a vasta maioria da audiência composta por estudantes, licenciados e doutores em letras percebeu o alcance das observações dele sobre ser biólogo e ser escritor. Argutamente, ele disse que entre escritores é somente biólogo.

Sábio indivíduo este, que rejeita as associações corporativas e o diz gentilmente, sutilmente. É complicado afirmar uma falta de pertença sem agredir os que se julgam uma igrejinha; a melhor forma é ser dois e dizer-se um, conforme a situação. Se ele dissesse eu sou escritor e vocês estudantes e professores seria indelicado.

E contou que se auto-batizou Mia porque quando era menino pequeno vivia entre os gatos. Pediu aos pais para escolher o nome e ficar com este e eles consentiram. Contou de seus embaraços com o português brasileiro, porque nem sempre as palavras significam as mesmas coisas. Contou várias coisas, enfim, despretenciosamente, por contar, sem querer causar espanto ou riso na audiência.

E afirmou-se muito mais contista que romancista, porque é muito esquecido e os personagens em um romance precisam de mais cuidados. Falou da literatura africana e particularmente da lusófona e de como gera estranheza um moçambicano branco. E, depois de muito falar e responder a perguntas – algumas delas somente afirmações e opiniões do perguntador – autografou livros.

As pessoas ajuntaram-se em torno à mesa em que estava, sem ordem qualquer, munidas dos livros. Ele foi autografando pacientemente, que isso é do ofício. Esperei, com uma calma que me surpreendeu. Chegou minha vez, pus nas mãos dele os livros, pedi-lhe que oferecesse um a Olívia e o outro a Izabella e disse-lhe tu reconheceste meu sotaque nordestino, há dois anos, em Braga. Foi na ocasião do lançamento do Jesusalém, na Centésima Página. Sim, bem que me pareceu que te conhecia de alguma forma. Aquela livraria é muito simpática. É verdade, muito agradável. Obrigado.

Conversações com Dmitri e outros fantasmas, de Agustina Bessa Luís.

Já faz uns dias que terminei de ler Conversações com Dmitri e outros fantasmas, mais uma oferta preciosa de Miguel. Antes, nada tinha lido de Agustina Bessa Luís, embora me recorde de ter visto um e outro volume da autora. É facílimo e seguro de recomendar, porque é um bom livro. Despertou-me imensa curiosidade pela obra de Agustina que, andei pesquisando, é muito vasta.

Essas conversações são contos, o último um conto grande, quase uma pequena novela. Têm algo que me lembrou o chamado realismo fantástico, qualificação inexata que tem servido para a obra de Garcia Marquez. Inexata pela inexatidão de todas essas tentativas de apropriação de um estilo por uma ou duas palavras e também porque não há mesmo proximidade com aquilo que ensejou a utilização desses nomes.

Todavia, assim pareceu-me. Talvez mais herméticos que fantásticos. Diretos e econômicos de palavras e explicações para situações aparentemente inusitadas. Aparentemente porque o inusual pode ser um efeito estilístico obtido pelo autor, que trata na verdade de coisas absolutamente triviais.

Outra coisa chamou-me bastante a atenção: a elegância sóbria da escrita. Aqui, convém apontar algo que não deve ser tomado na conta de estabelecimento de relação de causa e efeito e a advertência não é inútil, porque é fácil interpretar o que segue erroneamente. Trata-se da facilidade de perceber-se a extração social da autora. Ela é nobre e culta.

Ser-se de origens nobres ou plebéias não está na origem do bom escritor, nem do escritor excepcional, bastando lembrar de Saramago. Ter cultura formal ampla já é quase um presuposto, mas também não depende necessariamente das origens sociais. O caso é que se podem perceber as origens do escritor bom.

Não é uma questão da elegância do texto – insisto que isso não depende de origens – mas de um estar-se à vontade com certas descrições e abordagens. De ser natural e sem afetação na utilização de personagens de todos os tipos e origens sociais, geográficas e históricas. De manejar sem cerimônias mitos e referências verdadeiramente eruditas e estórias de memórias pessoais a envolverem, inclusive, diferenças sociais profundas.

Enfim, ela, Agustina, é uma autora a ser vivamente sugerida. Eu, de minha parte, aguardo também sugestões de outras obras dela, que são muitas e não sei qual escolher.

O may be man, por Mia Couto.

Existe o “Yes man”. Todos sabem quem é e o mal que causa. Mas existe o May be man. E poucos sabem quem é. Menos ainda sabem o impacto desta espécie na vida nacional. Apresento aqui essa criatura que todos, no final, reconhecerão como familiar.

O May be man vive do “talvez”. Em português, dever-se-ia chamar de “talvezeiro”. Devia tomar decisões. Não toma. Sim­plesmente, toma indecisões. A decisão é um risco. E obriga a agir. Um “talvez” não tem implicação nenhuma, é um híbrido entre o nada e o vazio.

A diferença entre o Yes man e o May be man não está apenas no “yes”. É que o “may be” é, ao mesmo tempo, um “may be not”. Enquanto o Yes man aposta na bajulação de um chefe, o May be man não aposta em nada nem em ninguém. Enquanto o primeiro suja a língua numa bota, o outro engraxa tudo que seja bota superior.

Sem chegar a ser chave para nada, o May be man ocupa lugares chave no Estado. Foi-lhe dito para ser do partido. Ele aceitou por conveniên­cia. Mas o May be man não é exactamente do partido no Poder. O seu partido é o Poder. Assim, ele veste e despe cores políticas conforme as marés. Porque o que ele é não vem da alma. Vem da aparência. A mesma mão que hoje levanta uma bandeira, levantará outra amanhã. E venderá as duas bandeiras, depois de amanhã. Afinal, a sua ideolo­gia tem um só nome: o negócio. Como não tem muito para negociar, como já se vendeu terra e ar, ele vende-se a si mesmo. E vende-se em parcelas. Cada parcela chama-se “comissão”. Há quem lhe chame de “luvas”. Os mais pequenos chamam-lhe de “gasosa”. Vivemos uma na­ção muito gaseificada.

Governar não é, como muitos pensam, tomar conta dos interesses de uma nação. Governar é, para o May be Man, uma oportunidade de negócios. De “business”, como convém hoje, dizer. Curiosamente, o “talvezeiro” é um veemente crítico da corrupção. Mas apenas, quando beneficia outros. A que lhe cai no colo é legítima, patriótica e enqua­dra-se no combate contra a pobreza.

Mas a corrupção, em Moçambique, tem uma dificuldade: o corrup­tor não sabe exactamente a quem subornar. Devia haver um manual, com organograma orientador. Ou como se diz em workshopês: os guidelines. Para evitar que o suborno seja improdutivo. Afinal, o May be man é mais cauteloso que o andar do camaleão: aguarda pela opi­nião do chefe, mais ainda pela opinião do chefe do chefe. Sem luz verde vinda dos céus, não há luz nem verde para ninguém.

O May be man entendeu mal a máxima cristã de “amar o próximo”. Porque ele ama o seguinte. Isto é, ama o governo e o governante que vêm a seguir. Na senda de comércio de oportunidades, ele já vendeu a mesma oportunidade ao sul-africano. Depois, vendeu-a ao portu­guês, ao indiano. E está agora a vender ao chinês, que ele imagina ser o “próximo”. É por isso que, para a lógica do “talvezeiro” é trágico que surjam decisões. Porque elas matam o terreno do eterno adiamento onde prospera o nosso indecidido personagem.

O May be man descobriu uma área mais rentável que a especulação financeira: a área do não deixar fazer. Ou numa parábola mais recen­te: o não deixar. Há investimento à vista? Ele complica até deixar de haver. Há projecto no fundo do túnel? Ele escurece o final do túnel. Um pedido de uso de terra, ele argumenta que se perdeu a papelada. Numa palavra, o May be man actua como polícia de trânsito corrup­to: em nome da lei, assalta o cidadão.

Eis a sua filosofia: a melhor maneira de fazer política é estar fora da política. Melhor ainda: é ser político sem política nenhuma. Nessa fluidez se afirma a sua competência: ele e sai dos princípios, esquece o que disse ontem, rasga o juramento do passado. E a lei e o plano servem, quando confirmam os seus interesses. E os do chefe. E, à cau­tela, os do chefe do chefe.

O May be man aprendeu a prudência de não dizer nada, não pensar nada e, sobretudo, não contrariar os poderosos. Agradar ao dirigen­te: esse é o principal currículo. Afinal, o May be man não tem ideia sobre nada: ele pensa com a cabeça do chefe, fala por via do discurso do chefe. E assim o nosso amigo se acha apto para tudo. Podem no­meá-lo para qualquer área: agricultura, pescas, exército, saúde. Ele está à vontade em tudo, com esse conforto que apenas a ignorância absoluta pode conferir.

Apresentei, sem necessidade o May be man. Porque todos já sabíamos quem era. O nosso Estado está cheio deles, do topo à base. Podíamos falar de uma elevada densidade humana. Na realidade, porém, essa densidade não existe. Porque dentro do May be man não há ninguém. O que significa que estamos pagando salários a fantasmas. Uma for­tuna bem real paga mensalmente a fantasmas. Nenhum país, mesmo rico, deitaria assim tanto dinheiro para o vazio.

O May be Man é utilíssimo no país do talvez e na economia do faz-de-conta. Para um país a sério não serve.

Como sacanear um poema.


José Luís Peixoto em seu livro “Uma Casa na Escuridão*”, escreveu isso que Antônio Abujamra cita, não que seja uma citação ruim, afinal de contas foi a partir dela que eu cheguei no José Luis. Mas afinal sabendo-se que na verdade, a citação “completa” fala mais de amor do que de filosofia e/ou desengano, o que cabe melhor!? Talvez a obra toda seja a melhor pedida, de qualquer forma, vai outra citação, com esse mesmo trecho escolhido pelo Abujamra.

EXPLICAÇÁO DA ETERNIDADE

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.
os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.
por si só, o tempo nao é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe,
no entanto, a eternidade existe,
os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos,
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
foste eterna até o fim.

José Luís Peixoto (Galveias, Portalegre 4 de setembro de 1974, Portugal), é um escritor e dramaturgo português.

* – O nome do livro, após pesquisas incansáveis, vi que podem ser dois “Uma Casa na Escuridão” e “A Casa, A Escuridão”. Aviso para que ninguém pague pelo meu erro.

De Saramago para quem o quiser ler.

Eu sugiro aos entreguistas brasileiros, até porque está em linguagem bastante direta e assim não lhes doem os miolos, como acontece quando deparam-se com alguma sutileza maior ou com poesia.

“A mim parece-me bem. Privatize-se Machu Picchu. (…) privatize-se a Capela Sistina, privatize-se o Partenon (…) privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei (…). E finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. (…) E já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos.”

(José Saramago, in “Cadernos de Lanzarote – Diário III”, págs. 147/8)

Exorcismo, de Carlos Drummond de Andrade. Uma ode anti-obscurantista?

Exorcismo

Carlos Drummond de Andrade

Das relações entre topos e macrotopos

Do elemento suprassegmental,

Libera nos, Domine.

Da semia

Do sema, do semema, do semantema,

Do lexema,

Do classema, do mema, do sentema,

Libera nos, Domine.

Da estruturação semêmica,

Do idioleto e da pancronia científica,

Da realibilidade dos testes psicolingüísticos,

Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais,

Libera nos, Domine.

Do vocóide,

Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal,

Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico,

Libera nos, Domine.

Da leitura sintagmática,

Da leitura paradigmática do enunciado

Da linguagem fática,

Da fatividade e da não-fatividade na oração principal,

Libera nos, Domine.

Da organização categorial da língua,

Da principalidade da língua no conjunto dos sistemas semiológicos,

Da concretez das unidades no estatuto que dialetaliza a língua,

Da ortolinguagem,

Libera nos, Domine.

Do programa epistemológico da obra,

Do corte epistemológico e do corte dialógico,

Do substrato acústico do culminador,

Dos sistemas genitivamente afins,

Libera nos, Domine.

Da camada imagética

Do estado heterotópico

Do glide vocálico

Libera nos, Domine.

Da lingüística frástica e transfrástica,

Do signo cinésico, do signo icônico e do signo gestual

Da clitização pronomial obrigatória

Da glossemática,

Libera nos, Domine.

Da estrutura exossemântica da linguagem musical

Da totalidade sincrética do emissor,

Da lingüística gerativo-transformacional

Do movimento transformacionalista,

Libera nos, Domine.

Das aparições de Chomsky, de Mehler, de Perchonock

De Saussure, Cassirer, Troubetzkoy, Althusser

De Zolkiewsky, Jacobson, Barthes, Derrida, Todorov

De Greimas, Fodor, Chao, Lacan et caterva

Libera nos, Domine.

O talentoso Pacheco.

Tenho dois livros de constantes leituras, daquelas a que sempre se volta, livros que deixo ao lado da rede. Claro que afirmando-o, exponho uma de minhas manias e o limiar das minhas ignorâncias, mas é exposição pouca de talvez ignorância muita.

São a Rebelião das Massas, de José Ortega y Gasset e As Memórias e a Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz. Ninguém se apresse a pensar que para mim são a mesma coisa dita de formas diferentes, que minha loucura não chega para tanto. São coisas muito diferentes, embora algum esforço possa constatar pontos de contato, escassos.

A personagem de Fradique não pertence exclusivamente a Eça, muito embora sua maior parte deva-se a ele mesmo. O cosmopolita português do século XIX, varão rijo de origens açorianas mestiças, modos espontâneos e elegantes ao mesmo tempo, domiciliado em Paris, profundo e frívolo, arqueólogo de almanaque e dândi, é a mais deliciosa personagem criada em língua portuguesa que conheço.

Fradique e seu pai Eça são bastante ácidos com certas coisas portuguesas, o que não digo para dar contributo ou acréscimo, que isso é fartamente percebido e comentado. Mas, em um ponto e outro, as coisas vão ter com a arte naquilo que ela é de protótipo da vida, ou seja, vão ao excelente.

A carta ao senhor E. Mollinet, de Paris, setembro, é um retrato pré-impressionista de um tipo que não ficou no século passado, nem circunscrito a Portugal. Fradique escreve ao Millinet, diretor da Revista de Biografia e de História, a propósito de responder-lhe a indagação sobre um certo Pacheco, cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal.

O retrato que segue é de um Pacheco permanente, que está por toda parte. Eu conheço vários. De tão real, perde a acidez, embora mantenha, convenientemente, a ironia, em largas doses. Mas ela não torna o desenho caricato ou farsesco, ela é a própria tinta com  que se desenham tais retratos.

Fradique anuncia que o enorme talento do Pacheco começou a perceber-se uma manhã, em Coimbra, na aula de direito natural, quando o Pacheco, desdenhando os manuais, assegurou que o século XIX era um século de progresso e de luz. A partir de então, diz Fradique, todos pressentiram o talento do Pacheco.

Ele andava sempre meditabundo, em passos auteros, como a concentrar forças inimagináveis em um cérebro prodigioso. Claro que esse cabedal de talento iria ter às Câmaras. E lá, as bancadas, fossem de governo, fossem de oposição detinham-se a admirar o Pacheco e a esperar o que sairia dele, sempre sentado.

Cresciam as expectativas do derramamento de talento do Pacheco, até que um dia, levantou-se, em uma arenga qualquer com um padre sobre liberdades, todos detiveram-se, apuraram os ouvidos, o Pacheco pôs-se de pé, apontou o dedo à frente, e brindou a nação ali representada com uma frase lapidar a dizer que ao lado da liberdade devia sempre coexisitir a autoridade!

Embora fosse uma pequena pérola, todos compreenderam que por trás dela havia sistemas e idéias em profusão. Aquilo era apenas a capa de um mar de talento que se descobria aos poucos. Pacheco ficou, depois dessa pequena magnanimidade, profundamente recolhido, calado e absorto em si mesmo. Isso aumentava a percepção de profundidade daquele colosso de talento, com uma vasta testa rebrilhante, atrás de que deviam harmonizar-se as mais complexas teses e antíteses.

Passou a ministro e daí a conselheiro de Estado, embora um e outro invejoso o acusasse de nunca ter feito nada. Incompreensão, evidentemente, que a um talento dessa magnitude não se poderia exigir que se detivesse com detalhes, com clarezas, com laboriosidade plebéia.

Bem, não vou ficar a contar a estória toda, como a reescrever a carta, porque é profanação inútil. Mas, soltando a imaginação e um pouco da lembrança, vou permitir-me uma precária associação. Lembrava-me agora do Homem que sabia Javanês, de Lima Barreto.  É um conto espetacular em que dois amigos conversam enquanto bebem cerveja.

Um deles conta ao outro como tornou-se uma celebridade nacional, recebeu ovação nacional e foi convidado para almoçar com o Presidente da República, tudo a partir de uma grande farsa. Uma vida toda de farsa em que apenas o farsante salvava-se, porque sabia que o era.

Revejo minhas primeiras afirmações, para constatar que, lastimavelmente, o Pacheco e o Homem que sabia javanês não são tão frequentes assim como julgava. Mais frequentes são piadas de menos gosto, personagens de burlas mais grosseiras e caricatas. Que Pacheco e sabedor de javanês foram-no sem esforços e os bufões mais comuns são os que se esforçam na bufonaria. São mais cansativos, portanto.

Que dizer, por exemplo, do tipo do funcionário público que, se descobrir uma nova forma de fritar um ovo quererá tirar patente disso e dar entrevistas pelo resto da vida? Ora, só vale ser Pacheco espontaneamente!

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