Tenho dois livros de constantes leituras, daquelas a que sempre se volta, livros que deixo ao lado da rede. Claro que afirmando-o, exponho uma de minhas manias e o limiar das minhas ignorâncias, mas é exposição pouca de talvez ignorância muita.
São a Rebelião das Massas, de José Ortega y Gasset e As Memórias e a Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queiroz. Ninguém se apresse a pensar que para mim são a mesma coisa dita de formas diferentes, que minha loucura não chega para tanto. São coisas muito diferentes, embora algum esforço possa constatar pontos de contato, escassos.
A personagem de Fradique não pertence exclusivamente a Eça, muito embora sua maior parte deva-se a ele mesmo. O cosmopolita português do século XIX, varão rijo de origens açorianas mestiças, modos espontâneos e elegantes ao mesmo tempo, domiciliado em Paris, profundo e frívolo, arqueólogo de almanaque e dândi, é a mais deliciosa personagem criada em língua portuguesa que conheço.
Fradique e seu pai Eça são bastante ácidos com certas coisas portuguesas, o que não digo para dar contributo ou acréscimo, que isso é fartamente percebido e comentado. Mas, em um ponto e outro, as coisas vão ter com a arte naquilo que ela é de protótipo da vida, ou seja, vão ao excelente.
A carta ao senhor E. Mollinet, de Paris, setembro, é um retrato pré-impressionista de um tipo que não ficou no século passado, nem circunscrito a Portugal. Fradique escreve ao Millinet, diretor da Revista de Biografia e de História, a propósito de responder-lhe a indagação sobre um certo Pacheco, cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal.
O retrato que segue é de um Pacheco permanente, que está por toda parte. Eu conheço vários. De tão real, perde a acidez, embora mantenha, convenientemente, a ironia, em largas doses. Mas ela não torna o desenho caricato ou farsesco, ela é a própria tinta com que se desenham tais retratos.
Fradique anuncia que o enorme talento do Pacheco começou a perceber-se uma manhã, em Coimbra, na aula de direito natural, quando o Pacheco, desdenhando os manuais, assegurou que o século XIX era um século de progresso e de luz. A partir de então, diz Fradique, todos pressentiram o talento do Pacheco.
Ele andava sempre meditabundo, em passos auteros, como a concentrar forças inimagináveis em um cérebro prodigioso. Claro que esse cabedal de talento iria ter às Câmaras. E lá, as bancadas, fossem de governo, fossem de oposição detinham-se a admirar o Pacheco e a esperar o que sairia dele, sempre sentado.
Cresciam as expectativas do derramamento de talento do Pacheco, até que um dia, levantou-se, em uma arenga qualquer com um padre sobre liberdades, todos detiveram-se, apuraram os ouvidos, o Pacheco pôs-se de pé, apontou o dedo à frente, e brindou a nação ali representada com uma frase lapidar a dizer que ao lado da liberdade devia sempre coexisitir a autoridade!
Embora fosse uma pequena pérola, todos compreenderam que por trás dela havia sistemas e idéias em profusão. Aquilo era apenas a capa de um mar de talento que se descobria aos poucos. Pacheco ficou, depois dessa pequena magnanimidade, profundamente recolhido, calado e absorto em si mesmo. Isso aumentava a percepção de profundidade daquele colosso de talento, com uma vasta testa rebrilhante, atrás de que deviam harmonizar-se as mais complexas teses e antíteses.
Passou a ministro e daí a conselheiro de Estado, embora um e outro invejoso o acusasse de nunca ter feito nada. Incompreensão, evidentemente, que a um talento dessa magnitude não se poderia exigir que se detivesse com detalhes, com clarezas, com laboriosidade plebéia.
Bem, não vou ficar a contar a estória toda, como a reescrever a carta, porque é profanação inútil. Mas, soltando a imaginação e um pouco da lembrança, vou permitir-me uma precária associação. Lembrava-me agora do Homem que sabia Javanês, de Lima Barreto. É um conto espetacular em que dois amigos conversam enquanto bebem cerveja.
Um deles conta ao outro como tornou-se uma celebridade nacional, recebeu ovação nacional e foi convidado para almoçar com o Presidente da República, tudo a partir de uma grande farsa. Uma vida toda de farsa em que apenas o farsante salvava-se, porque sabia que o era.
Revejo minhas primeiras afirmações, para constatar que, lastimavelmente, o Pacheco e o Homem que sabia javanês não são tão frequentes assim como julgava. Mais frequentes são piadas de menos gosto, personagens de burlas mais grosseiras e caricatas. Que Pacheco e sabedor de javanês foram-no sem esforços e os bufões mais comuns são os que se esforçam na bufonaria. São mais cansativos, portanto.
Que dizer, por exemplo, do tipo do funcionário público que, se descobrir uma nova forma de fritar um ovo quererá tirar patente disso e dar entrevistas pelo resto da vida? Ora, só vale ser Pacheco espontaneamente!