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Porque o golpe está em regime de urgência.

O golpe de estado atualmente tentado no Brasil, contra o governo eleito legitimamente, segue em ritmo frenético e, por isso mesmo, confuso. A pressa constantemente tem por consequência a confusão, o que pode ser bom ou ruim estrategicamente, a depender das habilidades dos agitadores e operadores.

É fundamental dizer claramente que este processo golpista – assim como seus precedentes – é preponderantemente exógeno. Internos são os agentes operadores localizados na imprensa, congresso nacional, poder judicial e movimentos supostamente populares que ninguém sabe como se financiam.

Sozinhos, estes operadores internos pouco podem. As elites locais sempre atingem acordos em que mantém quase intocados seus altos níveis de apropriação, mesmo em períodos de concessões mais ou menos tímidas às maiorias. Elas ganham em todas as situações, com algumas variações poucas que não invalidam a lógica capitalista. Logo, o núcleo da burguesia nacional, na ausência de estímulos externos, não patrocina golpes.

Provenientes da grande burguesia nacional envolvidos diretamente como agentes do golpe temos apenas os patrões da imprensa. Todavia, essa gente não é propriamente nacional. Historicamente, têm alinhamentos ideológicos fortes com os norte-americanos, além de participação capitalista externa. A imprensa é formatada de tal maneira que serve, queira ou não, aos interesses norte-americanos. É filha do modelo TV – Hollywood do pós-guerra; um modelo de propaganda, basicamente.

Cabem aos agentes locais do golpe duas missões básicas: dar formato jurídico à violação da institucionalidade e cevar o ódio difuso da pequena-burguesia. A segunda missão é de uma irresponsabilidade profunda, porque é a semente do fascismo, mas eles a levam a cabo, sem cálculos de futuro. Estão imbuídos em uma cruzada religiosa; sua tenacidade é quase de devoção.

A pressa explica-se por fatores geopolíticos e pela perda gradual de fôlego financeiro da imprensa local. Á medida que segue a decadência norte-americana – algo que se sabia seria terrível para o mundo e dramático para os vizinhos continentais – encurtam-se os prazos para fazer tudo que do apoio norte-americano dependa.

As decadências tem vários paradoxos aparentes. Um deles é que à perda de influência corresponde a abertura de mais frentes de combate, sejam políticos ou propriamente bélicos. Nisso, a analogia já feita aqui com a morte de uma estrela, creio ser bastante adequada.

Sucede que a perda de capacidades de enfrentar numerosas frentes de combate, a par com o crescente desejo de as aumentar, cobra seu preço em termos de realidade. A capacidade norte-americana de desestabilizar o mundo reduz-se. Recentemente, a entrada da Rússia na Síria, para dar cabo do Estado Islâmico criado pelos EUA, Israel e outros sócios menores, dá provas disto. Além de encurralados na exposição flagrante de suas hipocrisias, os associados da OTAN vêm-se diante de limites objetivos.

Por maior que o Brasil seja economicamente, não é mais importante que o jogo no tabuleiro do oriente próximo e da estepe asiática. Naturalmente os maiores esforços estão lá concentrados e, considerando-se que os recursos são finitos e decrescentes, fica claro que reduz-se sua capacidade de investir na desestabilização nas áreas menos importantes. Por isso a urgência em consumar o golpe no Brasil, pois será cada vez mais difícil financiá-lo e cada vez mais remota a possibilidade de emprestar a sexta frota para o impor na forma clássica.

As forças armadas brasileiras, hoje, não têm interesse no golpe de estado. Seus oficiais generais não estão dispostos a entrar na aventura. A experiência recente com governos da gente que está à frente do golpe mostrou-lhes que perdem dinheiro. Realmente, o período fernandino, de tão entreguista que foi, quase liquida com as forças armadas. Ora, os oficiais superiores tem honorabilidade no que tange às suas capacidades bélicas reais e não acham muita graça no sucateamento das suas armas.

Por outro lado, uma personagem central do esforço golpista parece ter sido muito mal escolhida. O presidente da câmara dos deputados é alguém muito sujo até para ser protegido pelos fortes esquemas da imprensa e do sistema judicial. Fazer sua integral blindagem mediática e jurídica é esforço semelhante ao de segurar água com as mãos. Sempre vazará por todos os lados.

Mesmo que a pequena-burguesia seja terreno fertilíssimo para a propaganda golpista escrita e televisiva, há níveis de contradições que tumultuam o processo e podem implicar massa crítica para uma reação sem quaisquer controles. As contradições da ponta-de-lança do golpe de verniz jurídico tornam-se muito evidentes e fica difícil escondê-las todas. O presidente da câmara é figura complicadíssima. Tirá-lo da posição será também complicadíssimo, porque ele tem apego pessoal à posição e sabe onde todos os outros possíveis substitutos almoçaram no passado.

Há razões para crer que se o golpe não se consumar neste ano de 2015, será inviável ao depois. Perderá inércia, porque os EUA não terão tempo de o ajudar tão intensamente quanto necessário, a imprensa terá de cuidar da sua situação financeira caótica e os agentes imediatos terão de cuidar de inúmeras defesas na arena judicial. Apenas espero que esse eventual fracasso do golpe não deixe em seu lugar algo tão ruim quanto: o desgoverno.

Porque a classe dominante aceita pagar um sistema judicial caríssimo.

O custo do sistema judicial brasileiro – incluindo-se todas as adjacências a ele – é altíssimo e nitidamente desproporcional à sua utilidade, à complexidade de suas tarefas e ao nível dos seus funcionários.

Este último aspecto chega a ser assustador, porque à capciosidade bizantina das provas de admissão corresponde profunda ignorância de qualquer outra coisa que não sejam prazos e teoremas jurídicos da moda mais recente. São técnicos estreitos, desconhecedores de teoria do Estado, de História e de qualquer outra coisa que não seja técnica e modismos elevados a novidades.

Qualquer um que se detenha a pensar e, dispondo de alguns dados de outros países, disponha-se a algumas comparações percebe que a litigiosidade no Brasil é desviante e abrange em larga margem causas contra o Estado e contra prestadores de serviços públicos concedidos. A lide contra o Estado, em si, já é algo dificílimo de sustentar-se com algum rigor conceitual, porque é necessário muito privatismo jurídico para assumir o Estado como parte em juízo, a ser julgado por órgão dele mesmo. Claro que o direito é o mundo das ficções, mas algumas vão demasiado longe.

Tudo isso, custo elevado, profusão de funcionários, excesso de lides, não é assim porque tem que ser, inexoravelmente, ou porque vivemos no melhor dos mundos de amplo e irrestrito acesso ao judicial. Isso existe porque se insere na lógica da apropriação privada do Estado, seja pela colocação de vários funcionários bem pagos, seja pela indústria de honorários pagos pelo Estado a bancas privadas, seja pela necessidade de um bastião defensor da classe dominante, em penúltima instância, ou seja, antes das baionetas.

Uma das tolices que vicejaram passava por objetar à conformação do sistema uma suposta falta de trabalho. Isso é absolutamente falso e é mirar no ponto errado. Há bastante trabalho porque há realmente muitíssimas causas. A questão é que essas causas existem para justificar o sistema e não o inverso. Esse número aberrante de causas é algo que se consente que haja, enfim.

Sempre pensei qual seria o porquê da classe dominante permitir a escalada insensata dos custos do sistema judicial brasileiro, quando é óbvio que, se não pretendesse, não teria havido esta aceleração vertiginosa. A princípio não faz qualquer sentido consentir este aumento disfuncional, quando se poderiam apropriar deste dinheiro de outras maneiras mais rentáveis, como por exemplo obras e isenções fiscais.

Mas, de algum tempo para cá, dei-me conta de algo sagazmente percebido pela classe dominante a levar-lhe à complacência com a hipertrofia do sistema judicial. Ela, a classe dominante, adquiriu com recursos públicos um sentimento de identidade social deslocado para cima dos pontos originais dos funcionários isoladamente.

Com raras exceções, o ingresso nas corporações judiciais – públicas ou privadas – implica mobilidade social ascendente e, consequentemente, o ingresso noutro patamar de identificação social. Isto modifica nitidamente as inclinações gerais do sistema ao produzir alguma decisão, mesmo que haja um e outro que se glorie, ou de ser aleatório, ou de ser quixotesco.

As remunerações muito altas não compram os funcionários em bloco para algo que se lhes peça claramente. Compram-lhes para solidariedade e identidade de classe em níveis superiores à média. O que é muito mais eficaz, porque muito mais sutil e menos percebido pelo neo-cooptado.

Em termos práticos, podemos perceber mais nitidamente o funcionamento da coisa na área criminal. Suponha-se que um jovem marginal de classe alta, com histórico de condutas violentas ao estilo pitt bull tão celebrado atualmente, invista contra outra pessoal que não seja de sua classe e o inflija ferimentos graves por meio de uma barra de ferro.

Essa barbaridade – evidente na provável futilidade da motivação e na desproporção dos meios – implicará a concepção de toda uma rede de pressões e invocações de cumplicidades em torno do agressor. Por proximidade de classe, fatalmente haverá algum funcionário do judicial próximo do agressor, ou de seus parentes, ou de seus amigos, que consciente ou não fará eco ao discurso da complacência.

Rápido a rede de cumplicidade social por identificação de classe evoluirá para o destaque dos aspectos familiares e íntimos do marginal. Dir-se-á que é bom filho, muito amável e carinhoso, que chorava ao receber presentes no aniversário, que rezou muito compungido na primeira comunhão e muitas outras coisas de caráter subjetivo e familiar, que nada têm com o que se chama análise jurídica de um caso.

Breve, não haverá crime, mas um deslize eventual, imprevisto e plenamente desculpável de uma criança amorosa que foi exemplar filho dentro de casa. Isso, claro, se a vítima for de classe social inferior e não dispuser dos meios de fazer girar a máquina da cumplicidade e identidade sociais.

De forma um tanto foucaultiana, da mesma maneira que o criminoso construído e enfatizado afasta o julgamento do crime, o sujeito desfeito de uma suposta personalidade criminosa afasta o crime e ninguém pensa mais em termos objetivos, apenas num histórico muitas vezes forjado para lembrar ao sistema que se trata de um deles, afinal.

Quando nada disso funciona, por fim, recorre-se à chantagem pura e simples, outra coisa fácil de fazer numa corporação que se deve favores reciprocamente e que cala das infrações e oportunismos dos outros para contar com o silêncio deles quanto a si, quando chegar sua vez. Assim caminha o judicial brasileiro e não parece haver quem esteja interessado em cambiar esta perversão.