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José Dirceu: preso político duas vezes.

Acontece a José Dirceu a raridade de ter sido preso político na ditadura e estar em vias de novamente sê-lo, na aparente democracia regida pelo direito. É provável que na próxima semana seja realizada sua prisão, com algemas, equipes da TV Globo, fotógrafos dos jornais, toda a dramaticidade de uma degradação pública de alguém profundamente corajoso.

Isso resulta de uma farsa montada no tribunal mais alto do sistema judicial brasileiro. Algo tão burlesco que permite concluir que os juízes não erraram tecnicamente, mas fizeram deliberadamente algo que pode ter inúmeros nomes, exceto julgamento.

Uns juízes aparentam certa loucura, misturada com superficialidade e volubilidade; outros são conservadores de antiga fé, daqueles que dão a volta à casa armados, à noite, antes de deitar-se, à procura de algum comunista escondido nos jardins. Há deles tão vaidosos que estão continuamente a serviço de certa imprensa, que os adquire com espaços para dizer barbaridades em entrevistas, muito à vontade e sobre o assunto que quiserem. Por fim, há os covardes.

A imprensa dita grande – Globo, Folha de São Paulo e revista Veja – incumbiu o tribunal constitucional da missão de expurgar pessoas como José Dirceu, mesmo que isso implicasse a montagem de uma farsa tão ampla que levasse junto mais gente também inocente. E eles gostaram da incumbência e chegaram a exceder-se, principalmente pela ferocidade inquisidora e pela mendacidade do acusador-geral.

A coleção de violações às leis perpetradas nesse julgamento de fancaria é muito extensa e convém mencionar as principais. O último tribunal do sistema judicial só é juiz natural em matéria criminal para quem detém mandatos federais. Assim, o stf era absolutamente incompetente para iniciar julgamento criminnal de José Dirceu, por exemplo, que não era mais deputado federal.

Provas a favor dos réus foram suprimidas e ocultadas por meio de desmembramento de inquéritos e determinação de sigilo sobre os que evidenciavam não haver dinheiros públicos envolvidos. Realmente, o maior tribunal do pais encontrou o crime de peculato com dinheiro privado, algo que vai além do simples e corriqueiro desprezo pela lei, o que é comum nos juízes brasileiros.

O peculato é desvio e apropriação de dinheiro público e os famosos recursos pertenciam a um fundo privado da empresa VISANET. Para tornar as coisas mais absurdas, os serviços contratados foram prestados.

O presidente do tribunal esforçou-se para oferecer aos que o puseram em evidência mediática messiânica o máximo possível em linchamento bem ao gosto da pequena-burguesia, ou seja, sangue e humilhação como veículos de expiação moral. Para obter mais efeitos dramáticos foi necessário dar mais uma volta no parafuso das violações a direitos e garantias e fatiar – a expressão é do juiz – o julgamento por supostos crimes e julga-los em blocos.

Nunca o judicial brasileiro – pródigo em desprezo seletivo pela legislação e em subserviência aos interesses mais conservadores – produzira com tanta presa farsa tão digna de vaudeville. O nível caiu bastante, o que revela o grau de apoio da imprensa e o grau de desprezo pelo público razoavelmente alfabetizado, que rapidamente percebeu tratar-se de nada mais que um juízo de exceção em que os réus já entraram condenados.

Os juízes passaram a ficar à vontade demais, como se todo o país se compusesse de leitores da revista veja e perpetraram a imensa coleção de profanações à legislação sem preocupar-se com as aparências, com suas biografias, com nada, enfim. Chegaram ao grau zero de honra, porque não é razoável que tenham feito isso por ignorância formal.

Dois clowns togados sacaram dos bolsos um nome mágico: teoria do domínio do fato. Essa muleta serviu para fazer o que é absolutamente proibido no processo criminal: condenar sem provas. Mas, um dos pais da teoria, o alemão Roxin, veio a público dizer com todas as palavras que não se tratava de algo a permitir condenação criminal sem provas, como equivocadamente queriam os tradutores nacionais. E eles não coraram, não silenciaram e fizeram de conta que não tinham sido expostos ao ridículo.

Não há, nos autos da farsa, qualquer prova de pagamentos a parlamentares para votarem desta ou daquela forma, feitos com dinheiros públicos e de maneira sistemática e continuada. Ou seja, não há provas de corrupção ativa nem passiva, de peculato, nem de formação de quadrilha. Nada obstante, uma juíza disse com todas as palavras que embora não houvesse provas ela condenaria porque afinal ela podia fazer isso.

Novamente, estanco um pouco para insistir num ponto: o nível da farsa, o à vontade com que se perpetrou a coleção de violações, revelam bem a total falta de limites que inspira juízes amparados na imprensa e o total desprezo pelo público, porque têm a certeza de que é integralmente constituído de imbecis, o que é falso, porque 05% da população não é imbecil.

A primeira prisão de José Dirceu terá sido menos infamante para os mandantes que está segunda. A ditadura era menos farsesca que este tribunal ansioso por dar roupagem jurídica a um juízo de exceção de réus previamente condenados. Convém que Dirceu faça o mesmo gesto de quando estava prestes a embarcar para o exílio: exiba as algemas, altivamente.

Perseguição de José Dirceu pode ter mais aparência jurídica se embargos forem admitidos.

A ação penal 470 é um embuste montado para afastar José Dirceu da política brasileira, porque ele é um traidor de classe que não se deixou cooptar pelo 01%. Os demais processados com ele estão lá apenas para que não haja um só réu e para as conveniências do enredo farsesco. Neste julgamento de fancaria, stf e ministério público agiram sob ordens da imprensa majoritária ou, no mínimo, com medo dela.

A coleção de aberrações jurídicas presentes nesta ação é enorme. Garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição tiveram suas violações abertamente defendidas, como se fosse o mais normal, até por gente que diz ter frequentado a escola básica e saber ler. Inversão do ônus probatório em matéria criminal foi defendida pelo acusador e por juízes.

Deformações nas adequações típicas, como, por exemplo, suprimir a realidade e reputar ocorrido o crime de peculato de dinheiro privado. Manipulações de datas, feitas abertamente, como a que reputou ocorrido um crime de corrupção após a morte do suposto corrompido! A farsa do período anterior ocorreu para violar o princípio da irretroatividade da lei penal, porque as penas foram aumentadas por lei posterior ao falecimento do corrompido e queriam a todo custo punir os supostos corruptores com penas mais graves, mesmo que estabelecidas após o fato.

Houve momentos extraordinários em que juízes chegaram a dizer que não havia provas, mas que condenavam porque podiam fazê-lo. Tudo isso causou espanto nos mais bem instruídos e menos imbuídos do desejo linchador porque se esqueceram que juízes – independentemente do tribunal que componham – são gente vulgar, mesquinha e manipulada, como são as pessoas em geral.

Realmente, essa tolice de crer que juízes são sensatos e imparciais é tão difundida quanto infundada. Eles são profundamente sujeitos às pressões quando o caso desperta interesses políticos e mediáticos relevantes e deixam-se aprisionar pelos afagos às vaidades e pelo medo de serem atacados pela moralidade seletiva da imprensa. Nos casos pequenos, suas grandes influências são os caprichos momentâneos e o ir ou não com a cara das pessoas litigantes. A lei é algo que fica muito longe das principais motivações para decidir.

Neste caso, a imprensa resolveu antecipadamente que José Dirceu devia ser condenado, que devia ser considerado responsável pelo maior esquema de desvio de dinheiros públicos do Brasil – embora o processo fale de dinheiro privado – que devia ser linchado em praça pública sem que qualquer outra consideração fosse feita exceto nos termos da comédia novelesca que foi encenada.

E isso deu certo, a despeito da fragilidade e da vulgaridade do enredo da novela oferecida ao público. Deu certo no sentido de instilar nas pessoas da classe média em diante o espírito de linchamento alimentado por moralismo difuso e totalmente cego às violações de direitos e às supressões de fatos. Assim é porque o vulgo basicamente não pensa e facilmente defende qualquer violação de direito e ocultação de fato, desde que a imprensa diga-lhe para proceder desta maneira.

Mas, a farsa é tão grotesta que escandalizou a um e outro razoavelmente alfabetizado e desinteressado em ver sangue e entranhas expostos – são raras as pessoas localizadas neste grupo – e envergonhou timidamente um e outro integrante da corporação jurídica.

Eis que o tribunal que serve de cenário para esta novela decide se os réus de acusações etéreas poderão ter o duplo grau de jurisdição. Ou seja, decidem se uma garantia constitucional óbvia será mantida ou estuprada à luz do dia com caras sorridentes a posarem para câmaras de TVs. Está a depender do voto do juiz mais antigo do cenário, que já disse repetidas vezes que o duplo grau deve ser assegurado.

Se o recurso é admitido, uma de muitas aberrações é afastada. Conviria que as demais também fossem, para que não ficasse a parecer o estado normal de coisas a justiça servir aos desígnios de eliminação política da imprensa. Conviria que a corporação judiciária percebesse que a desonra só pode ser considerada momentânea sob a perspectiva meramente pessoal, o que destoa até mesmo do núcleo do pensamento corporativo, que anseia à conservação de privilégios.

Essa farsa, basicamente, foi o deslocamento do jogo político de seu âmbito próprio para os tapetes dos tribunais, onde se decide sem votos populares e com pessoas extraídas do que há de mais conservador. E, o que há de mais conservador no Brasil é pior que os semelhantes alhures, porque é certo dizer que o pior do Brasil são os brasileiros de classe média em diante. Não há gente mais predadora, vendida, oportunista, mentirosa, rancorosa, mal instruída, sem honra mas com moralidade e superficial.

O protótipo do comportamento dos conservadores é o menino que tem a bola de futebol, chama os outros para jogar e pelas tantas quer proibir os dribles porque não os sabe dar; depois muda as regras e por fim encerra o jogo e guarda a bola.

A encenação do processo contra Dirceu é demonstração de poder extravagante porque significa dizer claramente que a imprensa pode fazer a partir de nada ou quase nada um escândalo mobilizador das camadas médias e despertar nelas os instintos assassinos que guarda cuidadosamente nos armários. É um recado claro para os que insinuem alguma reação efetiva aos interesses dela imprensa e também aviso aos que a ela se alinharem que podem fazer o que bem quiserem.

A resposta ou reação possível dá-se em campos muito estreitos. Primeiro, convém que as pessoas alfabetizadas e não inclinadas ao linchamento sempre digam da farsa que se encena, mesmo que isso resulte imediatamente em nada. Segundo, é preciso elevar o nível da crítica técnica às violações perpetradas na encenação. Ou seja, já que escolheram o cenário jurídico para expurgar José Dirceu, que ao menos tenham algum trabalho discursivo e algum receio por suas contradições explícitas.