Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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A Portugal, de Jorge de Sena.

Sena teve as razões dele, claro. Dele e de um tempo dele. É amaríssimo o poema abaixo.

Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não, nem é ditosa porque o não merece,
nem minha amada, porque é só madrasta
nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
Quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela
Saudosamente nela,
Mas amigos são por serem meus amigos
e mais nada.
Torpe dejecto de romano império,
Babugem de invasões,
Salsujem porca de esgoto atlântico,
Irrisória face de lama, de cobiça e de vileza,
De mesquinhez, de fátua ignorância.
Terra de escravos, de cú para o ar,
Ouvindo ranger no nevoeiro a nau do Encoberto.
Terra de funcionários e de prostitutas,
Devotos todos do Milagre,
Castos nas horas vagas, de doença oculta.
Terra de heróis a peso de ouro e sangue,
E santos com balcão de secos e molhados,
No fundo da virtude.
Terra triste à luz do Sol caiada,
Arrebicada, pulha,
Cheia de afáveis para os estrangeiros,
Que deixam moedas e transportam pulgas
(Oh!, pulgas lusitanas!) pela Europa.
Terra de monumentos
em que o povo assina a merda
o seu anonimato.
Terra-museu em que se vive ainda
com porcos pela rua em casas celtiberas.
Terra de poetas tão sentimentais
Que o cheiro de um sovaco os põe em transe.
Terra de pedras esburgadas,
Secas como esses sentimentos
De oito séculos de roubos e patrões,
Barões ou condes.
Oh! Terra de ninguém, ninguém, ninguém!
Eu te pertenço.
És cabra! És badalhoca!
És mais que cachorra pelo cio!
És peste e fome, e guerra e dor de coração!
Eu te pertenço!
Mas seres minha, não!

Antigas e novas andanças do demônio, de Jorge de Sena.

Gosto muito de contos, que reputo um gênero difícil. Ele não admite facilmente o razoável, oscila entre o bom e o ruim, é traiçoeiro com escritores mal-dotados.

Achei de conhecer Jorge de Sena, muito tardiamente, pelos contos reunidos nas Antigas e novas andanças do demônio. As diferenças entre as duas partes do volume são nítidas, até porque eram dois livros diferentes. Posteriormente, o autor resolveu publica-los juntamente em um só livro.

Ele escreve prosa como um poeta. Não que traga consigo uma métrica que sempre insinue a poesia, mas que se percebe ser principalmente poeta. Um prosador que não faz poesia também tem um caráter singular, que se percebe. Todavia, é muito interessante notar isso em um autor lusófono, porque nesta língua poucos são os que não escrevem nas duas formas.

Algumas coisas nas andanças do demônio, alguns contos, enfim, lembraram-me Guy de Maupassant, o maior contista que já li. Há um traço de extraordinário lúcido e, ao mesmo tempo, apaixonado. Há uma profunda erudição e conhecimento histórico em linhas simples, concisas e quase herméticas.

Houve uma lembrança de algo que fazia quatorze anos que ouvi. Uma estória, ou um mito, que é cara à gênese do cristianismo está mencionada no conto A noite que fôra de natal. Um mito ou episódio caro a esta gênese, mas pouco falado e relativamente pouco conhecido. Plutarco conta o episódio.

Um autor que a ponha em ficção, em um formato menor que a novela ou o romance, com resultado bom, é um autor invulgar. O grande Pã morreu, dizia-se no Egeu. Dizia-se, ou antes ouvia-se, em vozes cavas, chorosas, vozes sem falante, que os pescadores ouviram.

Essas vozes falaram-se ou ouviram-se na época em que Tibério era Imperador. Época que se convencionou dizer do nascimento de uma nova religiosidade e morte de uma anterior. Ninguém sabe se foram mesmo faladas e se foram ouvidas. Não chegou a ser constatado, embora Tibério tenha ordenado investigações.

Uma estória dessas, pouco importa que seja verdadeira ou falsa. Falar dela em ficção importa talento.