Lamento que essa seja a ideologia de eleição da classe-média ascendente brasileira, mas não lamento minimamente que haja mais e mais ascensão das classes médias baixas. Na verdade, esse movimento de crescimento e redistribuição de riquezas é tímido, embora melhor tímido que nulo.
Desse modelo ideológico, muito precariamente pode-se dizer que é uma variante das denominações reformadas históricas, porque seu substrato teológico é muito rarefeito e disperso e mesmo divorciado do que se tomam como suas bases: as escrituras bíblicas judáicas e do novo testamento.
As estruturas da reforma original são, sim, bibliólatras, em sentido muito restrito, até porque usam de livros escolhidos para anunciar uma reforma contra quem os escolheu. Detém-se no estudo desses livros e dão-lhes um caráter revelado, o que sugere uma contradição entre o gosto pela história das fontes e a crença na sua natureza revelada. Ademais, não se servem de textos cristãos primitivos apócrifos, aceitando a escolha feita por aqueles de quem se querem diferenciar.
A princípio, é algo que se parece inspirado na simplificação e na razão, dois problemas quando se trata de religiosidade. O cristianismo de Roma – que não vou ater-me à parte mais próxima das origens, a ortodoxia, porque não temos sua ocorrência – prendeu-se muito à razão, mas não à simplificação. Apropriou-se de Platão e de Aristóteles, o que resultou em um sistema bom e em uma religião vazia e morta.
A reforma veio a ter seu São Tomás em Kant, tão pouco lido como muito celebrado. O que sai dele é um moralismo profundamente sofístico, no que são as premissas iniciais, puras, abstratas, sabe-se lá de onde tenham vindo. Esse conjunto de idéias, que de religiosidade tem a hierarquia e a aceitação de que se decifram designios divinos, serviu bem a uma classe – ou ordem – que se insinuava no protagonismo social.
Da mesma forma, o cristianismo de Roma tinha servido bem a uma classe de libertos e soldados que reivindicavam sua presença no palco social, mil anos anteriormente.
Não quero reduzir as religiosidades a utilidades sociais, apenas destaco essa função que têm. Até porque, as funcionalidades existem a par com as crenças profundas e a sinceridade existente nessas últimas. Não são as religiosidades apenas meios de controle e coesão social, evidentemente, mas também o são.
Tampouco quero estratificar as religiosidades em seus períodos de florescimento a partir de seus graus de sinceridade de crença e de utilitarismo social. Quero apenas diferencia-las, tanto no tempo, como no espaço. Por esses critérios, elas são diferentes, assim no que têm de religioso, como no que têm de estrutura social.
O neopentecostalismo é nitidamente um fenômeno de raízes norte-americanas. As ideologias reformadas que chegaram à América no Norte, com a colonização, eram basicamente as mesmas que havia na Europa. Lá, mutaram-se, em prazo médio, no que originou o neopentecostalismo atual.
A construção da nação norte-americana não se podia basear em muitos mitos fundadores comuns, porque a fundação era recentíssima e as diferenças regionais imensas. Ou seja, não havia discurso de história nacional a dar o sentido de coesão e a servir de argumento de controle social. Algo devia ocupar o espaço vazio.
Esta ocupação não era possível com tradições alheias, em ambiente de terra-de-ninguém e dissolução de costumes permitida pela ausência de poderes normativos efetivos. E a dissolução ameaçava a prosperidade material. Então, a base reformada foi adaptada e simplificada, para tornar-se em código de conduta e em promessa de recompensa material para quem o seguisse.
Isso – com todas as várias diferenças pontuais óbvias – foi transplantado para o Brasil e cumpre seu papel. Não significa, todavia, que outros modelos não pudessem ter sido adotados, embora evidencie o fracasso deles em se apresentarem para a tarefa. O modelo dominante, o cristianismo de Roma, parece ter sido incapaz de ocupar o espaço por elitismo.
Elitismo, aqui, deve se considerado com algum rigor e sem preconceitos. É a postura que aceita quase tudo, materialmente, ainda que aceite poucos desvios formais. Nas formas está seu código e na complexidade delas sua exclusividade. Para quem as domine, o campo é aberto e de vasta tolerância, mas para quem não as domine, abre-se a perspectiva da submissão hierárquica.
No que diz respeito às crenças religiosas propriamente ditas, o modelo romano antes dominante foi incapaz de assimilar os gnosticismos populares – muitos de origens africanas – mesmo que tenha havido muita propaganda de algum sincretismo, na verdade discretíssimo e somente aparente.
Foi incapaz porque sua racionalidade é imensa, tão grande quanto sua insinceridade religiosa. Não se encontraram lugares para tantos demônios e mensajeiros sem nome no panteão original, mesmo que esse panteão tenha sido, ele próprio, uma concessão inteligente ao paganismo, dois mil anos atrás. As corporações dificilmente conseguem repetir grandes idéias.
O modelo neopentecostal que seduziu vastamente as classes mais baixas e as médias ascendente assimilou medos, demónios, anjos, aspectos particulares da divindade e tudo o mais, despersonalizando-os e metendo-os todos em um grande esquema de recompensas, de mão dupla.
A idéia da via de mão dupla entre o postulante e o seu deus de escolha é genial. Por ela, justificam-se situações díspares. O sujeito que quer uma recompensa adota comportamentos que agradam ao deus e pede-lhe o que quer; se não conseguir, é porque pediu pouco ou não adotou os comportamentos que agradam ao deus. O que já tem aquilo desejado por todos – o rico, enfim – está previamente justificado, na mesma lógica, porque foi aquinhoado pelo deus. Ora, se foi aquinhoado, significa que cumpriu as obrigações.
Ficam todas as situações justificadas, portanto. Aquela do que cumpre as regras de um manual de condutas e quer ficar rico e aquela de quem é rico, embora não se saiba se cumpriu as tais regras mas que, se já é, inútil discutir se cumpriu as prescrições.
Bem, o fato é que as classes médias ascendentes brasileiras querem sua oportunidade de ganhar dinheiro, de gastá-lo e de impor-se como grupo, ou seja, divulgar suas ideologias e seus valores. E essas são basicamente o ideário neopentecostal que, no plano social, é uma moralidade retributiva, repleta de prescrições de costumes que nada têm a ver com prescrições bíblicas, o que não vem ao caso e não importa.
Adotar e impor prescrições comportamentais a título de religiosidade é algo tão incoerente como qualquer racionalização de vontade de justificação e de poder. É dizer que se seguem regras e que elas são universalmente válidas, ou seja, é afirmar a validade de regras inquestionáveis , cuja implementação não obedece a limites, porque afinal são divinas.
Mas, alterando-se um tanto o viés, chega-se a resultados desagradáveis dessa neopentecostalização do Brasil, para além das teorias. Trata-se da intolerância e da má educação cívica. A primeira é filha dos moralismos médio-classistas alçados a desígnios divinos, algo que os conservadores de classes mais altas acham desprezível e controlável, porque sempre ignoraram o poder das vontades populares e nunca se ocuparam em compreender-lhes.
A segunda é mais do mesmo, agora também justificada, moral e religiosamente. Assim, barulhos imensos, invasões de privacidade, e invasões várias às esferas de liberdade individual vão consagrando-se e cristalizando-se como hábitos sociais válidos.
A arrogância das classes dominantes percebe-se no desdém e na crença de que não passam de movimentos aparentemente controláveis dos mais pobres. Desprezam os pobres e acham nesse desprezo razões para desprezarem a necessidade de compreensão da dinâmica social. É a gente que perde o controle, perde a compreensão e fica com raiva.
A intolerância suportada teoricamente por neopentecostalismos só viceja porque vem ao encontro de arcaicos modelos de poder social. Esses modelos já existiam e precisavam de um suporte teórico. Agora que o têm, ampliam-se.